Sempre que os proprietários da mídia impressa se sentem ameaçados em seus interesses recorrem a Thomas Jefferson (1743-1826). Uma de suas frases, inserida em longo parágrafo de carta escrita de Paris para Edward Carrington, em 1787, é recorrentemente citada:
"A base de nossos governos sendo a opinião do povo, o primeiro objetivo deve ser mantê-la exata; fosse deixado a mim decidir se deveriam ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir este último".
A preferência de Jefferson pelos jornais em relação ao governo é inequívoca. No entanto, há vários aspectos que precisam ser esclarecidos. Vamos a eles.
Em primeiro lugar, a carta de Jefferson continua e a próxima frase do mesmo parágrafo é a seguinte:
"Mas insistiria em que todo homem recebesse esses jornais e os soubesse ler".
Vale dizer que existe uma condição para a preferência pelos jornais: eles devem chegar a todos e, mais importante, todos devem saber ler. Há aí um inequívoco compromisso com o caráter universal da opinião do povo e com a necessidade de que todos sejam educados para que possam ler o que está escrito nos jornais.
Em segundo lugar, se todos devem receber os jornais, isso significa que está implícita a existência do direito de todos à informação. Na verdade, o princípio Iluminista, prevalente no século 18 e que suporta a posição de Jefferson, é de que o povo precisa estar exposto à diversidade de idéias porque é assim que a verdade emergiria.
Em terceiro lugar, Jefferson referia-se a uma opinião construída no debate livre de idéias nas comunidades, no contato face-a-face, nos town meetings. Era nessa "esfera pública" que os assinantes de jornais discutiam e definiam quais eram os interesses da comunidade. É assim que as comunidades devem ser "governadas" e é esse tipo de governo que não pode existir sem os jornais. Essa posição republicana de Jefferson contrapõe-se àqueles que enfatizavam a busca dos interesses privados individuais como caminho para se chegar ao bem-comum.
E finalmente, o mais importante, é que os jornais aos quais Jefferson se referia eram os jornais da partisan press, ou seja, jornais partidários que expressavam as posições dos partidos políticos. Esses jornais desapareceram com o surgimento da penny press – os jornais-empresas feitos para atender prioritariamente aos interesses dos anunciantes e do mercado – e com o surgimento do jornalismo profissional.
"Falsidades e erros"
Qualificada com essas observações, a famosa frase de Jefferson certamente nos convida a refletir sobre as diferenças históricas das circunstâncias a que ele se referia e aquelas em que vivemos hoje no Brasil, mais de dois séculos depois.
Como se sabe, na nossa versão de democracia liberal, a grande imprensa é uma instituição privada poderosa, concentrada nas mãos de uns poucos grupos empresariais familiares, beneficiaria da propriedade cruzada e da ausência histórica de formas democráticas de regulação. Quais as conseqüências desse quadro para a universalização da opinião do povo, da pluralidade de fontes e da diversidade de conteúdos implícitas na posição Iluminista de Jefferson?
Em vez de responder à indagação proposta, cito outra frase de Jefferson, uma que não é encontrada facilmente nos jornais. Escrita em 1807, quando ele já era presidente dos Estados Unidos, também é retirada de uma carta, esta dirigida a John Norvell. Diz Jefferson:
"É uma triste verdade que a supressão da imprensa não poderia privar mais completamente a nação de seus benefícios do que se se prostituíssem os jornais, entregando-se à publicação de mentiras. Não se pode agora acreditar no que se vê num jornal. A própria verdade torna-se suspeita se é colocada nesse veículo poluído. A verdadeira extensão deste estado de falsas informações é somente conhecida daqueles que estão em posição de confrontar os fatos que conhecem com as mentiras do dia. Encaro realmente com comiseração o grande grupo de meus concidadãos que, lendo jornais, vive e morre na crença de que souberam algo do que se passou no mundo em seu tempo, ao passo que os relatos que leram nos jornais são uma história tão verdadeira quanto a de qualquer outro período do mundo, só que os nomes de figuras da atualidade a elas são apostos. (…) O homem que não lê jornais está mais bem informado que aquele que os lê, porquanto o que nada sabe está mais próximo da verdade que aquele cujo espírito está repleto de falsidades e erros".
Talvez fosse apropriado concluir essas breves anotações com outra frase famosa, esta do jornalista americano A. J. Liebling, cujo centenário de nascimento se comemora este ano:
"Freedom of the press is guaranteed only to those who own one". (A liberdade de imprensa é garantida apenas para aqueles que a tem.)
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Professor aposentado da Universidade de Brasília, fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, autor de Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo)