Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As razões por que tudo continua na mesma

Pelo menos dois jornais de referência nacional (Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo) e uma revista semanal de informação (CartaCapital) pautaram, nas últimas semanas, temas que envolvem as concessões de rádio e televisão no país: o uso que o Poder Executivo continua a fazer das concessões como moeda de barganha política; o caos em que se transformou a renovação das concessões sem qualquer observância de princípios e prazos e, pior de tudo, a cumplicidade de parte significativa de deputados e senadores – eles próprios concessionários de radiodifusão – com a desordem no setor.

Nenhum desses problemas é novo. Nenhum deles é desconhecido pelos críticos da mídia ou pelos diversos movimentos da sociedade civil que lutam pela democratização das comunicações. Nenhum deles deixou de ser repetidas vezes tratado neste Observatório da Imprensa nas suas edições para a web, TV e rádio.

A questão que se coloca, portanto, é saber por que a situação continua a mesma, repetindo-se a cada governo e a cada nova legislatura? Por que nada se faz, efetivamente, para impedir que a situação se reproduza e se perpetue? Ou, melhor ainda, o que de fato impede que esses problemas sejam resolvidos?

O x do problema

O pressuposto básico, claro, é reconhecer que a situação atual é um grave desserviço à democracia. Parece óbvio, mas não é. Tem muita ‘gente boa’ – atores diretamente envolvidos na questão – que, apesar dos dispositivos legais, nada vê de errado, por exemplo, no fato de políticos serem concessionários e votarem nos processos de concessão e renovação de concessões (vale dizer, ser, ao mesmo tempo, o poder que concede e o beneficiário da concessão).

Em agosto de 2005, por exemplo, foi apresentada na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 453/2005), subscrita por 189 senhores deputados, que pretende acrescentar ao artigo 222 da Constituição um 6º parágrafo com o seguinte texto:

‘Não se aplica a este artigo o disposto no artigo 54 da Constituição Federal’.

Isso, na verdade, significa permitir que deputados e senadores sejam concessionários de emissoras de rádio e de televisão (ver ‘A nova desfaçatez do coronelismo eletrônico‘, edição nº 350 deste OI).

Na mesma linha, vale lembrar o que admitiu com candura o senador José Sarney em entrevista publicada pela CartaCapital (nº 369, de 23/11/2005). O ex-presidente da República, responsável principal pelo maior número de concessões já outorgado a parlamentares num único mandato, referindo-se à sua família no Maranhão como ‘gente simples, de classe média’ disse:

‘[Nossa] única atividade em empresas é relativa à atividade política: jornal, rádio e televisão. (…) Temos uma pequena televisão, uma das menores, talvez, da Rede Globo. E por motivos políticos. Se não fôssemos políticos, não teríamos necessidade de ter meios de comunicação’.

Como se pode ver, entre deputados e senadores o pressuposto básico do desserviço à democracia não é absolutamente uma unanimidade. É por isso mesmo que levantamentos recentes indicam que pelo menos um em cada dez deputados e mais de um em cada três senadores são concessionários – direta ou indiretamente – de radiodifusão. Aí está o nó da questão.

Sistema perverso

A estrutura do sistema de mídia no Brasil se desenvolveu em torno da propriedade cruzada e de uma aliança estratégica entre uns poucos e poderosos grupos empresariais e familiares nacionais (‘modernos’) e as velhas oligarquias políticas locais e regionais. Essas oligarquias, atrasadas e conservadoras, são herdeiras do mandonismo da política clientelista da Velha República que tinha como base o latifúndio e até hoje sobrevive em vários estados brasileiros.

Dessa forma, quando os constituintes de 1988 tornaram o Congresso Nacional co-responsável pela outorga e renovação das concessões de radiodifusão, na realidade estavam ajudando a perpetuar uma prática política arcaica que passou a ter no rádio e na televisão a sua forma principal de reprodução. Consolidou-se um sistema perverso que se auto-reproduz sustentado numa forma nova de coronelismo – agora eletrônico.

Uma regulação que moralize a radiodifusão brasileira e impeça a continuidade dos problemas apontados, independente de que a iniciativa surja no Poder Executivo ou no Legislativo, terá que ser aprovada no Congresso Nacional.

Como, no entanto, fazer com que um número significativo de deputados e senadores aprove uma regulação de interesse público que contraria diretamente seus interesses privados, inclusive porque a radiodifusão se transformou – para os políticos concessionários – em vantagem comparativa fundamental nas disputas eleitorais?

Essa é a questão principal. E é ela que explica porque, embora velhos, os problemas que agora mereceram a atenção de parte da imprensa não se resolvem.

A maioria dos eleitores terá que se dar conta de que as políticas públicas de comunicações são tão importantes quanto as políticas de setores tradicionais – como a educação, o emprego, a moradia –; e exigir de seus candidatos a presidente da República e a deputado e senador um compromisso claro com a regulação democrática do setor.

Quais são, todavia, as chances reais de que isso aconteça, considerando que o mesmo sistema perverso de mídia é um dos principais responsáveis – às vezes o único – pela construção da agenda pública e pela formação da opinião de boa parte da população brasileira?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)