Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As restrições à propriedade cruzada

A mídia derrotada nas eleições presidenciais prossegue em campanha para pautar o novo governo segundo seus interesses. A última é do Estado de S.Paulo de quinta-feira (27/1), informando em manchete de primeira página que o governo desistiu de incluir a propriedade cruzada no projeto de regulação da mídia (ver ‘Governo admite propriedade cruzada‘).


O blogueiro Eduardo Guimarães perguntou logo cedo ao ministro Paulo Bernardo, via twitter, se isso era verdade. Resposta: ‘Bom dia, meu caro! Basta ler a matéria para concluir que não decidimos nada. Quando houver decisão enviaremos ao Congresso’.


É verdade, não há nenhum dado concreto que confirme a manchete da capa: ‘Convergência de mídias leva governo a desistir de veto à propriedade cruzada’. O texto, além disso estabelece uma confusão entre meios impressos e eletrônicos. Chega a dizer que ‘propriedade cruzada é o domínio, pelo mesmo grupo de comunicação, de concessões para operar diferentes plataformas (TV, jornal e portais)’. Mistura na mesma frase meios que legalmente são concedidos pelo Estado em nome da sociedade (TV, e também o rádio) com aqueles que operam em circuitos privados, sem interferência direta do poder público, como jornais, revistas e portais na internet.


Leis específicas


No Brasil, uma nova lei de meios tem que dar conta, entre outras coisas, de dois tipos de regulação. Uma específica para o rádio e a TV, cujos concessionários ocupam o espectro eletromagnético, escasso e finito. Outra dando conta da mídia em geral.


No primeiro caso, trata-se de um bem público (o espectro eletromagnético) utilizado por particulares que, por isso, devem se submeter a regras precisas de controle social. Nada ilegal ou arbitrário. Ao se candidatarem a uma concessão os interessados deveriam deixar claro que tipo de serviço será prestado à sociedade e de que forma. Assinariam um compromisso com o Estado, conhecido em alguns países como ‘caderno de encargos’, onde estariam detalhados seus direitos e deveres. Ao final, o contrato deveria ser avaliado pelo órgão regulador (hoje inexistente) podendo vir a ser renovado ou não.


A lei atual, benevolente, estabelece um período de dez anos para as concessões de rádio e de quinze para a televisão. E as renovações são praticamente automáticas, passando por trâmites burocráticos ainda que submetidas ao Congresso nacional.


O segundo caso, referente aos jornais e revistas, não tem nada a ver com isso. São empreendimentos particulares que trafegam por canais privados. Não se submetem a concessões como sugere o Estadão. Mas nem por isso podem deixar de se submeter à leis específicas, como a de imprensa que garantia o direito de resposta e foi suprimida. E também aos limites da propriedade cruzada.


Vozes múltiplas


O Estadão afirma que ‘o desenvolvimento tecnológico tornou a discussão (sobre propriedade cruzada) obsoleta’ e que ‘o conceito de convergência de mídias, que consolidou o tráfego simultâneo de dados e noticiários em todas as plataformas – da impressa à digital –, pôs na mesa do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, um projeto de concessão única’.


Nada mais falacioso. Primeiro porque formas de produção e circulação de dados e noticiários em diferentes plataformas não têm nada a ver com a propriedade cruzada. Esta diz respeito à organização societária dos conglomerados e, o mais importante, à sua abrangência sobre a sociedade.


A lei atual, ainda que burlada, determina um máximo de cinco concessões de TV para o mesmo grupo, em cidades diferentes, sendo cinco em VHF e cinco em UHF. Mas não impede que esses concessionários sejam proprietários de jornais ou revistas, por exemplo.


Pela lei implacável do mercado, a tendência é que alguns grupos se tornem gradativamente hegemônicos em suas regiões e mesmo no país. Com isso passam a monopolizar todas as formas de comunicação existentes, impedindo o confronto de idéias e restringindo a diversidade cultural.


Os limites à propriedade cruzada, portanto, devem ter como referência o tamanho do público atingido pelas empresas de comunicações, sejam ouvintes, leitores, telespectadores e até mesmo internautas. Junto com restrições mais rigorosas à propriedade de diferentes meios nas mesmas áreas geográficas.


É o que ocorre em países democráticos como forma de evitar que o pensamento único se consolide. Trata-se de garantir a liberdade através da multiplicação de vozes e não de restringi-la como alardeiam os interessados em manter tudo como está. Apelando algumas vezes, como se viu, para a confusão.

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Sociólogo e jornalista, professor de Jornalismo da ECA-USP, autor, entre outros, de A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão (Summus Editorial); twitter: @lalolealfilho