Ao fazer da revisão do anteprojeto da nova Lei de Direito Autoral um dos temas principais do início de sua gestão, a ministra da Cultura Ana de Hollanda não apenas desagradou setores que apoiavam a reforma debatida ao longo das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC, como também chamou atenção para a dificuldade existente, ainda hoje, para definir os limites e funções da propriedade intelectual. Esta semana, a ministra e compositora afirmou à revista Carta Capital que pensa o direito autoral como ‘uma questão trabalhista’ (‘Se o criador perder o direito a receber pelo seu trabalho, vai viver do quê?’, perguntou), uma posição que reflete aquela defendida por parte da classe artística, mas que provocou críticas dos defensores da flexibilização da atual legislação, entre os quais estão muitos artistas.
Os dilemas da propriedade intelectual e a relação entre artista e mercado são objeto de estudo do ensaísta americano Lewis Hyde, que há três décadas escreve sobre o que chama de ‘a vida pública da imaginação’. Pesquisador do Centro de Internet e Sociedade da Universidade Harvard e professor de escrita do Kenyon College, Hyde gosta de se definir como ‘poeta, tradutor e acadêmico freelancer‘. A partir de sua dupla experiência como artista e pesquisador, publicou em 1983 o livro A dádiva (lançado aqui recentemente pela Civilização Brasileira, com tradução de Maria Alice Máximo), no qual reflete sobre a a dificuldade de tratar obras de arte como mercadoria. O livro se tornou um sucesso especialmente entre artistas, como se pode notar pelos elogios efusivos de escritores como David Foster Wallace, Margaret Atwood, Zadie Smith e Geoff Dyer exibidos no site do autor.
No livro, Hyde usa o conceito antropológico de ‘dádiva’ (no sentido de ‘dom’ ou ‘doação’) para definir a relação entre artista e público: segundo o autor, assim como na troca de dádivas, essa relação é marcada por um vínculo emocional que não existe na simples troca de mercadorias. Assim, ‘as obras de arte existem simultaneamente em duas ‘economias’: a economia de mercado e a economia de doação’, o que leva o artista a ‘sofrer uma constante tensão entre a esfera da doação, à qual sua obra pertence, e a sociedade de mercado, que é seu contexto’, escreve. Essa tensão pode ser ilustrada, por exemplo, pela figura do artista que quer fazer sua obra circular pela internet, mas encontra empecilhos legais ou financeiros para isso.
Autor de outras obras sobre o tema, como o recente Common as air (‘Comum como o ar’, inédito no Brasil), que discute a história da propriedade intelectual do século XVIII até os tempos de Creative Commons, Hyde conversou por e-mail com o Globo sobre os impasses contemporâneos na legislação sobre propriedade intelectual.
Hyde mostrou acompanhar os debates sobre o tema no Brasil e criticou a postura da ministra Ana de Hollanda na polêmica sobre direitos autorais.
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‘Grandes criadores são seres coletivos’
Você resume seu campo de estudo como ‘a vida pública da imaginação’. Como defini-lo e quais são os principais desafios nesse campo?
Lewis Hyde – Tanto a poesia quanto a política sempre foram importantes para mim desde a juventude, e a expressão ‘vida pública da imaginação’ tenta capturar isso. Conversando com um amigo, Goethe uma vez respondeu à pergunta ‘Quem sou eu?’ da seguinte forma: ‘Guardei e usei tudo que vi, ouvi e observei. Minhas obras foram nutridas por incontáveis indivíduos, inocentes e sábios, brilhantes e estúpidos. Infância, maturidade e velhice me trouxeram seus pensamentos, suas perspectivas de vida. Frequentemente colhi o que outros plantaram. Meu trabalho é obra de um ser coletivo que carrega o nome de Goethe’. Concordo com essa imagem. Grandes criadores são ‘seres coletivos’, não indivíduos isolados. Quanto ao ‘principal desafio’, é o impulso político de privatizar tudo, especialmente, agora, as artes e ideias. Não me oponho à propriedade privada nem à ‘propriedade intelectual’, mas é preciso haver um equilíbrio entre o privado e o comum. O equilíbrio tradicional está sob ataque.
Em A dádiva, você especula sobre relações entre propriedade intelectual e culturas baseadas na dádiva. Como a noção de ‘dádiva’ pode ajudar a pensar a propriedade intelectual?
L.H. – Por trás de sua pergunta há outra: o que é ‘propriedade’? Em Comum como o ar, respondo com uma antiga definição: ‘propriedade é um direito de ação’. Se sou o proprietário de uma casa, há muitas ações que posso tomar em relação a ela (pintá-la, vendê-la, emprestá-la a um amigo…) e também há ações que não posso tomar — como, por exemplo, usá-la para estocar armas nucleares. Se tenho o direito de dar algo, então isso também é um tipo de propriedade, baseada na dádiva. Normalmente falamos de ‘propriedade intelectual’ só em termos de um direito de excluir, mas poderíamos facilmente pensá-la em termos de um direito de doar. Muitos pesquisadores entendem que não há como ganhar muito dinheiro com suas ideias; eles preferem vê-las em circulação. Artigos publicados em periódicos acadêmicos são por isso chamados de ‘contribuições’. São propriedades baseadas na dádiva. No livro, tento esclarecer até que ponto muito do que pensamos hoje como ‘propriedade intelectual’ é também propriedade comum, baseada na dádiva.
O livro trabalha com a noção de ‘bens culturais comuns’ (cultural commons). Como você a define?
L.H. – Os bens culturais comuns são aquele grande estoque de arte e ideias que herdamos e que continuamos a criar. Os escritos de Shakespeare, Mark Twain, Tolstói, José de Alencar; o conhecimento sobre como fazer aspirinas e motores a vapor ou transístores; tudo isso e mais.
Em Comum como o ar, você defende a importância de também conhecer o debate por trás da noção contemporânea de ‘propriedade intelectual’. O que é preciso saber sobre a história desse debate?
L.H. – Esse argumento é desenvolvido em mais de 100 páginas, então é difícil dar uma resposta breve. Mas aqui vai um resumo. No século XVIII, se o Estado lhe dava direitos sobre uma obra, ele não estava reconhecendo um direito natural à propriedade, estava conferindo um monopólio. Você tinha o privilégio, por um tempo limitado, de controlar a expressão que havia criado. O limite de tempo era importante porque, na experiência europeia, o controle perpétuo da expressão havia sido frequentemente uma ferramenta de despotismo. Postos em termos positivos, os limites ao monopólio ajudaram a criar uma esfera pública de debate aberto e deliberação, que, por sua vez, ajudou a criar nações autogovernantes.
E como as leis atuais de direito autoral afetam a circulação daquelas obras e ideias que você considera bens culturais comuns?
L.H. – O direito autoral se expandiu imensamente desde sua invenção no século XVIII. Em sua origem, esse direito garantia até 28 anos de controle sobre cópias integrais de uma obra. Além do mais, para garantir esse controle o autor tinha que registrar a obra, pagar uma pequena taxa, e colocar uma notificação de direito autoral no livro impresso. Tudo isso mudou. Na maioria dos países, a exigência de registro caiu e o termo de propriedade pode durar até um século. Nesse e em muitos outros sentidos, o direito autoral se expandiu incessantemente, e cada expansão significa um cerceamento do que antes era comum.
Na sua opinião, o que organizações como o Creative Commons podem fazer para modernizar as leis atuais de propriedade intelectual?
L.H. – Muitos projetos procuram ampliar o conceito de bens culturais comuns trabalhando dentro da lei. O Creative Commons é o mais conhecido, oferecendo já há uma década um pacote de licenças que permitem que os proprietários publiquem suas criações sob termos mais liberais do que os oferecidos pela lei de direito autoral padrão. Um compositor amador pode, por exemplo, lançar suas canções sob uma licença ‘Atribuição — Uso Não Comercial’ que diz, essencialmente: ‘Qualquer um é livre para copiar essa música, remixá-la ou adaptá-la, desde que me cite como autor e não a use para fazer dinheiro’. Ou um poeta que se preocupa com a integridade de seus textos pode usar a licença ‘Atribuição — Uso Não Comercial — Não a Obras Derivadas’, que diz a mesma coisa, mas acrescenta que usuários ‘não podem alterar, transformar nem acrescentar nada à obra’. As licenças Creative Commons permitem que milhões de obras circulem sem os problemas de permissão e taxas que automaticamente afetam todo material protegido por direitos autorais. Devo dizer que não entendo a ordem recente da nova ministra da Cultura brasileira, Ana de Hollanda, para a retirada da licença Creative Commons do site do ministério. Para dizer o mínimo, a mudança oferece a oportunidade de discutir os propósitos do direito autoral.
Além do Creative Commons, que outras iniciativas você destacaria?
L.H. – Aplaudo o movimento pelo ‘Livre Acesso’ (‘Open Access’) encontrado hoje em muitas instituições de ensino superior. Nos Estados Unidos, muitas universidade, incluindo Harvard, pedem que os professores coloquem suas pesquisas na internet para download grátis. A adesão é voluntária, mas o Acesso Livre está se tornando um procedimento padrão nas publicações acadêmicas. Outro movimento importante exige o ‘uso justo’ (fair use) dos direitos. As leis americanas estipulam que ‘o uso justo de obras protegidas por direito autoral… para fins como crítica, comentário, jornalismo, ensino (incluindo múltiplas cópias para uso em sala de aula) e pesquisa não infringe o direito autoral’. Muitas comunidades criativas têm trabalhado nos últimos anos para esclarecer esses direitos. Em alguns sentidos, o Brasil está à frente dos Estados Unidos nessa questão do ‘uso justo’. Nos Estados Unidos, é ilegal contornar as restrições de DRM (sigla para ‘Digital Rights Management’, ou ‘Gestão de direitos digitais’), mesmo que para uso considerado ‘justo’ em circunstâncias normais. Até onde sei, no Brasil é possível quebrar o DRM sem quebrar a lei, desde que não se cometa violação de direito autoral. Além disso, um detentor de direitos que usa DRM que restringe ações permitidas pela lei brasileira está sujeito a multa.
Em A dádiva, você fala sobre a dificuldade de conciliar as esferas da prática artística e do mercado, mas diz que, ainda assim, é preciso buscar essa conciliação, sem prejudicar a porção de ‘dádiva’ da arte. Que conciliação é possível?
L.H. – Há três ou quatro respostas possíveis. Assumindo que existe uma verdadeira incongruência entre ganhar a vida e fazer arte, muitos artistas escolhem uma vida de pobreza voluntária. Vivem com pouco e constroem sua obra. Em segundo lugar, há sociedades que reconhecem esse problema e apoiam artistas de maneiras não-mercadológicas. O patronato era uma forma arcaica desse tipo de apoio, e hoje temos fundações privadas e bolsas públicas. Em terceiro lugar, muitos artistas têm um segundo emprego, removendo da arte o fardo de ter que pagar suas contas. Até ensinar a própria arte é uma espécie de segundo emprego (eu mesmo ensino escrita, o que não é a mesma coisa que escrever). Por fim, existem aqueles poucos felizardos que vivem diretamente de seu trabalho, romancistas, pintores e dramaturgos de sucesso. Bravo para eles.