A Embratel e a NET formalizaram na quarta-feira (8/2) o acordo para a distribuição de serviços de telefonia da primeira pela rede de cabos da segunda. Na prática, isso é o primeiro passo para a distribuição de serviços integrados de telefonia, dados e sinais de TV por assinatura, mais conhecido como triple-play.
Nos EUA, o assinante desse tipo de serviço já está pagando até 29,90 dólares por mês para ter acesso a chamadas nacionais ilimitadas, banda larga e sinais de TV via internet. Não poderia ser de outra maneira, aliás, porque todos esses sinais são da mesma natureza. A cobrança de chamadas telefônicas a cada vez que um número é discado tornou-se anacrônica há muito tempo.
O triple-play é a evolução natural da venda de serviços de comunicação convergentes. A questão está bem resolvida entre as operadoras de serviços de telefonia e de TV por assinatura, que compartilham vendas, instalação, distribuição de sinais de TV e transmissão de voz.
O mesmo está longe de acontecer no que diz respeito ao transporte de conteúdo. Há uma batalha entre radiodifusores e operadoras de telecomunicações que se estende há anos – e que se intensificou com a aproximação do deadline para a definição do modelo brasileiro de televisão digital. As duas partes reconhecem a sinergia entre suas atividades, mas nenhuma quer abrir mão do que consideram seus direitos.
Convergência tecnológica
Os radiodifusores têm apelado sistematicamente para a Constituição: sustentam que a Carta Magna já prevê a diferenciação de atribuições de um e outro e que, portanto, não há nada a mudar. As teles, por seu lado, adotam o discurso da situação de fato: defendem a tese de que cabe ao usuário a decisão sobre a forma que deseja receber serviços convergentes.
É por isso que a disputa entre teles e radiodifusores acabou polarizando o debate sobre a implantação da TV digital no país em torno da questão da mobilidade. Os radiodifusores têm usado o discurso da transmissão digital móvel aberta e gratuita como cláusula pétrea para o negócio. Essa posição aparentemente coincide com a do ministro das Comunicações Hélio Costa, e implica a escolha do padrão japonês ISDB, que permite a transmissão de sinais de televisão para aparelhos celulares sem a utilização de canais de telefonia.
As emissoras de televisão atribuem também às teles pressões para que esse tipo de transmissão não possa ser feita exclusivamente através das faixas dos radiodifusores, e tenha que ser efetuada através de uma faixa adicional. Isso implicaria a escolha do padrão europeu DVB. As teles argumentam que isso já acontece hoje com o rádio. O usuário pode comprar aparelhos celulares que recebam sinais de rádio FM, mas os sinais de telefonia e de rádio trafegam em faixas separadas.
O foco principal da questão, no entanto, situa-se no sentido oposto. Os radiodifusores querem evitar que as teles tenham o direito de produzir e distribuir conteúdo, o que representaria, segundo eles, uma concorrência desleal. O argumento principal é que todas as receitas dos radiodifusores advém unicamente da venda do espaço publicitário e que a pulverização da oferta inviabilizaria os seus negócios. As emissoras batem na tecla de que, com capital estrangeiro restrito a 30% do controle, não há como fazer face às operadoras, que na sua maioria têm grandes investimentos externos.
Na quinta-feira (9/2), o ministro Hélio Costa admitiu que a convergência tecnológica vai mesmo forçar uma revisão nas leis que regem os setores da radiodifusão e das telecomunicações – além, eventualmente, da própria Constituição. O ministro não quer nem ouvir falar em mudar a Lei Geral de Telecomunicações para garantir às empresas de telefonia o direito de distribuir conteúdo. Vários setores insistem na mudança imediata da LGT e pedem o adiamento da decisão sobre a TV digital. Na internet circulam pelo menos duas listas colhendo assinaturas para isso. Mas, por enquanto, a única extensão de prazo foi de um mês (para 10 de março) e não há dúvida que a transição para o ambiente digital será definida por decreto.
Espaço da banalidade
Existem hoje no Brasil perto de 100 milhões de telefones celulares, quase 50% a mais do que o número de receptores de televisão. O número de usuários de vídeo móvel em todo o mundo cresceu quase 120% em 2005, para cerca de 50 milhões. Para o usuário, os aplicativos audiovisuais já são tão importantes quanto as aplicações telefônicas – e isso crescerá bastante nos próximos anos. O denominador comum entre o que pensam as teles e os radiodifusores situa-se, portanto, na demanda por conteúdo.
Demanda por conteúdo não significa a distribuição do mesmo conteúdo por diferentes meios, mas de conteúdos originais para cada meio. Ninguém vai preferir ver a novela das 8 pelo celular, mas a necessidade da criação de conteúdos específicos vai crescer exponencialmente. Celulares T-DMB, lançados recentemente na Coréia, permitem recepção em alta qualidade de sinais de televisão distribuídos por operadores de TV para telefonia móvel. Por isso, é muito difícil olhar para o futuro da radiodifusão e das telecomunicações no Brasil sem enxergar a necessidade de uma profunda revolução nos mecanismos de construção de conteúdo.
Isto significa desde a pesquisa de modelos de conteúdo que levem em conta atribuições específicas das plataformas digitais – como a interatividade – até o desenvolvimento de mecanismos de produção adequados a essa demanda. É impossível, em resumo, pensar num ambiente de construção de conteúdo para a mídia convergente onde não estejam presentes, em grande escala, os produtores de conteúdo desvinculados das emissoras e, por que não, a própria academia. Não se deve esquecer que das universidades vieram as grandes contribuições para o desenvolvimento do modelo de TV digital que será implantado no Brasil.
Os radiodifusores insistem que transmissões em HDTV são imprescindíveis para que a televisão brasileira possa manter sintonia com o desenvolvimento do meio no resto do mundo. Estão absolutamente corretos neste ponto. Mas a construção de uma programação original e competitiva é muito mais importante do que isso. A televisão por assinatura no Brasil acaba de aumentar seu share para 28%. O que isso reflete é o envelhecimento do modelo de programação da televisão aberta, que, cá entre nós, jamais foi um padrão para o mundo (exceto em espasmos da teledramaturgia) e atualmente é muito menos.
A verdade é que a televisão aberta brasileira não está fazendo jus ao extraordinário potencial do meio: ela está preguiçosa, antiga, pouco inspirada. Falta-lhe a auto-estima necessária para o aprimoramento, o que é condição para o desenvolvimento de qualquer atividade comercial ou cultural e, de resto, para o crescimento de qualquer ser humano.
Não é esse desprezo por si mesma que vai tornar a televisão mais competitiva num ambiente digital. As tardes de domingo não vão melhorar se a definição da imagem for maior e o áudio, mais intenso. A televisão só vai melhorar se conseguir crescer intelectualmente, renovar seu público, acompanhar pelo menos o desenvolvimento educacional da população, provar aos mais jovens que ela não é o espaço para a banalidade, mas para a criação, a invenção, a conquista das mentes e dos corações dos espectadores.
Mediocridade e excelência
As emissoras gostam de minimizar essa questão. Sustentam que a qualidade do que é produzido é questão de foro íntimo e que qualquer reflexão sobre isso significa uma tomada de posição em favor do controle externo ou até da censura.
Esse é um grande erro. A insistência nessa tese representa um dos maiores desserviços que a televisão aberta poderia prestar ao usuário e também à nobreza do veículo. Sugere que os grandes inimigos da televisão aberta não são as teles, muito menos as formas alternativas de produção e difusão de conteúdo. O inimigo está lá dentro, sustentando um modelo de construção de programação que só tem enfraquecido intelectualmente o veículo, afastando-o da população mais jovem e provocando resultados comerciais dos quais a própria televisão se queixa todos os dias. Quem não dá a mínima bola para isso não está defendendo a televisão aberta. Está servindo ao seu encolhimento.
A televisão digital que será implantada a partir do próximo mês no Brasil terá transmissões em HDTV e capacidade interativa através de uma linha de retorno que virá possivelmente pelas operadoras de telefonia ou de TV por assinatura. Muito provavelmente terá também a capacidade de enviar sinais para aparelhos celulares sem a intermediação das teles. Todos esses avanços vão imediatamente se incorporar aos novos paradigmas do meio e ficarão por aí, se as emissoras não aproveitarem a oportunidade para fazer o que de fato pode ser revolucionário para a televisão: a mudança dos seus padrões de qualidade e desempenho.
Isto só pode se dar com o reconhecimento que, ressalvadas as exceções de praxe, o que a televisão aberta brasileira está oferecendo neste momento ao espectador fica bem abaixo do respeito que as emissoras devem ter com o seu usuário e com a grandeza do meio que utilizam. E também com o entendimento que uma nova cultura – de programação e de utilização dos meios de produção – tem que tomar o lugar da convicção absurda, porém sedimentada, de que a televisão é o espaço da estupidez.
A verdadeira disputa na implantação da TV digital no Brasil não se dá entre os radiodifusores e as teles. Ela acontece entre a mediocridade e a excelência. O lado que vencer essa batalha é que vai determinar o que será a televisão brasileira dos próximos 50 anos.