Os jornais de quarta-feira (22/05) noticiam que o ministro da Justiça acredita na hipótese de um ato planejado ter produzido a onda de boatos que levou milhares de brasileiros pobres a procurar agências bancárias para retirar antecipadamente suas cotas do Bolsa Família. Segundo o balanço divulgado, foram feitos cerca de 920 mil saques no sábado e no domingo (18 e 19/5), que totalizaram R$ 152 milhões.
O fato de o incidente ter ocorrido num fim de semana contribuiu para que se espalhasse a falsa notícia de que a presidente da República iria cancelar o programa social, porque as agências da Caixa Econômica Federal, onde poderiam ser feitos esclarecimentos, estavam fechadas.
A Polícia Federal está investigando as conexões entre mensagens colocadas nas redes sociais e os movimentos massivos de pessoas rumo aos caixas eletrônicos. Já se sabe, por exemplo, que um dos primeiros focos de saques atípicos começou em Manaus, mas ainda não é possível assegurar que esse tenha sido o ponto inicial do movimento.
Um dos indícios de que a boataria tinha alguma organização é o fato de que houve duas informações convergentes que, fatalmente, levariam um grande número de pessoas a se movimentar em busca do dinheiro: a primeira falava sobre a hipótese do fim do Bolsa Família; a outra dizia que o governo iria distribuir um bônus pelo Dia das Mães.
É possível rastrear com relativa facilidade os registros de mensagens postadas nas redes sociais e eventualmente identificar indivíduos que se comportam como multiplicadores ou conexões entre grupos de usuários. O mecanismo para isso não é muito complicado, utilizado corriqueiramente por agências de comunicação digital para acompanhar os efeitos de promoções e monitorar resultados do chamado marketing viral.
No entanto, embora haja indícios fortes de um sistema por trás da onda de boatos, a natureza das redes também permite a ocorrência de movimentos aleatórios e espontâneos que em pouco tempo acabam produzindo padrões e criando uma lógica de funcionamento.
O interessante nesse episódio é que basta a identificação de um ou dois nós de rede relacionados com o interesse específico de promover instabilidade social para que se confirme a ocorrência do crime. Também será curioso observar como seria tipificada tal ação e como a imprensa vai tratar o caso, se for comprovado que se tratou de uma iniciativa com finalidade política.
Comer ou morrer de fome
De qualquer forma, estamos diante de uma possibilidade criada pelo advento das mídias sociais digitais, que penetram rapidamente nas camadas da população de menor renda conforme as próprias políticas sociais produzem seus efeitos. Nas classes ascendentes de renda média, saídas recentemente da pobreza, 45% das famílias têm acesso regular à internet. Os vínculos entre essas famílias emergentes e as mais pobres, mantidos por relações comunitárias ou de parentesco, transformam os meios digitais em poderosa força de multiplicação de informações e boatos.
Se o que ocorreu foi um episódio espontâneo, estamos diante de um fenômeno digno de ser analisado por pesquisadores em comunicação e outros estudiosos do comportamento social. Se ficar comprovado que se tratou de ação organizada por um grupo de interesse político, trata-se de um desafio importante para as instituições da República.
Uma das alternativas aponta para um ensaio de ato terrorista, a outra estaria revelando que os beneficiários do programa social não confiam nos meios convencionais de comunicação e, por extensão, não são alcançados pelo sistema de relacionamento do governo.
Para a oposição, o fato de muitos beneficiários do Bolsa Família acreditarem que o governo pode cancelar o programa é informação de grande valor estratégico. O valor mínimo de R$ 70 mensais entregue a cerca de 13 milhões de famílias pode parecer irrisório para quem tem uma fonte de renda regular, mas para os beneficiários pode representar a diferença entre comer e morrer de fome.
Será interessante observar quanto tempo a imprensa ainda vai dedicar a esse acontecimento. Afirmações apressadas disputam espaço nas páginas dos jornais com ponderações de autoridades dedicadas à investigação.
Caso se confirme que houve uma articulação por trás da boataria, não se pode simplesmente dizer que isso é parte do jogo político radicalizado. Estaríamos diante de um crime de graves consequências contra a parte mais vulnerável de uma sociedade ainda marcada pela desigualdade.
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