Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

As novas regras das comunicações

A proposta de projeto de lei do novo marco legal das comunicações, elaborada no final do governo Lula e entregue ao novo governo, ainda não foi tornada pública oficialmente. Mas algumas pessoas e veículos de comunicação, como a newsletter TeleSíntese.Análise tiveram acesso ao texto. Nesta entrevista, o especialista em comunicação João Brant, diretor do Coletivo Intervozes, comenta o cenário das comunicações
no Brasil, avalia os resultados da 1ª Conferência de Comunicações (Confecom) e, à luz de suas recomendações, faz uma leitura, ainda parcial (pois não teve acesso à cópia do projeto para estudá-lo), de seus méritos e problemas.


Como avanço, destaca a criação de um órgão regulador com abrangência sobre a radiodifusão, e a disposição de encarar a questão da convergência tecnológica, ou seja, de que um conteúdo audiovisual, por exemplo, pode ser transmitido por diferentes plataformas, da TV ao celular, passando também
pelas redes de telecomunicações fixas para chegar na casa do usuário. O projeto procura regular o espaço de cada agente econômico
e valorizar o conteúdo nacional. Também trata
da garantia do respeito aos direitos humanos
na TV e no rádio, estabelecendo punições
para violações.


Entre as omissões da proposta percebidas por Brant, a falta de garantia efetiva de espaço para as rádios comunitárias e de mecanismos mais efetivos para a participação popular nesse serviço público. Ele critica também os limites tênues impostos à propriedade cruzada, com base apenas no número de veículos de que um grupo econômico é detentor. Brant defende que o governo faça um amplo processo de consulta pública sobre o projeto de lei, para que a proposta chegue ao Congresso Nacional com um certo grau de consolidação. Ele sabe que não haverá como evitar divergências. ‘Mas devem ficar claras no processo de discussão’, diz.


João Brant é formado em rádio e TV pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Regulação e Políticas de Comunicação pela London School of Economics and Political Science (LSE). É integrante da coordenadoria executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e autor, junto com outros quatro pesquisadores, do livro Comunicação digital e a construção dos commons.


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Quais são as demandas que levam à necessidade da formulação de um novo marco regulatório das comunicações?


João Brant – Dois tipos de demanda, uma dos setores que acreditam que é preciso democratizar a comunicação, expressão tão genérica quanto pretensiosa, mas que resume um conjunto de medidas necessárias para estabelecer um sistema de comunicação que tenha uma outra cara no Brasil. Isso passa por fortalecer o sistema público de comunicação; adotar medidas de limite à propriedade que vão além das adotadas na década de 1960, que envolvam a propriedade cruzada, que envolvam a regulamentação do artigo 220 da Constituição, do artigo 221, que trata de conteúdo, especialmente regionalização e produção independente; passa pela criação de mecanismos de participação social na definição das políticas públicas do setor e garantir que a população tenha como dialogar com aquele conteúdo.


A outra, que alguns momentos se conjuga com essa, em outros não, é a dos que percebem que esse marco regulatório já não responde a um cenário de convergência, onde as disputas empresariais são grandes. O que está em jogo é a possibilidade ou não de participação de empresas de telecomunicações no mercado de TV –
o que já mudou um pouco com a resolução da Anatel. De qualquer forma, é preciso estabelecer de que maneira isso pode acontecer para que o poder econômico das teles não suplante o da radiodifusão. Aí entra a disputa empresarial pela produção de conteúdo para a telefonia móvel. Outra questão é como organizar o espectro para um cenário de convergência que não estava previsto na década de 1960, é claro, mas nem mesmo na década de 1990, quando foi aprovada a Lei Geral de Telecomunicações. São duas demandas que justificam esse momento de mudança. Um pelo lado dos que reivindicam a democratização no sistema de comunicações, outro pelo lado da convergência. Alguns atores defendem a formulação de um novo marco regulatório pelos dois motivos, alguns só pelo cenário de convergência.


A primeira iniciativa, de fato, do governo Lula, para abrir o debate em torno dessas demandas, foi a realização da 1ª Confecom, em dezembro de 2009. Que leitura você faz das resoluções da conferência?


J.B. – São 630 propostas que cobrem boa parte das questões citadas, principalmente as demandas relativas à democratização. Mas respondem ainda timidamente às demandas relativas à convergência. São debates difíceis, que contemplam questões técnicas como: qual a modalidade de serviço a ser estabelecida e, a partir da definição da modalidade de serviço, a criação de limites à propriedade horizontal, vertical e cruzada, em que os serviços se entrelaçam. Para isso, a Confecom não teve resposta, e talvez nem tivesse que ter. A Confecom foi a possibilidade de a sociedade brasileira, representada em seu conjunto e na sua diversidade, trabalhar com algum grau de tempo e grau de sistematização propostas para a mudança do cenário das comunicações. Houve problemas na sistematização das conclusões, e o resultado final não é conciso, é redundante, tem imprecisões, pois havia 15 grupos discutindo propostas diferentes. Mas a maior parte das resoluções refletem pontos de vista sobre o debate das comunicações que precisam ser considerados, pois dão resposta às questões de financiamento do sistema público, ao sistema de concessões. Há respostas bem organizadas que poderiam ser transformadas em partes do projeto de lei.


Eu gostaria de voltar a um ponto relativo à primeira pergunta. Depois da redemocratização de 1985, eu diria que poucos setores não tiveram mudanças concretas. É o caso das comunicações. Até no setor agrário, de reforma agrária, houve evoluções. Continuamos com um cenário das comunicações que é reflexo não só de um marco regulatório mas da maneira como se construiu e fortaleceu nas décadas de 1960 e 1970, inclusive com o uso de estruturas públicas para fortalecer uma rede privada forte, principalmente a rede Globo, a partir do Sistema Telebrás, em um cenário de concentração. Do final da década de 1970 até 1986, quando se aprova as mudanças no sistema de concessões, com a introdução da licitação, foi um momento de entrega de concessões como troca de favor político. A estrutura, hoje, está montada assim. Tanto as geradoras quanto as retransmissoras estão na mão dos principais grupos políticos dos estados, o que cria uma relação muito ruim de promiscuidade entre poderes, entre um poder Executivo, um Legislativo e o poder das comunicações.


A equipe do governo Lula, no final do governo, formulou um projeto de lei que dá os contornos de um novo marco regulatório das comunicações. Embora o documento não tenha sido tornado público, várias pessoas tiveram acesso a versões e o Tele.Síntese Análise divulgou recentemente um resumo da proposta. Que prevê, entre outros pontos, a transferência da Ancine, que assumiria o poder de regulação de todo o conteúdo, para o Ministério das Comunicações. Com o novo marco seria fundamentado na convergência, a LGT será extinta.


O que você acha dessa nova formulação?


J.B. – É difícil falar sobre algo que não se conhece em detalhes. Feita essa ressalva, o projeto tem méritos e problemas. Entre os méritos, está o de tentar responder aos desafios do cenário de convergência com a modelação dos serviços; o controle da verticalização do mercado, limitando a atuação das empresas a determinados segmentos de atividades; a distribuição de conteúdos pelas diferentes plataformas, não limitando o vídeo a uma delas. Parece que o projeto enfrenta o que tem de enfrentar no que se refere à convergência.


Em segundo, cria um órgão regulador (a Agência Nacional de Comunicação, que absorverá as funções da Ancine, a não ser a de fomento, que fica com o Ministério da Cultura), com abrangência sobre a radiodifusão. Hoje, a radiodifusão está por conta do Ministério das Comunicações, onde o que ocorre é a fiscalização técnica, uma vez que não há um sistema de regulação, nem critérios de regulação estabelecidos. Esse é um mérito, pois precisamos dar um passo em relação a essa tema.


O terceiro ponto é a disposição de enfrentar questões delicadas de conteúdo. Nós vivemos em um país onde uma instituição como o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade move, há seis anos, um processo contra a rede Record pelo direito de resposta por discriminação a religiões de matriz africana e não consegue. O processo já foi parar no Superior Tribunal de Justiça. O direito de resposta deveria ser um direito sumário. Temos um sistema de comunicações que ainda viola os direitos humanos em nome da liberdade de expressão, o que não tem respaldo nem nas convenções internacionais. Então, o projeto, ao enfrentar essa questão do respeito aos direitos humanos, e de como as violações pelos meios de comunicação devem ser tratadas, traz um avanço.


Em que pontos o projeto de lei é deficiente?


J.B. – Ainda não entendemos como vai ser tratada a questão da propriedade cruzada. A ideia de tratar limite de propriedade a partir simplesmente da quantidade de veículos nas mãos do mesmo grupo empresarial é ultrapassada, não é adotada em lugar nenhum do mundo. A regulação sobre propriedade cruzada na União Europeia é genérica, mas os países têm legislações mais específicas. Tanto Inglaterra quanto França cruzam, no mínimo, a quantidade de concessões com o market share de cada veículo. Outro dado que as legislações usam é o volume publicitário. Além disso, há que se pensar nas empresas coligadas. Então, a regulação de propriedade cruzada tem de levar em conta dois componentes: um econômico (que vale para qualquer setor do mercado) e outro de democracia. É importante lembrar que um país liberal como os Estados Unidos, mesmo após as revisões, mantém uma legislação rigorosa, para o nosso cenário, sobre a propriedade cruzada.


Outra questão que não consigo perceber é onde entram as rádios comunitárias nesse projeto e de que forma entram. A Argentina e o Uruguai aprovaram legislações recentes em que reservam 1/3 do espectro para entidades sem fins de lucro. Esses países não têm essa definição de estatal, público e privado, mas de sem fins de lucro, onde cabem as privadas sem fins de lucro. Nós precisamos mudar o conceito. Hoje, as rádios comunitárias no Brasil têm um grau de marginalização inaceitável. A ideia de dar a mesma frequência para dois ou três me parece manter a mesma estrutura, um erro.


O terceiro ponto que nos parece ausente se refere à participação social. Ainda com a ressalva de que não tivemos acesso direto à última versão, parece que há pouca preocupação com a dinâmica de participação da população em um serviço público de comunicação. Estou falando principalmente das questões de conteúdo, mas também de direito do consumidor. Se no caso das telecomunicações, onde o direito do consumidor é previsto, há fragilidade, no caso da radiodifusão, não são nem previstos.


Por último, outro ponto ausente, embora talvez seja ousado pensar nisso, é um tipo de regulação de conteúdo que enfrente discussões do tipo de objetividade e imparcialidade. A Inglaterra resolve isso com alguns conceitos bem interessantes que eles chamam de due imparciality, de trabalhar a multiplicidade de fontes na cobertura jornalística. Coisas que são chaves. Se se entende meios de comunicação como chaves para a democracia, do ponto de vista de circulação de ideais e valores, é preciso garantir
que a acessibilidade não se dê só pela propriedade mas também pela maneira como esse conteúdo é exibido. Tem-se que criar regras de conteúdo, mesmo que não sejam a priori, mas é preciso ter essa referência. Hoje, na legislação brasileira, não há limite ao uso político dos meios de comunicação, a não ser nos três meses do período eleitoral.


Há ainda mais uma questão. Como lidar com o conteúdo religioso? Este é um espinho. A cultura brasileira se mistura com a religiosidade, mas é preciso pensar em quanto a religiosidade não é uma manifestação privada que está usando um espaço público – ainda mais quando relacionada a arrendamento de espaço televisivo,
o que é indefensável, e quando está relacionada a ocupação em massa desse espaço público, que é a concessão. Quando se tem o Canal 21, do pastor Waldomiro, transmitindo 22 horas
por dia programas religiosos nos parece preocupante, independentemente de qual seja a religião. O governo Lula tentou acelerar a produção do projeto de lei no segundo semestre do ano passado para que ficasse pronto até
dezembro. As primeiras declarações do governo Dilma sobre o encaminhamento do tema são cautelosas.


Do ponto de vista do movimento social, qual deveria ser a agenda?


J.B. – No ano passado, houve demora no tratamento da questão, o que impediu que o processo de consulta pública fosse disparado ainda no governo Lula. Nossa avaliação é de que o governo Dilma precisa estar disposto a enfrentar o tema, não dá para trabalhar com o grau de incerteza e insegurança que o atual marco provoca no que diz respeito à convergência. Mostra uma falta de planejamento para o setor. Essa questão não pode ser adiada. Não dá para achar que se vai criar as melhores condições para depois fazer o debate, essas condições têm de ser criadas na dinâmica do processo.


É importante que o projeto de lei seja burilado pelo atual governo, que haja um grupo responsável no Ministério das Comunicações, que seja apresentado como projeto de governo e que vá a consulta pública. A consulta tem que ser extensa o suficiente para provocar debates em todo o Brasil, o governo tem de estar disposto a provocar esse debate. Não pode ser um consulta pública tímida, que o governo põe para se livrar do problema, e deixa lá 45 dias mais 45 dias. Tem de ser algo em que de fato o governo se proponha a mediar o debate público sobre o marco do setor de telecomunicações e a defender os pontos de vista contidos no projeto.


Essas consultas públicas poderão gerar a movimentação e o caldo necessário para que o projeto chegue ao Congresso com um certo grau de consolidação – ou até de polarização, mas de uma polarização já clara. O que o governo não pode é trabalhar com a ideia de criar consensos antes de lançar a consulta pública. Nossa visão é de que nesse setor não há como criar consensos. É claro que é possível aproximar posições, trabalhar com tensões, mas trata-se de um tema que tem de ser trabalhado sem a ditadura do consenso para não se chegar, ao final, a um projeto insosso, que não diz nada. Tem que fazer apostas e tornar o projeto coerente com essas apostas.


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As propostas do projeto de lei


As mudanças que constam do texto apresentado são bastante abrangentes. Confira, abaixo, as principais propostas.


Agências reguladoras


** A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) permanece com sua atual estrutura e a Agência Nacional de Cinema (Ancine) é transferida do Ministério da Cultura (que ficará apenas com a parte de fomento à produção audiovisual) para o Ministério das Comunicações, passando a se chamar Agência Nacional de Comunicação (ANC).


** A ANC vai regular a produção e a programação de conteúdo audiovisual e sonoro. Terá novas atribuições, como a classificação da programação de TV, hoje vinculada ao Ministério da Justiça; e a regulação do mercado publicitário de medicamentos (hoje a cargo da Agência de Vigilância Sanitária, Anvisa).


** Não poderá haver controle prévio de conteúdo.


Licenciamento das emissoras de radiodifusão


** Fica mantida a atual estrutura de licenciamento. As outorgas continuam submetidas ao Ministério das Comunicações e à aprovação pelo Congresso Nacional.


** Os métodos de fiscalização e de prestação de contas serão os utilizados no segmento de telecomunicações. Para isso, o projeto propõe contrato de concessão para as empresas de mídia audiovisual, maior regulação para as que detêm poder de mercado (as que são dominantes); multas e obrigações para as emissoras subordinadas a essa regulação.


** A fiscalização será feita pela ANC.


** As determinações não se aplicam à mídia impressa.


** A proposta veda a qualquer pessoa com mandato eletivo (políticos de todos os níveis, de vereadores a presidente da República) manter-se como proprietário, diretor ou representante de emissoras de rádio e TV.


Unificação dos serviços


** São criados três grupos de serviços: Serviço de Comunicação Social, Serviço de Comunicação Eletrônica e  Serviço de Sociedade em Rede. Essas categorias passam a englobar os serviços de radiodifusão, de telecomunicações e de valor adicionado.


** O Serviço de Comunicação Social abrange a radiodifusão aberta e a TV paga, que deixa o âmbito das telecomunicações. É dividido em serviço audiovisual e sonoro linear e aberto (rádio e TV), linear e fechado (TV paga) e não linear (vídeo sob demanda).


** O Serviço de Comunicação Eletrônica abrange os serviços de telecomunicações (à exceção da TV paga), como a telefonia fixa, a celular, a comunicação de dados e a banda larga.


** O Serviço de Sociedade em Rede vai substituir os atuais serviços de valor adicionado, aqueles ligados à internet. O objetivo não é regular a internet, mas a criação dessa categoria de serviços abre a porta para a intervenção futura  em serviços como operações bancárias pela internet e redes sociais que se transformem em redes de comunicação de massa.


 


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Jornalista