A revista Época (nº 633) desta semana traz uma reportagem sobre propostas que tramitam no Congresso Nacional para flexibilizar o horário de transmissão d´A Voz do Brasil. A palavra ‘flexibilizar’ me soa estranha, mas a verdade é que ela não é tão nova assim. O dicionário Houaiss diz que esse verbo, ‘flexibilizar’, surgiu em 1913. Tem o sentido, entre outros, de ‘tornar menos rígido’. O programa de rádio em questão, A Voz do Brasil, também não é recente. Surgiu em 1935. Virou obrigatório na ditadura de Getúlio Vargas, em 1935. Todas as emissoras do país ficaram com o dever de retransmiti-la. Dizem que é a mais antiga atração do rádio brasileiro a se manter no ar sem interrupções. Nesse assunto, portanto, a única novidade seria a discussão sobre manter ou não manter a obrigatoriedade da Voz, mas mesmo essa discussão já tem algumas décadas. Enfim, estamos aqui ingressando no campo das velharias.
E também no campo das velhacarias.
Curioso dialeto
Um exemplo de velhacaria é a conversa de alguns políticos que dizem que o noticiário oficial é ‘importantíssimo’ nos ‘rincões’ desse nosso ‘país continente’ e, por isso, para o bem de todos e para a felicidade geral da nação, não pode ser facultativo de jeito nenhum. Precisa ser obrigatório. A premissa é falsa e a conclusão é interesseira.
Para saber que a premissa é falsa não é necessária nenhuma pesquisa de audiência. Basta escutar o noticiário. Escutando, a gente se dá conta de que a língua falada pelo programa é inacessível para o brasileiro médio, especialmente para o suposto habitante dos tais rincões. Tanto no horário do Poder Legislativo como no do Judiciário, assim como no horário do Poder Executivo – apesar das mudanças que este último procurou imprimir em sua edição, de alguns anos para cá –, o que se tem é um linguajar próprio dos relatórios de gestão da administração pública, oficialista em demasia, com profusão de dados, de nomes, de siglas exóticas e por vezes esotéricas.
É uma pena, mas ainda é assim. Isso não retira o valor do esforço dos profissionais envolvidos na operação, vários deles de reconhecida competência. A questão é o peso da comunicação de Estado, o protocolo, a liturgia e os salamaleques que bloqueiam a necessária informalidade da comunicação popular no rádio. Embora possa veicular eventualmente reportagens bem feitas e relevantes – o que não se costuma reconhecer, mas é fato – a Voz não dá boa audiência nas metrópoles e muito menos nos rincões. Ela é falada num dialeto curiosíssimo, que vem do cruzamento do latim com o DAS.
‘Falem bem, e oficialmente, de mim’
Aí é que vem o argumento interesseiro da velhacaria política. A maioria dos parlamentares, da Câmara e do Senado, gosta de aparecer no noticiário chapa branca de suas respectivas casas legislativas. Gostam de ouvir ali o seu nome citado. Acreditam que desse modo se mantêm em alta em suas regiões eleitorais. Acreditam que A Voz do Brasil é uma boa promoção pessoal e, melhor ainda, sem custo (para eles). Por isso, lançam mão da premissa de que lá longe, nas profundezas do Brasil, os cidadãos ficam escutando o que mais ninguém quer saber de ouvir, e, em nome deles, dos que moram nos rincões de ouvido colado no rádio oficial, defendem A Voz do Brasil obrigatória em suas freguesias políticas.
Estão enganados nas duas postulações, na premissa e no argumento. Não obstante, seguem inflexíveis. Resistem a qualquer possibilidade de mudança. Resistem em silêncio.
Às vezes alguém pergunta por que, depois de tantas décadas, a obrigatoriedade de retransmissão d’A Voz do Brasil ainda não foi revista. Pois a resposta é essa e apenas essa: as maiorias parlamentares, as maiorias quase anônimas do chamado baixo clero e não apenas essas, gostam da Voz do jeito que está e, para não brigar com suas bases, os governos deixam tudo por isso mesmo. Assim, a velharia vai ficando, vai ficando, vai ficando.
Já escrevi sobre esse mesmo assunto em outras ocasiões. Dediquei a isso dois capítulos inteiros de um livro, Em Brasília, 19 horas (São Paulo: Editora Record, 2008). Mas, como o tema vai e vem, imagino que seja oportuno voltar a ele eu também, com o perdão da rima involuntária. Há nele uma convicção profunda da mentalidade brasileira sobre a comunicação pública que me interessa de modo especial. Falo da convicção de que a comunicação pública é sempre, de modo disfarçado ou mais escancarado, um modo de martelar doutrinas e opiniões sobre a consciência dos cidadãos. É uma convicção ancestral, atávica, imutável. É a convicção de que, pela repetição exaustiva, o povo vai acabar se convencendo das teses do governo. Para sintetizá-la em duas palavras, pode-se dizer que essa é a convicção pétrea de que a comunicação pública nada mais é do que propaganda política. Creio que esse assunto interessa de perto ao debate sobre democracia no Brasil.
A convicção de que falo, aqui, tem matizes que podem variar um pouco, de acordo com a ocasião e o usuário, mas está presente em todo o espectro ideológico nacional. Está presente na direita mais conservadora e na esquerda mais dura – aquela que não soube se tornar ‘menos rígida’, como diz o dicionário, aquela que não se ‘flexibilizou’. Pode ser encontrada na instalação da Imprensa Régia no Rio de Janeiro, em 1808, já sob censura, com a incumbência de promover a propaganda de Estado, nesses termos exatos, assim como pode ser encontrada no cerne do Estado Novo, com o seu Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e com sua Voz do Brasil compulsória.
Ela pode ser encontrada ainda nos diários oficiais ‘ilustrados’, uma invenção ‘criativa’ de prefeituras ditas populares, e nos caminhões de dinheiro público que são descarregados diariamente nas emissoras comerciais para pagar a publicidade dos muitos governos. Essa convicção está em toda parte, como um denominador comum da cultura política no Brasil.
O que há de mais parecido entre os partidos políticos brasileiros do que a propaganda que eles fazem na TV, durante o horário eleitoral? Pois eles são parecidos nisso, muito parecidos, porque a visão que todos têm de comunicação com a sociedade é muito, muito parecida. Ou mesmo igual.
A obrigatoriedade suicidante
É dessa visão igual, dessa unanimidade suprapartidária, que A Voz do Brasil se vitimou. Veja bem o leitor: eu escrevi que a obrigatoriedade vitima A Voz do Brasil. Precisamente isso. O maior prejudicado com as amarras da retransmissão compulsória é ninguém menos que o próprio programa.
Na opinião dos esgrimistas de argumentos falsos, a obrigatoriedade seria a grande salvadora, a maior responsável pela inacreditável longevidade do noticiário oficial (um notório oximoro, isto sim), mas é o contrário, é verdadeiramente o contrário. A obrigatoriedade está matando A Voz do Brasil aos poucos. O caráter de imposição faz com que ela chegue ao ouvinte com sua credibilidade quase que totalmente corroída. Mesmo para o ouvinte que goste do governo, ele acaba não levando A Voz a sério.
Num tempo em que as tecnologias da informação ganham recursos bem menos monótonos do que aqueles existentes nos anos 1930, em que o público tem mil caminhos e mais outros mil para se desviar das mensagens compulsórias, tempo em que o próprio Poder Judiciário vem cuidando de desmoralizar a lei que impõe a obrigatoriedade, tempo em que as emissoras de rádio se beneficiam de liminares aos baldes para escapar dessa velha imposição, tempo em que, numa cidade como São Paulo, já é difícil encontrar uma rádio que transmita A Voz do Brasil no seu horário regular, o chapabranquismo imposto à força vai jogando no ridículo completo um programa que, apesar de antigo, poderia ser útil e até mesmo apreciado por alguns.
Atenção, políticos: os senhores querem salvar A Voz do Brasil? Pois então acabem com a obrigatoriedade. Não falo de ‘flexibilizar’, de tornar a obrigatoriedade menos rígida – menos, por assim dizer, obrigatória. As propostas em curso falam de deixar para as rádios a ‘flexibilidade’, como a de retransmitir o programa entre 19 horas e meia noite. Francamente, é pouco. Nem a Rádio Cultura FM de São Paulo, uma rádio pública, uma rádio que não é comercial, nem ela se enquadraria nisso. Hoje, pouca gente se dá conta, a Cultura FM veicula A Voz do Brasil, às três da manhã, quando até mesmo os guardas noturnos roncam em seu terceiro sono. Em Brasília, 19 horas? Nada disso: para o ouvinte da Cultura FM, são três da matina. Para que não se acabe até o fim com A Voz do Brasil, é preciso acabar com a obrigatoriedade.
Livre desse caráter compulsório, A Voz poderia despertar um interesse legítimo em ouvintes e em emissoras – sobretudo nas públicas. Poderia disputar a audiência em termos saudáveis e fazer diferença pela substância das reportagens que fosse capaz de pôr no ar. De sua parte, as emissoras também estariam livres para usar as matérias da Voz de forma solta, dispersa, aproveitando trechos aqui e ali. A Voz do Brasil passaria a funcionar também como agência de notícias de rádio. Ela tem equipe e estrutura para enfrentar com dignidade essa vida real. Teria o que oferecer. Mas, pateticamente, vem sendo sufocada pela obrigatoriedade – que se tornou, com o tempo, uma obrigatoriedade ineficaz, sem efetividade jurídica, ridicularizada pelas liminares que duram anos, décadas, que valem mais que a própria lei.
Alguém aí se lembra do direito à informação?
A comunicação pública não é nem poderia ser impositiva. A comunicação pública – aí compreendidas a comunicação de Estado e a comunicação de governo – deve decorrer do direito à informação do cidadão, ou seja, ela deve ser pautada por aquilo que o cidadão tem o direito de saber, e não por aquilo que as autoridades têm interesse (eleitoral) em alardear. A comunicação pública é um instrumento pelo qual a sociedade tem janelas para fiscalizar a gestão pública, não um palanque para que os governantes façam campanha em torno de fogos de artifício enquanto escondem em gavetas e cofres o que é fundamental.
A Voz do Brasil poderia ser diferente, poderia estar adequada a tempos atuais, mas não: preferiram sufocá-la pelo garrote, fazendo com que ela sobrevivesse por aparelhos como caricatura mórbida de tempos idos.
Ah, sim, ainda existem aqueles, os mais caricatos de todos, que argumentam a boca pequena que A Voz do Brasil é uma ‘cunha’ do poder público dentro do ‘monopólio’ da mídia privada. Incapazes – ou impedidos pelos seus chefes – de propor a discussão que interessa, a de uma regulamentação e uma regulação democráticas para o setor de radiodifusão, nos moldes do que já existe há quase oitenta anos nos Estados Unidos, entre outros países, esses aí defendem a Voz do Brasil como uma reserva ecológica de governos ‘progressistas’ (palavrinha de 1876) em meio aos vendilhões da ‘mídia privada’.
Bem, com esses é mais difícil conversar. Além de achar que a tal ‘mídia’ é um bloco indiviso, submetido a um comando secretamente organizado e monolítico que a comanda como partido político de oposição, eles também acreditam que o Estado é um partido, um partido de situação. Diante de tal ideário, convenhamos, A Voz do Brasil é um detalhe desprezível. O problema dessas pessoas está em outro lugar. E disso não vou falar agora. Agora, não.
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Jornalista, professora da ECA-USP