Significava real, régio, com o tempo passou a designar algo sem dono, público. D. João VI destinou a enorme campina para servir de pastagem e, a partir do final do século XIX, saiu a boiada e entraram canhões, cavalaria e aviões nas suas escolas e quartéis militares. Num deles, durante o regime militar, foi encarcerado o cantor-compositor Gilberto Gil, que lembrou o episódio com uma famosa canção, ‘Alô, alô, Realengo, aquele abraço’.
O massacre nesta quinta (7/4) numa boa escola pública do pacato bairro carioca coloca o Brasil na sangrenta rota dos serial-killings em colégios e universidades. E nos empurra para a mesma perplexidade que atormenta a sociedade americana – onde a mania começou –, também a francesa, alemã, finlandesa e chinesa, onde os seus maníacos logo a adotaram.
Sem explicação
Ao lado do luto, a revolta, no fundo a dilacerante angústia: qual o mecanismo que produziu esta aberração? Que diabólica combinação intoxicou a mente de Wellington de Oliveira e o levou a organizar e cometer as execuções com tanta frieza? Apertou o gatilho mais de 60 vezes, tinha critérios, fez opções no tocante ao sexo das vítimas e ao ponto onde queria atingi-las (a maioria eram meninas, baleadas principalmente na cabeça, tórax e os meninos, em pontos menos letais).
O assassino completou o primeiro grau, escrevia corretamente (sua carta não contém erros graves), estava desempregado por opção, a casa onde morava era sua. O quadro habitual de miséria não se associa a esta transgressão, a perturbação da mãe biológica, sim. Seu comportamento anti-social já chamara a atenção e, ao que consta, iniciou um tratamento logo interrompido. A doença mental não difere das demais, deve ser tratada sem preconceitos, pode contaminar. Confundida com loucura faz dos enfermos párias ou monstros como Wellington.
Tinha amor aos bichos, mas não possuía amigos. Seu confidente e testemunha era um computador que destruiu na véspera, antes de iniciar a faina. O seu diálogo com o mundo fazia-se através da Internet.
Usava uma longa barba, mas raspou-a antes do banho de sangue. O uso da web o ensinou a recortar e colar fragmentos de crenças e dogmas, certo de que com estes retalhos construiria uma unidade. Costurou, até agora, 13 mortalhas.
Desarmamento
Não foi o único, nem é caso raro. A carta que digitou, imprimiu e deixou na escola onde estudou e transformou em cadafalso é um retrato falado da sua mente. Reproduz uma mentalidade pseudo-espiritual que combina aleatoriamente misticismos e ritos variados numa profana caricatura de religiões e sacralidade. Wellington de Oliveira encarna o clamoroso fiasco das confissões e seitas religiosas para a melhoria da humanidade.
Encarna também o redundante fracasso dos governos no controle das armas de fogo. Nos EUA morrem baleados cerca de doze mil cidadãos por ano. Aqui, é um genocídio: 50 mil. O lobby das armas venceu o referendo de 2005, mas o Estatuto do Desarmamento é perfeito – ninguém zela por ele. É preciso não esquecer que na China, onde não existe o porte ilegal de armas de fogo, as escolas são atacadas por serial-killers armados com facas.
O Rio não merece os dois horrores deste ano: dilúvio na região serrana do estado e o massacre no Realengo, zona oeste da cidade. O menino que no meio da matança saiu correndo para chamar a polícia, o sargento que acertou o criminoso antes que continuasse atirar, o pronto atendimento das vítimas, os médicos voluntários, a legião de doadores de sangue, a consternação coletiva, a solidariedade, a agilidade da sua mídia são indícios de uma comunidade disposta a levantar-se. Para ela, aquele abraço.