A trajetória de Fernando Barbosa Lima se confunde com a da TV brasileira: em seus quase 50 anos de carreira, ele criou mais de 100 programas. O jornalista e publicitário – uma referência unânime quando o assunto é televisão – acaba de lançar o livro Nossas câmeras são seus olhos, no qual analisa o seu percurso profissional e divide a história da TV no Brasil em duas partes: antes e depois do golpe militar de 1964. O programa Observatório da Imprensa na TV, exibido na terça-feira (3/7), debateu o legado de Fernando Barbosa Lima para a TV do país.
No editorial que abre o programa, Alberto Dines lembrou que pela primeira vez em 57 anos tem-se uma separação entre o conceito de TV pública e TV comercial. ‘Agora, quando se fala em TV, é preciso tornar claro de que paradigma estamos falando’, afirmou. Em seguida o apresentador referiu-se à queda de qualidade das TVs abertas, nas quais os únicos programas que teriam melhorado seus padrões são os jornalísticos. [Ver abaixo a íntegra do texto.]
Os convidados desta edição do OI na TV foram Fernando Barbosa Lima – que dirigiu a TVE por três vezes e também foi diretor das emissoras Manchete, Bandeirantes e Excelsior – e os jornalistas Vera Barroso, no Rio, e Roberto Muylaert, em São Paulo.
‘Nossas câmeras são seus olhos’ era o bordão do Jornal de Vanguarda, que foi ao ar em 1962 e era transmitido todas às noites, ao vivo, pela TV Excelsior. O programa reunia diversos jornalistas vindos da imprensa escrita e, à época, revolucionou a linguagem do telejornalismo brasileiro. Foi o Jornal de Vanguarda que imprimiu a assinatura de Fernando Barbosa Lima na TV brasileira.
Muitos dos programas que criou ficaram na memória dos telespectadores: Preto no branco, Diálogo, Persona, Abertura, Xingu e Programa de Domingo são alguns dos exemplos mais eloqüentes. Suas câmeras já gravaram depoimentos de personalidades tão diversificadas como o escritor Nelson Rodrigues, o sambista Moreira da Silva, o ator Marcelo Mastroianni e o cineasta Glauber Rocha. Um dos momentos mais especiais de suas criações aconteceu numa edição do Programa de Domingo, quando Tom Jobim revelou como teve a idéia de compor ‘O samba do avião’ – enquanto sobrevoava o Rio namorando a orla, antes de pousar no Galeão.
Produção corajosa
No programa Abertura, políticos como Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela davam entrevistas sem medo da censura, ainda atuante na época. O título do programa era referência à abertura política patrocinada pelo governo do general João Figueiredo, o último general-presidente antes da redemocratização. ‘[O Abertura] foi uma junção de pessoas que haviam sido prejudicadas e cortadas pela ditadura e gente de alto talento que fazia uma televisão inovadora’, lembrou em entrevista gravada o jornalista Artur da Távola, que também classificou o programa como um ‘serviço à democracia’.
Na TVE, Barbosa Lima criou programas que resistem ao tempo, como Sem censura, Stadium e Cadernos de cinema – o que demonstra seu talento em superar orçamentos apertados e os limites da tecnologia.
Alberto Dines abriu o debate dizendo que aquele era um dia de livros da história da televisão. Isto porque naquela terça-feira, na sede da TVE, no Rio, foram lançados dois livros: um deles para comemorar os 70 anos da criação da Rádio MEC e outro, os 40 anos da TVE. E perguntou a Fernando Barbosa Lima como ele avaliava sua própria trajetória, já que passara por setores ‘reacionários’ da TV mas que nem por isso deixou de praticar a experimentação. ‘Não é uma contradição? Que milagre você fez para conseguir isso?’.
Barbosa Lima comentou que sempre conseguiu trabalhar com liberdade – ‘sempre consegui a confiança dos donos das emissoras’ – e afirmou que essa foi a condição essencial. ‘Estou em pleno movimento. A vida é isso, você não pode parar’, disse o jornalista, que é presidente do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e também dono da produtora FBL, que atualmente produz uma série de DVDs sobre grandes personagens brasileiros e está envolvida num projeto de educação a distância.
Dines disse ser espantoso como ele, Fernando, conseguiu fazer tantas inovações na TV comercial. ‘Mudou a TV comercial ou foi você particularmente que conseguiu isso?’ Barbosa Lima avaliou que a TV comercial está caindo num problema sério, que é o fato de se não renovar. Citou como exceção a minissérie Pedra do Reino, baseada na obra de Ariano Suassuna, recentemente exibida pela Rede Globo. ‘Ela é de difícil compreensão porque é avançada, mas foi corajoso por parte da Globo colocar no ar um projeto como esse’, disse, para em seguida afirmar que ‘as novelas são todas iguais, só os cenários e o equipamento melhoraram’.
Personalidade despojada
Barbosa Lima disse que sempre teve muita sorte e soube ‘domar’ com seu jeito os donos das emissoras. Lembrou que quando trabalhava na extinta TV Manchete, o jornalista Roberto D’Ávila ligou de Cuba dizendo que conseguiria entrevistar Fidel Castro, e essa seria a primeira entrevista do dirigente cubano a uma TV brasileira. Adolpho Bloch, dono da Manchete, não queria ‘um comunista’ na sua emissora. E para convencê-lo da importância desse furo jornalístico, Barbosa Lima disse que a Globo havia tentado o mesmo e não havia conseguido nada. ‘Você vai ganhar do Roberto Marinho’, disse a Adolpho Bloch. Bloch topou. O diretor explicou o final feliz em função de seu bom relacionamento nas TVs em que trabalhou. ‘É uma facilidade e a aproveitei sempre. Tudo depende da maneira que a gente coloca as coisas e se relaciona com os donos das empresas.’
Dines apresentou Roberto Muylaert, que foi dirigente da TV Cultura de São Paulo e ocupou a Secretaria de Comunicação Social do governo Fernando Henrique Cardoso. E lhe perguntou como foi possível as TVs comerciais inovarem num período que não era propício para isso, e ele, Muylaert, inovar uma TV pública sem os recursos financeiros necessários.
Muylaert lembrou que algumas das grandes experimentações bem-sucedidas do jornalismo da TV comercial resultaram do trabalho de Fernando Barbosa Lima. O que também poderia ter sido feito numa TV pública, mas foi impossível pela falta de recursos e falta de velocidade, imprescindíveis numa emissora de televisão.
Na TVE desde 1980, a socióloga Vera Barroso atualmente comanda o programa Cadernos de cinema, na mesma emissora. Dines perguntou como ela, ‘diante desses dois cobras’ – um oriundo da TV comercial e outro de uma emissora estatal – avaliava os conflitos e mutações a que ambos haviam se referido. Vera disse que ao examinar o livro Nossas câmeras são seus olhos notou que há ali um problema cronológico, pois a narrativa começa em 1952, mas a TV pública só se instala bem depois. ‘Ou seja, ele experimentou tudo isso muito antes’, disse. Para ela, o lado experimentalista de Barbosa Lima está muito ligado à sua personalidade despojada. ‘Ele é um moleque’, brincou Vera, dizendo que a contundência ele coloca na boca dos outros – entrevistados e entrevistadores.
Questões óbvias
O OI na TV apresentou trecho de um programa histórico, criado por Barbosa Lima para TVE, em 1984, intitulado Tribunal do povo. Na edição exibida, o líder comunista Luís Carlos Prestes e o então senador Roberto Campos expunham seus pontos de vista sobre socialismo e capitalismo. Dines perguntou para Fernando Barbosa Lima por que no Brasil não se pode mostrar um programa como esses em horário nobre e numa TV aberta. O apresentador deu o exemplo da Argentina, que veicula programas políticos na hora do jantar, enquanto o Brasil está preso às novelas. ‘Por que não há uma diversidade?’
Barbosa Lima disse que ia mergulhar um pouco no passado. Lembrou que antes do Tribunal do povo havia realizado um debate como esse na extinta TV Tupi, com Prestes e Augusto Frederico Schmidt, mediados pelo senador Mario Martins (pai do atual ministro Franklin Martins). O tema era a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, patrocinada pelo governo de John Kennedy, em 1961. O diretor avaliou que quando quem está no comando quer, é possível fazer algo semelhante numa TV comercial.
Dines contrapôs: ‘Mas por que não é possível fazer isso hoje, com todas as facilidades [tecnológicas] e a politização das massas, em pelo menos uma emissora?’ Barbosa Lima disse que hoje a ‘mentalidade das TVs comerciais é completamente diferente’, pois as emissoras colocam em primeiro lugar o lado comercial e só depois atentam para os interesses públicos. Para ele, esse é grande erro da televisão brasileira. ‘Temos 80% de telespectadores analfabetos ou semi-analfabetos; são pessoas que não sabem ler nem escrever, mas sabem ligar um aparelho de televisão. Acho que por isso a TV tem a obrigação de melhorar o nível cultural do nosso povo, e ela não se sente responsável por isso.’
Dines perguntou a Roberto Muylaert se não havia a possibilidade de uma agência de publicidade patrocinar um programa de debate político, por exemplo às 21h30, ‘para sacudir o país’. ‘Será que não haveria um retorno? Será que a qualidade significa um prejuízo?’, indagou.
Muylaert disse que dividiria esse problema em duas partes: audiência de massa e audiência com pontos razoáveis. Avaliou que há questões óbvias, como o nível de escolaridade e de cultura, que não permitem programas mais sofisticados para disputar audiências com novelas e produções semelhantes. Disse ainda que uma disputa possível e interessante seria entre os 2 e 10 pontos de audiência. Contou que na TV Cultura, durante sua administração, conseguiu recordes de audiência no horário nobre chegando a atingir terceiros lugares no Ibope, e às vezes até mesmo uma segunda posição. Lembrou que isso havia chamado a atenção de Silvio Santos, que se disse aliviado quando o Muylaert deixou a TV Cultura. ‘Vocês nem estavam ganhando dinheiro com isso’, disse Silvio Santos. Segundo o jornalista, é possível fazer um programa assim numa TV menor; mas, numa grande, ‘nem que chova audiência’, brincou.
Correr riscos
Alberto Dines perguntou a Vera Barroso se é possível criar uma variação que possa diferenciar uma TV da outra. ‘Todas embarcam nesse modelo de teledramaturgia que está consagrado e ninguém ousa desbalancear o esquema’, observou o apresentador.
Vera explicou que o Brasil tem outro problema, que é a ditadura – ‘no bom sentido’ – da Rede Globo. Ela comentou que a emissora-líder acostumou as pessoas a uma qualidade tecnológica inalcançável até há bem pouco tempo pelas outras estações, e com um poder transmissão que salta aos olhos. ‘Hoje em dia a Globo faz umas coisas muito boas, por exemplo no Fantástico, com Regina Casé e Drauzio Varella’; mas, segundo Vera, o que falta é colocar o brasileiro no centro de seus próprios problemas, falando sobre eles, ‘como Fernando coloca em seus programas’.
Dines perguntou para onde foram os bons programas humorísticos do passado. ‘O humor brasileiro é uma coisa consagrada e de repente se tira esse ingrediente. Como é possível retomar o veio do humor?’ Fernando Barbosa Lima lembrou que o humor na TV nasceu com o rádio e que hoje o Casseta e Planeta é um dos poucos programas com esse viés que valem a pena ser assistidos.
Nos comentários finais, Roberto Muylaert disse ter sido um prazer participar de um debate com pessoas tão inteligentes e propôs ao Observatório fazer um programa sobre a nova TV pública. Disse ainda que o jornalismo hard news deve ser esquecido nessa emissora – que, segundo ele, deve priorizar documentários e programas jornalísticos de debate. Vera Barroso afirmou que a TV pública deve qualificar o debate porque tem qualidade para isso. E Fernando Barbosa Lima falou do livro que está lançando: ‘Ele quer mostrar que a TV tem um papel importantíssimo: melhorar o nível cultural do povo brasileiro. Não existe desenvolvimento num país se esse país não desenvolve, ao lado da economia, a sua cultura. A TV tem esse poder’.
Dines aproveitou a deixa e perguntou: ‘Será que não é medo de correr riscos?’ ‘Mais do que o risco, é o medo de perder o emprego’, disse Barbosa Lima. ‘As pessoas têm medo de fazer algo que dê errado e perder o emprego. Sempre procurei enfrentar esses dragões e caminhar em frente’, finalizou.
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A inovação em baixa
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV exibido em 3/7/2007
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
TV comercial ou TV pública? Pela primeira vez em 57 anos tornou-se impossível generalizar. Agora, quando se fala em TV, é preciso tornar claro de que paradigma estamos falando.
A promessa de uma TV pública criou uma expectativa tão grande quanto a do início da era digital. Os amantes das novidades tecnológicas estão tão excitados quanto aqueles que esperam grandes alterações em matéria de conteúdo.
Mas nem sempre foi assim: já houve tempo em que a TV comercial era sinônimo de inovação e trepidação. Se, por um lado, o telejornalismo não dispunha dos formidáveis recursos de que dispõe hoje em dia, por outro lado, era mais rico em matéria de debates e entrevistas.
Hoje, a TV por assinatura, paga, ficou com as entrevistas e debates; mas como sua audiência é pequena (se comparada com a TV aberta), essas entrevistas e debates são mais convencionais, burocráticos.
Até humor e sátira, jóias da programação comercial, ficaram prejudicados porque deram lugar aos talk-shows – que não chegam a ser completamente engraçados, nem atendem aos padrões das grandes entrevistas.
O resultado é que, neste exato momento, as inovações da TV comercial aberta resumem-se às trocas de títulos das telenovelas e dos seriados. A exceção é o telejornalismo, que ficou como a única janela aberta para a realidade.
Esta edição do Observatório da Imprensa vai entrar na máquina do tempo para reencontrar uma época em que a televisão privada, sem perder suas características de veículo de massas, era um laboratório para arrojadas experimentações.