Elas existem há mais de 50 anos e influenciaram tanto a história de seus povos como a de seus governos. As rádios comunitárias latino-americanas educaram sua gente, melhoraram a situação de pequenas populações, combateram ditaduras… São, definitivamente, um exemplo de bom uso dos meios de comunicação, a mostra viva da capacidade socializadora do rádio. Nascidas com vocação educativa e evangelizadora, hoje se adaptam aos tempos com programas de rearticulação civil e desenvolvimento.
Em 1947, a Rádio Sutatenza começava um projeto que serviria de modelo a muitos outros na América Latina. O padre José Joaquín Salcedo havia chegado ao povoado de Sutatenza, na Colômbia, com vontade de melhorar a vida de seus habitantes, com vontade de lhes dar novos motivos para lutar, e o fez com seu transmissor de 90 watts e uma idéia –levar a educação aos 80% dos camponeses analfabetos por meio da rádio. Assim, respaldada pela Igreja, nascia a primeira rádio comunitária da América, que logo seria imitada em todos os rincões, de Caracas à Terra do Fogo.
A história tem sido encarregada de remodelar este projeto. A década de 60 foi crucial; a Revolução Cubana de Castro, a Teologia da Libertação, e, em geral, o auge dos movimentos populares e de resistência paralelos à criação de regimes totalitários ampliaram o conceito de rádio social, convertendo-a, em alguns casos, em verdadeiros focos de resistência perante injustiças sociais, políticas repressivas e, inclusive, golpes de Estado. É o caso das Rádios Mineiras da Bolívia, emissoras sindicais que informaram o golpe militar do general García Maeza, em 1980, até que os disparos substituíram a voz do locutor; ou o caso da rádio Quillabamba no Peru, que era a única que relatava os enfrentamentos entre o Sendero Luminoso e o exército quando ninguém queria falar sobre o assunto.
Hoje essas rádios estão perfeitamente organizadas em redes de todo tipo e quase todas estão afiliadas a alguma organização coordenadora de projetos comuns como Aler, a Associação Latino-americana de Educação por Rádio, ou Amarc, a Associação Mundial de Rádios Comunitárias. Mas é a Aler, por ter um número de membros mais limitado, a que melhor representa o espírito dessas emissoras.
A Aler nasceu em 1972 como iniciativa de 18 rádios que viram na reunião uma possibilidade de crescimento e desenvolvimento. Seus objetivos eram melhorar os programas educativos, capacitar pessoal das emissoras e buscar apoio econômico para seguir crescendo. Nos anos 90, abre-se a emissoras não católicas e cresce até ser o que é hoje, uma associação que reúne 98 rádios de toda a América Latina e que tem uma audiência de mais de 12 milhões de pessoas, quase todas pertencentes a setores excluídos ou com pouco acesso a serviços públicos.
A rede formada pela Aler em 1997, Alred Satelital, permite realizar programas e projetos conjuntos por intermédio da Internet ou via satélite. Desse modo, os esforços de todas as rádios podem se concentrar, por exemplo, em realizar informativos de maior qualidade com correspondentes em todas as pontas do continente. Os programas são produzidos por todas as rádios afiliadas, coordenam-se a partir da secretaria executiva, em Quito, e se distribuem por toda a rede e rádios afins.
Educação à distância
A evolução do projeto radiofônico comunitário significou também uma mudança na forma de entender o trabalho educativo. Hoje são poucas as emissoras que mantêm o projeto inicial de levar a escola às ondas, ainda que se siga fazendo. Um exemplo é o Irfa, o Instituto Radiofónico Fé y Alegria da Venezuela, que segue ministrando aulas por meio de suas rádios e, em alguns casos, chega inclusive a outorgar certificados de estudos.
Mas esta já não é a tônica geral. Segundo palavras de Pepe Arévalo, coordenador do Sistema de Comunicação Radiofônica da Aler, o fim da Guerra Fria marcou um antes e um depois na concepção dessas emissoras, e, a partir do Encontro de Rádios Educativas que aconteceu em Quito, Equador, em 1991, empreendeu-se um novo caminho que passava pela redefinição do objetivo das rádios comunitárias e seu trabalho, que ainda hoje segue em marcha.
Projetos com futuro
Dentro de sua adaptação aos novos tempos se desenvolveram programas que assumem novas realidades, como a rearticulação civil após as ditaduras ou a emigração. Atualmente, um de seus projetos mais interessantes é o ‘Plano Migração, Comunicação e Desenvolvimento’. Esse plano foi criado no Equador com a idéia de racionalizar as chegadas de imigrantes equatorianos em seu país. Os números dizem que nos últimos anos quase 10% da população equatoriana emigrou para outros países e que a quantidade de dinheiro que entra no país por causa dos emigrantes supera 1,2 bilhão de dólares por ano.
O ‘Plano Migração, Comunicação e Desenvolvimento’ tem perfil comunicacional inspirado no programa Callos y Guatitas, produzido pela Aler e pela Coordenadoria de Rádios Comunitárias de Madrid, transmitido por 13 emissoras do Equador e em quatro da capital espanhola. O programa de notícias do país permite a equatorianos que vivem na Espanha falar com seus entes queridos no Equador…mas a parte mais importante do programa é a que não sai no rádio e que coloca em contato as famílias que recebem o dinheiro de seus familiares para alertá-las para que façam um gasto racional e invistam esse dinheiro de forma produtiva, seja em programas de desenvolvimento ou em investimentos responsáveis que podem propiciar, com o tempo, o retorno de seus familiares com garantias ao Equador.
Situação legal
Agora o grande inimigo a ser enfrentado são as diferentes legislações que regulamentam a situação das rádios comunitárias na América Latina. À exceção da Colômbia, todos os países apresentam restrições, de uma maneira ou outra, ao trabalho dessas emissoras.
Nestor Busso, diretor da Rádio Encuentro na Argentina e especialista em legislação de rádios comunitárias, agrupa as restrições em três tipos: restrições à potência de emissão, na escolha de conteúdo e no uso de publicidade como forma de financiamento (a única maneira que possuem essas rádios de se manterem longe das influências e interesses políticos). Assim, por exemplo, no Chile se enfrentam restrições que impedem emitir com uma potência que supere um quilômetro de alcance; na Venezuela é o governo quem tem a última palavra sobre a programação de cada emissora e no Peru se luta contra a norma imposta pelo governo no ano passado que impedia a utilização de publicidade.
A Aler e a Amarc já empreenderam ações jurídicas e políticas. No momento, o único fruto obtido é um informe do relator de liberdade de expressão da Comissão Internacional de Direitos Humanos, que assegura que as restrições na concessão de licenças a rádios comunitárias viola o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu inciso 1 ressalta que ‘toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha’.
Enquanto continua a luta pela superação dos obstáculos legislativos, as rádios comunitárias da América Latina seguem trabalhando incessantemente com o mesmo objetivo com que tudo começou em 1947, melhorar a vida dos excluídos, proporcionar novas ferramentas para lutar e, definitivamente, a idéia de que sublinha os projetos de rádios comunitárias, não só na América Latina mas também em todo o mundo: dar voz aos sem voz.
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(*) Jornalista e colaboradora da Agência de Informação Solidária (www.infosolidaria.org)