Barack Obama, tratado pela mídia como uma espécie de messias negro, ganhou um presente fantástico: em Gaza, Israel e o Hamas suspenderam a guerra. Oxalá ele possa liderar forças que garantam pátria livre e sem ataques mútuos a judeus e palestinos. A questão é repleta de sutis complexidades, mas grandes estadistas podem e devem fazer isso mesmo: liderar a solução de problemas complexos.
Esta guerra causou um estrago danado também no Brasil, mas ainda é cedo para avaliar por que razão a mídia brasileira, com raras exceções, tomou descarado partido em sua cobertura. Você conversa com gente do povo e a maioria foi informada que o demônio Israel enfrentou o santo Hamas. Cora Rónai publicou um artigo imperdível sobre o tema em O Globo (‘A guerra perdida‘, 15/1/2009).
Neste pequeno artigo, quero lembrar uma coisinha: esta cultura de condenar sem conhecer não é nossa, não é brasileira, não está na tradição de nossas letras e de nossa cultura. Aliás, não deve estar na cabeça de escritor algum.
A partilha da Palestina
Pesquisei a Guerra do Paraguai (todas as guerras se parecem, na essência, em qualquer época e em qualquer lugar) para escrever meu romance Avante, Soldados: Para Trás (no Brasil, em décima edição; publicado também em outros países, saiu em Portugal em 2005, e na Itália, no final do ano passado) e consolidei antiga convicção pacifista, resumindo assim meu modesto discernimento: nenhuma guerra é travada entre mocinhos e bandidos. Eles estão dos dois lados em luta. E em geral nos dois lados predominam os bandidos, o Mal predomina. O Bem é o grande derrotado, como sempre.
O tema foi conduzido de tal modo pela mídia brasileira – sempre, reitero, com notáveis exceções – que fomos inconscientemente convidados a olhar de soslaio para nossos amigos de ascendência árabe ou judaica, conforme o caso. Salim e Jacó sempre viveram em paz aqui no Brasil, ambos amados pelos brasileiros. Já houvera coisa parecida imediatamente antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, quando os alemães executavam o seu projeto de limpeza étnica, principalmente de judeus, mas não deles apenas, no mundo. Brasileiros de ascendência alemã eram tratados com desconfiança ou mesmo perseguidos, como se integrassem os exércitos de Hitler.
Nessas horas, é bom lembrar a luz de Osvaldo Aranha que, em 29 de novembro de 1947, presidiu a histórica 49ª sessão da Assembléia Geral da ONU, quando foi aprovada a partilha da Palestina. Votaram 56 membros: 13 foram contra, 10 se abstiveram e 33 aprovaram. Nascia ali o Estado de Israel.
Alarguemos o olhar
Osvaldo (Euclides de Sousa) Aranha nasceu em Alegrete (RS). Tem Euclides no nome, homenageando o pai, coronel e estancieiro. Luíza de Freitas Valle Aranha, sua mãe, foi quem o alfabetizou.
Lia muito o nosso Aranha. Deixou uma biblioteca de 4.585 livros, depois aumentada para 11.485 com doações da própria família. Na prosa de língua portuguesa, seus autores preferidos eram Eça de Queiroz e Machado de Assis.
Em 27 de janeiro de 1960, no Rio, minutos depois de sentar-se, voltando do médico, e apresentar um boletim que dizia estar tudo bem com o seu coração, morreu de enfarte.
Não é de hoje que Israel nos fala de perto na via dolorosa do regresso à pátria. E nós, brasileiros, temos vínculos de fogo com a cultura judaica. E com o Estado de Israel, principalmente com a referência solar de Osvaldo Aranha.
Temos também vínculos de fogo propriamente ditos, tão bem expressos no título do livro-referência de Alberto Dines sobre Antônio da Silva, o Judeu, o escritor brasileiro nascido no Rio e executado pela Inquisição, em Lisboa, quando uma peça de sua autoria estava em cartaz a algumas quadras da fogueira. Que trágica e pavorosa ironia. Tinha 34 anos.
Muito antes do nosso dramaturgo, Camões fez estes versos em Sôbolos Rios:
‘Ó tu, divino aposento,/ Minha pátria singular,/ Se só com te imaginar/ Tanto sobe o entendimento,/ Que fará, sem em ti se achar?’
Alarguemos, pois, o nosso olhar. Temos bons exemplos entre os que nos antecederam, nas Letras e na Política.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da ed. Novo Século); www.deonisio.com.br