Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Abusos, excessos e constrangimento

Para a segunda audiência acerca da Rádio Comunitária 93.5 Rádio Solidariedade, localizada em Macau, RN, o produtor cultural João Eudes Gomes, ex-secretário municipal de Cultura do município, compareceu, na última quinta-feira, 08/02, ao suntuoso prédio da Justiça Federal, no bairro de Lagoa Nova, em Natal, acompanhado do advogado Luiz Sérgio de Melo Neto, que representou o advogado constituído para o caso, Emanuel Paiva Palhano.


Na audiência, em que se concentraram outros casos de perseguição da Anatel por instalação de rádios comunitárias no Estado, João Eudes e seu advogado foram atendidos pela juíza da 2ª Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, Gisele Leite, estando presentes igualmente o procurador federal Marcelo Dias e dois advogados da Anatel. Os dois logo se retiraram, em razão de João Eudes não querer fazer um acordo, após indagação da juíza.


Resolução em torno da sentença


A defesa apresentada pelo advogado Emanuel Palhano baseou-se numa rica informação acerca da legalidade da manutenção de rádios comunitárias pela sociedade civil organizada, ao contrário de um significativo número de emissoras que se proclamam comunitárias e que, muitas vezes, se encontram em operação de forma irregular, sendo controladas por políticos que delas fazem uso para fins particulares.


Dedicado a esse trabalho há cerca de dez anos, aproximadamente, a partir do gabinete do deputado estadual Fernando Mineiro (PT), num empenho voltado para a questão das rádios comunitárias no Estado do Rio Grande do Norte, Emanuel Palhano já obteve inúmeras vitórias.


‘Desde que começaram os primeiros embriões, a concepção de RC no interior do Estado, a gente começou a ir à Justiça em busca de liminar de funcionamento’, disse Emanuel em entrevista anterior ao Jornal de Natal. ‘Na época, algumas rádios conseguiram uma liminar para permanecer funcionando, com base no Pacto de São José da Costa Rica, e outras rádios não a obtiveram. Começou a questão da busca e apreensão dos equipamentos, os processos criminais, e a gente foi montando uma defesa, uma estratégia jurídica, no campo criminal mesmo, para defender essas pessoas. Felizmente, nestes dez anos não aconteceu de ninguém ser preso. Algumas pessoas fizeram transação, não quiseram levar o processo adiante, mas todas as pessoas que buscaram fazer essa defesa, felizmente, tiveram absolvição.’


No caso da Solidariedade 93.5, Palhano apresentou uma defesa prévia muito bem fundamentada e uma mais robusta defesa de mérito, documento que foi apresentado à juíza Gisele Leite através do advogado Luiz Sérgio Melo. Após cerca de duas horas de audiência, a juíza Gisele Leite, depois de ouvir duas testemunhas de defesa apresentadas por João Eudes – Domingos Sávio Bezerra de Lima e Fabiano Nascimento –, uma vez que a testemunha de acusação – arranjada pelos que defendiam os interesses da Anatel – não compareceu, além de ouvir o próprio João Eudes Gomes, informou o acusado que ele seria chamado no mês de março, a fim de apresentar alguma resolução em torno da sentença.


Equipamento apreendido


Na documentação apresentada por Emanuel Palhano, o advogado fez questão de comentar a prisão indevida de João Eudes Gomes, no dia 26 de outubro, para ele ‘excessiva, posto não se tratar de um delinqüente de considerável periculosidade, mas tão-somente de um cidadão que faz da radiodifusão comunitária, uma fórmula de levar cultura e informação ao povo de Macau’.


Acostumado a esse trabalho específico e atuando com as leis e os direitos que amparam as pessoas que estão sendo vítimas de perseguição da Anatel e do Ministério Público Federal, Emanuel Palhano fez ver que ‘lamentavelmente, há que se chamar a atenção, desde logo, para o espetáculo digno de platéia promovido pela Polícia Federal quando da realização da prisão do acusado. O abuso e o excesso estão materializados de forma incontestável, submetendo o acusado a grande constrangimento’. Ele se referia à arbitrariedade protagonizada pela Polícia Federal no dia 26 de outubro de 2006, quando João Eudes foi preso em Macau, por agentes daquela corporação, na sede da emissora, mediante a ameaça de armas de fogo, sendo conduzido a Mossoró, sede regional da PF, onde foi coagido a prestar depoimento e vislumbrar a apreensão de todo o equipamento da rádio comunitária, conforme os documentos que fez anexar aos autos.


Avanço democrático


Para o advogado Emanuel Palhano, admira o comportamento do Ministério Público Federal ao agir de forma inoportuna, ficando a impressão, para quem toma conhecimento do caso, de que se trata de perseguição orquestrada por grupos políticos de Macau e do Estado contra o produtor cultural João Eudes. Prova disso foi a insistência da juíza Gisele Leite em indagar às testemunhas de João Eudes se havia programas ‘de conteúdo político eleitoral’, fato sempre negado pelas testemunhas. Para Palhano, ‘não obstante o país passar por relevante processo de mudança – no qual o próprio Judiciário e o Ministério Público têm colaborado de forma brilhante para o progresso dos direitos fundamentais, o fortalecimento dos princípios da Justiça e ideais de cidadania – deparamos com o posicionamento retrógrado do Ministério Público Federal, preocupado com a instalação e funcionamento de rádios comunitárias’.


O caso da 93.5 Rádio Solidariedade, emissora da Comunidade Norte-rio-grandense de Defesa da Cidadania, com endereço em Macau, cria espécie, na medida em que não há como encurralar seus diretores, já que a própria legislação em vigor desconhece a prática de crime no caso levado às barras do Tribunal da Justiça Federal. Aparenta uma perseguição de grupos políticos que vêm perdendo terreno em Macau, diante do avanço democrático – como pôde ser comprovado com a própria destruição do mito em torno do ex-prefeito José Antônio Menezes, antes todo-poderoso e agora até demitido como médico dos quadros da Prefeitura de Macau.


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A arbitrariedade é uma coisa inconcebível


Em entrevista ao Radar Potiguar, João Eudes Gomes fez suas considerações acerca do rumoroso caso:


João Eudes – Nós somos vítimas da intolerância, da falta de democracia, até da falta de respeito. Uma perseguição que é feita pela Anatel, depois pela Polícia Federal, depois pelo Ministério Público Federal e que culmina na Justiça Federal. O Ministério Público denunciou, em 2005, a 93.5 FM por ser uma rádio clandestina, por ter uma atividade ilegal. Esse processo vem de lá para cá, houve idas e vindas e, finalmente, houve essa audiência hoje, na qual se chegou à conclusão de que não existem provas concretas de crime. Já saímos de lá com a certeza de que como criminoso não vamos ficar. Não tem como nos enquadrar dentro de uma lei de crime porque não existe crime. É o chamado ‘crime inexistente’. Se o crime é inexistente, não existe autor.


No momento em que se vêem crimes de colarinho branco por toda parte, três forças do Estado se reúnem para massacrar uma iniciativa do movimento popular. Que considerações você faz?


J.E. – Eu acho que, de 1964 até agora, só existiu em Macau uma instituição comunitária. E os governos têm muito medo dessas idéias. Não é o fato de ser uma rádio. É porque você se indaga: como é que uma população sem dinheiro mantém uma rádio, a rádio funciona e tem audiência? Assim pode ser um hospital comunitário, pode ser um centro de compras comunitário, pode ser um banco comunitário. A população descobre que pode viver independente dos falsos líderes, vamos dizer, dos padrinhos, dos coronéis. É aquela coisa: a pessoa descobre, através da união na rádio comunitária, o que é a autogestão. Descobre que pode ser independente. E isso, no Brasil, é proibido. Porque o Brasil é um país capitalista em que não predomina a colaboração. O que predomina é a concorrência. E a rádio comunitária vem para pôr por terra essa questão da concorrência. A rádio comunitária sobrevive da colaboração. Aceita as pessoas como as pessoas são. Não precisa você falar chiando, não precisa você ser bonito. A rádio comunitária recebe a todos: o branco, o preto, o pobre, o rico, quem tem, quem não tem. Quem fala o português das elites, quem fala o português estropiado. A rádio comunitária recebe todo mundo. Não discrimina. Daí, existir uma grande perseguição contra essa atividade. Não é só contra a rádio. É contra a iniciativa de se organizar de forma independente das classes dominantes.


Não existe nem motivo do crime porque está tudo dentro da legislação.


J.E. – Vários fatores excluem a possibilidade de crime. Primeiro porque essa lei que o Ministério Público está arrimado é uma lei que foi suprimida pela Lei de Radiodifusão Comunitária, de 1998. Essa lei em que o Ministério Público está arrimado é uma lei de 1968, editada por Castelo Branco. Só que em 1998 foi editada uma lei específica para Rádio Comunitária. E nessa lei específica de Rádio Comunitária não existe pena de privação de liberdade, de apreensão de equipamento. O que existe é: primeiro, uma advertência; segundo, uma multa; e terceiro uma determinação de suspensão da atividade. Então, a juíza vai julgar como determina o Código Civil em que a lei antiga é suprimida pela lei nova.


Hoje eles juntaram vários casos. Inclusive um dos acusados que ali esteve saiu com uma multa para pagar, em cestas básicas. Quer dizer que a Anatel continua fazendo sua perseguição, de forma ilegal. E isso, com apoio do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Justiça Federal.


J.E. – A arbitrariedade é uma coisa inconcebível. O nome já está dizendo: arbitrariedade. Um ato em que você chega para a pessoa e faz todo aquele aparato, toda aquela coisa suntuosa, e a pessoa tem medo. Porque a imponência da espada da Justiça ameaça o cidadão comum, aquele que nunca esteve numa situação como essa. Porque na lei, no papel, ele é cidadão, tem direitos, mas na prática ele é réu, é tratado como um rebotalho. Ele é tratado como escória, é tratado como marginal. Na prática. Então, é preciso que os professores das universidades, quando estiverem dando o curso de Direito, de Direito Constitucional, digam para os alunos que existe uma diferença entre a prática e a teoria, como existe uma diferença do dia para a noite. Existe uma diferença da teoria para a prática. Na teoria, nós todos somos cidadãos. Na prática, a classe pobre, que não tem condições, não é tratada dessa forma. Você se impõe a outras pessoas, como você mesmo viu, só pelo medo. A pessoa tem medo e cede, para fazer acordo de uma coisa que é ilegal. Como é que a Justiça vai acatar uma decisão da Anatel? Porque a Anatel não tem poder de polícia. A Anatel é uma agência criada pelo governo federal para atuar na questão técnica. E hoje ela está obsoleta. E como é que esse órgão, num Estado Democrático de Direito, se arvora no direito de invadir a sede de associações, de passar por cima da Constituição, de passar pelos tratados internacionais que o Brasil assinou, as convenções que o Brasil assinou, como o Pacto da Costa Rica, a Constituição Federal e também a Lei de Radiodifusão Comunitária?


A gente vê que a rádio do político continua funcionando, e muitas vezes fazendo mal à população, pois se utiliza da mentira, do engodo e de subterfúgios. Nisso, a gente vê uma elite que se apropria do Estado e o administra para seus próprios fins, contra o povo. Os três poderes atuando em conjunto contra o povo.


J.E. – Contra o povo. Tudo é contra o povo. Aonde você chega, os sustentáculos do poder são contra o povo. Aqui é uma elite, sob uma religião de gananciosos, egoístas, tarados, doentes, contra a população. Então, para manter seus privilégios, eles passam por cima de tudo. Inclusive você está vendo aí o espetáculo, como a gente já denunciou em outras reportagens, que a barbárie está predominando. Precisa dizer mais alguma coisa?

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Jornalista, Natal, RN; http://radarpotiguar.
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