Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Anatel abre consulta sobre neutralidade de rede

A área técnica da Anatel, a partir das superintendências de Regulamentação, Direitos do Consumidor e Competição, abriu nesta terça, 31, consulta pública até o dia 4 de maio com perguntas sobre neutralidade de rede. A consulta será realizada numa nova plataforma interativa, pelo site da Anatel. Segundo o superintendente de regulamentação, Alexandre Bicalho, a ideia é ter subsídios para que depois a Anatel prepare um posicionamento formal a ser enviado à presidência da República no processo de regulamentação do Marco Civil, conforme prevê a lei. A agência, nesta fase, não emite opiniões nem estabelece modelos a priori. A ideia é simplesmente ouvir a sociedade, diz Bicalho. A agência ainda avalia se deverá ou não realizar uma audiência pública. Se isso for acontecer, será na terceira semana de abril, diz o superintendente.

A Anatel enxugou um pouco as perguntas em relação ao que estava sendo desenhado e discutido internamente na agência até a semana passada. Essencialmente, a agência deixou de fazer perguntas específicas sobre modelos de negócio, como zero-rating (acesso gratuito a determinados conteúdos) ou planos com acesso limitados a determinados serviços. Segundo Bicalho, esta opção foi para não induzir o debate nem mostrar nenhum tipo de viés da agência. Da mesma forma, a Anatel optou por não fazer perguntas específicas sobre relações no atacado entre empresas, como contratação de CDNs e acordos de peering. Segundo Carlos Baigorri, superintendente de Competição, as perguntas estão colocadas de maneira genérica, justamente para não induzir nenhuma resposta. Mas a agência espera que esses temas sejam colocados pela sociedade.

Por fim, a Anatel optou por não fazer a pergunta que será crucial após a regulamentação: quem deve regular as exceções à neutralidade de rede. Segundo Bicalho, essa omissão nas perguntas se deve ao fato de que o grupo de trabalho técnico entende que esse não é um tema que deva ser colocado nesse momento, e nem nessa esfera de discussão, já que a regulamentação virá da Presidência da República.
Confira agora as perguntas colocadas pela Anatel sobre cada um dos temas:

Tema 1 – Prestação adequada de serviços e aplicações:

Nesse item a Anatel parte da premissa de que os provedores de serviço de acesso à Internet precisam controlar determinados parâmetros como velocidade de banda, latência etc para a prestação adequada do serviço, mas quer entender como esses parâmetros podem ser cotejados com as disposições do Marco Civil da Internet. Segundo o documento elaborado pela Anatel, “para ofertar o serviço adequadamente, garantindo os requisitos de qualidade das diversas aplicações e conteúdos, os responsáveis pela transmissão, comutação ou roteamento realizam, normalmente, um determinado tipo de gerenciamento de tráfego, de maneira a tratar os diferentes tipos de conteúdo de acordo com seus requisitos de qualidade”. As perguntas que a agência faz então são:

1) Quais requisitos técnicos poderiam ser elencados para garantir a qualidade e prestação adequada dos diversos serviços e aplicações cursados sobre o ecossistema da Internet, consideradas as especificidades de cada serviço e aplicação?

2) A regulamentação sobre neutralidade de redes deveria elencar os requisitos técnicos de maneira exaustiva? Ou seria melhor elencar critérios segundo os quais um determinado requisito técnico poderia ser utilizado para garantir a prestação adequada de serviços e aplicações?

3) A informação clara e transparente aos usuários, prévia à contratação dos serviços ou aplicações, das técnicas de gerenciamento do tráfego adotadas para sua prestação adequada poderia ser considerada como requisito suficiente para caracterizar ausência de danos a estes usuários?

Tema 2 – Relações entre os agentes envolvidos:

Aqui, a premissa da Anatel é a de que no ecossistema da Internet existem relacionamentos comerciais entre as empresas que atuam na cadeia e que nesse relacionamento comercial são admitidos níveis diferenciados de serviço, qualidade, confiabilidade etc. Segundo a agência, “estes parâmetros de desempenho estabelecidos estão diretamente relacionados ao tipo de conteúdo e aplicação a serem disponibilizados, havendo, portanto, uma conjunção entre os requisitos de qualidade exigidos pela aplicação e o tipo de conexão ou solução de hospedagem envolvida no acordo”. Diante do que é estabelecido no Marco Civil, a Anatel pergunta:

1) Como se pode garantir a proporcionalidade, transparência, isonomia e não discriminação, preconizados pelo MCI, nas relações entre os diversos agentes do ecossistema da Internet (usuários, provedores de aplicações e conteúdos e prestadores de serviços de telecomunicações)? São possíveis condições de exclusividade nestas relações?

2) Nestes relacionamentos, em quais seria mais esperado o comportamento anticoncorrencial pelos responsáveis pela transmissão, comutação ou roteamento, ferindo o princípio da neutralidade da rede? Por quê?

3) Em que medida as ferramentas tradicionais de tratamento de condutas anticompetitivas, podem e/ou devem, prévia ou posteriormente, ser utilizadas nos relacionamentos entre os agentes que compõem o ecossistema da Internet?

Tema 3 – Modelos de negócio:

Aqui a Anatel busca entender como conciliar o Marco Civil nas práticas já ocorrentes de acesso a determinados conteúdos sem cobrança pelo tráfego de dados, como os modelos de zero rating. São situações em que, segundo o entendimento da agência, “(i) a prestadora seleciona uma aplicação específica para que o tráfego gerado pelo acesso a essa aplicação não seja cobrado do usuário; (ii) a prestadora isenta o usuário da cobrança de dados para aplicações de interesse público e sem fins comerciais; (iii) o provedor de aplicação e conteúdo paga diretamente a prestadora pelo tráfego gerado por seus usuários (acesso patrocinado)”.
Cotejando esse cenário com o que dispõe o Marco Civil, a agência pergunta:

1) Quais as vantagens e as desvantagens que ofertas tais como as mencionadas acima podem trazer para os usuários, para os prestadores de serviços de telecomunicações e para os provedores de aplicações e conteúdos?

2) Qual seria a melhor forma de conduzir a regulamentação da neutralidade de rede, dadas as vantagens e desvantagens para os diversos agentes envolvidos nestas ofertas, em especial os usuários?

3) Quais os benefícios para uma regulação prévia e exaustiva (ex-ante) de modelos de negócio possíveis à luz da neutralidade de rede ou, alternativamente, quais os benefícios de uma regulação baseada em critérios gerais, com a avaliação de casos específicos a posteriori (ex-post)?

4) Existiriam outras formas de abordagem de regulamentação que atendam aos objetivos e demais determinações do Marco Civil da Internet? Quais as vantagens e as desvantagens dessas opções para os diversos agentes envolvidos, em especial os usuários?

Tema 4 – Comunicação de emergência:

Aqui, o problema a ser enfrentado pela Anatel é como dar prioridade a determinados serviços de emergência no ambiente das redes de dados, o que é admitido pelo Marco Civil. Diante disso, a agência pergunta:

1) Qual seria a melhor maneira de a regulamentação endereçar as exceções à neutralidade de rede para serviços de emergência: (i) elencar um rol exaustivo de serviços de emergência que se enquadrariam nestas exceções; (ii) elencar um rol exemplificativo de serviços de emergência que se enquadrariam nestas exceções, bem como os critérios segundo os quais um determinado serviço seria classificado como de emergência.

2) Nas duas hipóteses, quais os serviços de emergência que deveriam compor o rol de exceções à neutralidade de rede, seja ele exaustivo ou exemplificativo?

3) Quais deveriam ser os critérios para classificar um determinado serviço como de emergência?

Tema 5 – Bloqueio do conteúdo a pedido do usuário:

Aqui a Anatel quer saber como lidar com casos em que o usuário venha a solicitar ao provedor de acesso o bloqueio a determinados conteúdos. A pergunta da agência é simples:

1) A prestadora poderia, a pedido do usuário, implantar soluções de bloqueios de determinados conteúdos/aplicações, tais como jogos, pornografia, redes sociais, entre outros?

Perguntas da Anatel sobre neutralidade optam por não testar hipóteses

A Anatel optou, deliberadamente, por deixar de fora de sua consulta sobre neutralidade de rede algumas perguntas específicas sobre modelos de negócio que poderão ser praticados pelas empresas provedoras de acesso e serviço. A explicação da agência foi a de que as perguntas poderiam induzir um viés nas respostas ou induzir determinadas discussões. Alguns pontos que foram deixados de fora, contudo, eram oportunos dentro das realidades de serviços que já são encontradas no mercado hoje.

Um dos temas mais polêmicos atualmente é dos serviços oferecidos, sobretudo pelos provedores de banda larga móvel, de acesso gratuito a determinados conteúdos, chamado no jargão setorial de “zero-rating”. Uma das perguntas que chegou a ser cogitada pela Anatel era muito específica sobre esse tema, segundo apurou este noticiário. Mas no documento final a pergunta ficou de fora.

A Anatel buscava analisar de que forma regular ofertas desse tipo. Entre as hipóteses questionadas estavam a de permitir a gratuidade do tráfego para algumas aplicações ou conteúdos; permitir a gratuidade de tráfego para algumas aplicações ou conteúdos, mas estabelecer regras a serem seguidas pelas prestadoras e dar aos órgãos reguladores o poder para obrigar a cessação desta prática após julgar, caso a caso, a conduta dos prestadores no âmbito da neutralidade de redes e da defesa da concorrência; e proibir totalmente qualquer gratuidade nestes moldes. A agência questionava qual destas opções seria a melhor forma de conduzir a regulamentação da neutralidade de rede para conciliar as vantagens e desvantagens para os diversos agentes envolvidos.

A agência também pensava em incluir nos questionamentos se nos modelos em que seja possível a oferta de gratuidade do tráfego para algumas aplicações ou conteúdos, o usuário poderia continuar utilizando as aplicações e os conteúdos gratuitos mesmo após o término de sua franquia de dados. Esse item acabou ficando de fora de maneira explícita.

A agência considerou ainda a possibilidade de abrir perguntas sobre modelos de ofertas de planos de acesso com limitações de conteúdos. Por exemplo, acessos que só permitissem o uso de e-mail ou redes sociais. Ou ofertas que dessem prioridade a serviços de vídeo, sem discriminação. No final, contudo, a agência optou por não ser muito específica nesses questionamentos sobre modelos possíveis.

Já questões de relacionamento industrial entre provedores de acesso e provedores de conteúdo, como modelos de contratação de CDNs, acordos de qualidade de serviço (SLA) e contratos de troca de tráfego e peering acabaram sendo mencionados nas análises e nos preâmbulos que embasam as perguntas tornadas públicas, mas não há questionamento direto sobre esses modelos

Netflix quer que Anatel seja responsável por fiscalizar regras de neutralidade

A Netflix é a primeira provedora de conteúdo a, abertamente, defender o papel da Anatel na fiscalização da observância dos princípios da neutralidade de rede a serem implementados no decreto de regulamentação do Marco Civil. Para a empresa, provedora de serviço de conteúdo on-demand sobre redes de banda larga, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) separa os Serviços de Valor Adicionado dos serviços de telecomunicações, mas assegura aos SVAs acesso às redes. Para a empresa, há grande preocupação sobre a regulamentação da neutralidade de rede no que diz respeito justamente a esses pontos de acesso pelas empresas de conteúdo. A manifestação está na contribuição feita ao Ministério da Justiça em relação à regulamentação do Marco Civil de Internet, consulta que terminou nesta terça, 31.

Para a empresa, não basta garantir neutralidade na última milha, mas também é preciso garantir isonomia no acesso a qualquer ponto da rede, sem “bloqueios, taxas de acesso e discriminação injustificada em qualquer ponto da rede de telecomunicações”.

Na contribuição, a Netflix diz ainda que “prestadores de serviço de conexão devem ter flexibilidade suficiente para gerenciar suas redes. Trata-se de uma solicitação justa. Entretanto, as situações nas quais essa discriminação e/ou degradação são legalmente aceitáveis devem ser muito restritas”.

Sem cobrar e com mais interconexão

Segundo a manifestação da empresa, em nenhuma circunstância o prestador de serviço de conexão à Internet deveria ser autorizado a cobrar de provedores de conteúdo pela referida administração da rede, com o intuito de garantir uma melhoria na qualidade de transmissão nem para alguma forma de priorizar o tráfego. Ao permitir qualquer espaço para essas cobranças, irá se criar um incentivo perverso para que um prestador de serviço de conexão à Internet deixe seus pontos de acesso congestionados”.

Para a Netflix, a regulamentação deve ainda assegurar que os provedores de serviço de conexão não degradem ou discriminem o tráfego por fontes específicas nem cobrem para evitar a degradação, sendo encorajados a trocar tráfego abertamente quando os provedores de conteúdo tomarem medidas para fornecer o seu conteúdo de forma mais eficiente.
Ainda segundo a Netflix, a regulamentação deve evitar o favorecimento de determinados provedores de conteúdo por meio de pagamento e deve obrigar os provedores de banda larga a abrir pontos suficientes de interconexão para que seus assinantes possam receber os dados na velocidade adquirida, sem que isso implique se responsabilizar pelo transporte dos dados para além de suas próprias redes.

Consulta traz diferentes propostas sobre o papel da Anatel

O papel da Anatel após a edição da regulamentação do Marco Civil da Internet é tema que divide os comentários feitos à consulta realizada pelo Ministério da Justiça e encerrada nesta terça, 31.

A ABDTIC (Associação Brasileira de Direito das Tecnologias da Informação e das Comunicações) “entende que compete à regulamentação do MCI indicar, de forma clara e objetiva, as competências de todos os órgãos públicos envolvidos, bem como os destinatários da Lei, evitando-se, assim, futuros questionamentos/conflitos com relação à abrangência subjetiva dessas normas”. A entidade ressalta que o Poder Executivo (via Decreto nº 5.581, de 10 de novembro de 2005, e Decreto nº 4.733/2003) estabeleceu objetivamente as competências do Ministério das Comunicações e da Anatel para o disciplinamento do acesso à Internet e da inclusão digital. Segundo a ABDTIC, “as agências reguladoras foram criadas por diversas razões, mas especialmente no caso do setor de telecomunicações, devido ao fato inexorável de que a lei não consegue acompanhar a velocidade do desenvolvimento tecnológico. A lei e os decretos que visem regulamentá-las não podem prever todas as hipóteses e fatos decorrentes deste processo, sequer suas consequências”. Ainda segundo a ABDTIC, a regulamentação do Marco Civil da Internet deve levar em consideração “todos estes dispositivos, que estão em pleno vigor.”

Já entidades com o coletivo Intervozes e o Idec defendem a criação de um Sistema de Proteção à Neutralidade da Rede, articulado a partir de estruturas já existentes e que gozam de diferentes competências. Somente dessa maneira seria possível garantir uma ação contínua e dinâmica voltada à previsão de normas complementares ao regulamento, à definição de padrões e parâmetros técnicos, à fiscalização permanente (e não só responsiva a denúncias e casos específicos de violação) e ao estabelecimento de punições com base no Marco Civil da Internet e demais legislações aplicáveis. Esse sistema seria liderado pela Anatel, mas com a participação do Cade, Senacom e CGi.br, segundo a proposta.

“A princípio, não identificamos a necessidade da criação de uma nova autoridade, mas entendemos que os desafios para a garantia da neutralidade da rede podem ser enfrentados por meio do trabalho articulado dessas instituições, cada uma na sua esfera de atribuições, com a designação de servidores e recursos internos dedicados à regulação e fiscalização da neutralidade da rede. Ressalte-se que a existência de estruturas internas, em cada entidade, dedicadas a essa tarefa é condição primordial para o funcionamento do ‘Sistema’ e a efetivação da não discriminação conforme prevista na LGT e no Marco Civil da Internet”, diz a contribuição do Idec.

Para a Abranet, esse papel regulador também cabe à Anatel. A associação, citando a Lei Geral de Telecomunicações, diz que “a Anatel, que, juntamente com o CGI.br, será ouvida na regulamentação a ser editada pelo Poder Executivo, recebeu comando expresso do legislador para também assegurar a plena observância da neutralidade de rede, sob a ótica das empresas detentoras de infraestruturas essenciais ao acesso à Internet”.

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Samuel Possebon, do Teletime