Mas o passo que está para ser dado pode ser para frente ou para trás. Entrevista com o engenheiro Higino Germani mostra como o Brasil pode definir de forma açodada a transição do serviço de radiodifusão sonora, criando uma situação de fato que tende a contribuir para tornar os canais de rádio ainda mais inacessíveis a novos atores e dificultar a reestruturação desta mídia tão fundamental para a cidadania. Em pleno andamento dentro dos órgãos de governo, este debate está distante de diversos atores interessados e, ainda mais, dos cidadãos.
O ministro das Comunicações, Hélio Costa, anunciou esta semana que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) liberará em breve a implantação do rádio digital em 12 capitais brasileiras, em caráter experimental. ‘Nós já temos condições técnicas para fazer a rádio digital funcionar’, disse o ministro, que também é proprietário de emissora de rádio. O anúncio surpreendeu as entidades e organizações ligadas à democratização da comunicação pelo fato de não ter havido, até hoje, um chamamento à discussão pública sobre como deverá se dar esta transição tecnológica no Brasil. A digitalização do serviço de radiodifusão sonora, uma realidade em poucos países do mundo, permitirá ao ouvinte de rádio receber um sinal de melhor qualidade, bem como ler textos noticiosos e ter acesso a informações sobre programação e outros serviços interativos de texto. Mas, assim como se dá no caso da transição da TV aberta, existem opções econômicas, sociais e tecnológicas a serem feitas que podem resultar em um processo de desenvolvimento e implantação mais ou menos democrático, mais ou menos custoso, mais ou menos excludente.
Com essa realidade batendo à porta dos brasileiros, o esperado era que ocorresse um debate público sobre os novos conceitos de produção de conteúdos, canalização e interatividade, que são os grandes desafios na migração das tecnologias de comunicação social eletrônica. Prevalecendo o silêncio, pode imperar a posição defendida pelo lobby de um grupo de empresas norte-americanas que quer ver o padrão In-Band On-Channel (Iboc) de rádio digital em alta definição implantado no Brasil de forma rápida. O canto da sereia [conheça as empresas que financiam este lobby mundial clicando aqui] deste conglomerado parece ter seduzido boa parte dos empresários do setor e de autoridades públicas, uma vez que o comparativo entre o Iboc e os padrões europeus (DAB e DRM) e o japonês (ISDB Tn) de rádio digital está passando ao largo das principais decisões. Ao contrário da TV Digital, onde a Anatel realizou testes de campo e de laboratório com todos os padrões existentes, no rádio a situação é outra.
Soluções alternativas para a implantação do rádio digital existem. Para apresentar algumas delas, dentro de uma perspectiva democrática, o e-Fórum entrevista nesta edição o engenheiro eletrônico Higino Germani, diretor técnico da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão. Nos anos 1970, ele foi chefe da área técnica de Radiodifusão no antigo Departamento Nacional de Telecomunicações e diretor técnico da Rádio Nacional de Brasília (atual Radiobrás) para a implantação da 1ª Etapa do Sistema de Alta Potência em Ondas Médias e Ondas Curtas. Concebeu, projetou e implantou o primeiro sistema de Radiovias no Brasil, na BR-290, em 2003. Germani é responsável técnico pelo projeto de mais de 300 emissoras de rádio, TV e retransmissoras e aproximadamente o mesmo número em projetos de sistemas de radiocomunicação. Em fevereiro deste ano, ele publicou o estudo ‘Rádio Digital: Uma Outra Opção Não Seria Possível’, cujas linhas principais são abordadas abaixo. Solicite uma cópia do estudo escrevendo para (imprensa@fndc.org.br)
***
O que o senhor pensa sobre essa decisão da Anatel anunciada pelo ministro?
Higinio Germani – Aparentemente, as experiências seriam baseadas no Iboc (in-band on-channel), ou seja, um sinal digital inserido juntamente com o sinal analógico nas emissoras de ondas médias (AM). Vejo como muito boa iniciativa pois os possíveis problemas e vantagens ficarão demonstrados nas experiências.
No estudo divulgado em fevereiro, o senhor defende a utilização do canal 6 do VHF para alocar as emissoras digitais de rádio. Por quê? Quantas estações digitais caberiam neste canal sem que houvesse risco de interferência?
H.G. – A Anatel já está realocando os canais 6 de TV. A banda do canal vai de 82 a 88 MHz e fica, portanto, ao lado da faixa de FM (88 a 108 MHz). Já existem três canais de rádio comunitária dentro do canal 6 de TV (87,9; 87,7 e 87,5 MHz); o que fazer com o restante da banda? Ora, a faixa é ideal para propagação de rádio com comprimento de onda bem adequado. Seria possível inserir nesta faixa mais de uma centena de canais digitais com 50 KHz de largura cada um, o que possibilitaria efetivamente criarmos uma nova radiodifusão e não uma adaptação da faixa antiga de AM (1 MHz) para a era digital com todos os seus inconvenientes.
Por que o senhor condena o padrão americano Iboc?
H.G. – Não condeno. Apenas existem questões ainda não respondidas, como, por exemplo: Como as emissoras vão operar com um delay (atraso no sinal) da ordem de 8 segundos? Qual a vantagem de operarmos na mesma faixa de AM atual se os receptores terão que ser compulsoriamente substituídos? Teremos que sempre pagar royalties pelo sistema? Como fica a interferência em canais adjacentes durante o dia e durante a noite ? Todas são questões muito importantes e sérias e que exigem resposta antes de adotarmos qualquer sistema. As experiências autorizadas serão de grande ajuda para esclarecer estes pontos.
Dependendo do padrão digital estabelecido, poderá ficar inviável às rádios comunitárias, em termos materiais, migrarem para o sistema digital uma vez que quase não possuem acesso a fontes de financiamento. Como ficarão essas rádios que não puderem se digitalizar?
H.G. – Creio que o horizonte de implantação do rádio digital ficará em no mínimo 5 anos, talvez 10 anos. Neste período, os custos devem cair e se tornarem mais acessíveis. Não acredito em rádio digital para as emissoras de FM, pois o ganho de qualidade não será tão compensador em relação à situação atual.
E os receptores, será difícil produzi-los? Quais serão as vantagens da digitalização para os cidadãos?
H.G. – O rádio não terá mais ouvintes e sim assinantes (se isto vai ser cobrado ou não, é impossível saber agora). Cada assinante se cadastrará na emissora e dará suas preferências em termos de informação, música, etc. O rádio avisará antecipadamente que informação do interesse do ouvinte vai vir (ou aumenta o volume automaticamente, ou liga sozinho, ou ainda grava a informação). Tudo isto é possível através de técnicas digitais já dominadas. O custo do receptor (atualmente da ordem de US$ 70) deve cair à medida que o sistema for implantado.
Se a Anatel permitir a implantação do rádio digital já em setembro estaremos (ouvintes de rádio) preparados para receber a programação?
H.G. – ‘Remember’ o AM estereo! Muitas emissoras investiram um bom dinheiro em sistemas de transmissão estereofônicos e o resultado foi: ‘Esqueceram o receptor!!!’ Espero que no caso da digitalização da radiodifusão não aconteça o mesmo. É necessário e indispensável que fábricas de receptores digitais sejam implantadas paralelamente à implantação de emissoras digitais. Estas fábricas têm que existir no Brasil, caso contrário, o preço será inacessível à maioria dos brasileiros.
Do ponto de vista da democratização da comunicação, qual padrão de rádio digital pode promover maior inclusão?
H.G. – Aquele que proporcionar o maior número de emissoras e maior pluradidade na programação. Do antigo ‘broadcast’, migramos para o ‘narrowcast’. Da programação eclética, migramos para a programação segmentada. Da segmentada, migraremos, compulsoriamente, para o ‘personalcast’. Os radiodifusores se transformarão, também compulsoriamente, em radioinformadores. Se os atuais radiodifusores tivessem aberto espaço em suas grades de programação para programas comunitários, o fenômeno ‘Rádio Comunitária’ não teria surgido.