A História não se movimenta apenas ao som de trombetas, os sacolejos tornam-se perceptíveis quando já são irreversíveis e irreparáveis. Estamos metidos num deles, com proporções formidáveis, sem sinos, sirenes ou berrantes anunciando o apocalipse.
O problema é este: somos os sujeitos de uma trama que desconhecemos. Ou que não nos é mostrada integralmente. A mídia onipresente ainda não se encontrou, nem sabe que história deve contar.
As duas guerras mundiais no século 20 destruíram a Europa e, para impedir que terceira catástrofe arrasasse novamente o Velho Mundo, quatro estadistas visionários se entregaram à tarefa de criar um novíssimo pacto supranacional.
Na primeira etapa teve o modesto nome de Comunidade do Carvão e do Aço, depois se ampliou para a Comunidade Econômica Europeia e, finalmente, desabrochou na União Europeia, extraordinária e inédita federação de 27 Estados-membros, 17 deles com moeda única. Sessenta anos depois, a magnífica construção ameaça desabar, virar pó.
Interesse conflitantes
A crise fiscal na zona do euro destroçou Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha, já alcançou a poderosa economia italiana, ameaça a francesa, mas não está circunscrita aos erários. Se o Banco Central Europeu não intervier decisivamente atuando como um banco central efetivo, teremos grandes bancos comerciais europeus, inclusive alemães, sendo arrastados pelo turbilhão.
A situação é dramática, intensa, porém transcorre na esfera inacessível, impalpável, sinuosa dos fenômenos econômicos e ocultada pelo sobe-e-desce das bolsas. Não há inimigos à vista, o vilão é um sistema – chamemo-lo de capitalismo para simplificar – que há séculos empurra a humanidade para o progresso e que, de repente, desembestou.
O mais paradoxal é que a fortaleza europeia começou a ser construída em 1951 com a finalidade precípua de acabar com a secular disputa pelo carvão e o aço – pivôs de tantos conflitos bélicos – hoje enquadradas como commodities. O francês Jean Monnet, o luxemburguês Robert Schumann, o belga Paul-Henri Spaak e o italiano Alcide de Gaspari, socialdemocratas e democratas-cristãos de antiga cepa, acreditavam que as guerras eram acionadas por interesses econômicos conflitantes que, uma vez acomodados e/ou socializados, serviriam ao bem comum.
O europeísmo que deu certo não foi o projeto pacifista-humanista sonhado por intelectuais do porte de Romain Rolland, mas o geopolítico, apoiado quase que exclusivamente num poderoso instrumental econômico. Mesmo a confederação além-euro – a dos 27 Estados-membros – é fortemente amparada em estruturas econômicas ou no máximo socioeconômicas.
Manchetes e obituários
O projeto europeu foi um dos mais bem sucedidos da Guerra Fria: contra uma Europa feliz, pacificada e próspera esboroou-se a Cortina de Ferro e o socialismo real.
Porém, a Europa política é uma quimera: não chega a ser fantasia, é um elaborado rito, combinação do Leviatã do Estado moderno com o parlamentarismo da maioria esmagadora dos seus associados (excetuada a França). Um portentoso ente burocrático intencionalmente inoperante de modo a preservar soberanias imaturas ou exacerbadas.
O déficit político europeu compromete tanto as estruturas como os triunfos econômicos porque nos momentos cruciais – como agora – evidencia-se que o sistema emergencial não foi completado porque questões políticas cruciais permaneceram intocadas. Caso do Banco Central Europeu (BCE), a única instituição apta a intervir decisivamente nos mercados financeiros com recursos ilimitados. Para isso, teria que ser concebida e legitimada como o Federal Reserve americano, autorizada a imprimir dinheiro e garantir a fluidez do mercado. Por questões políticas, o BCE manteve-se como guardião do euro contra o dragão da inflação. O inimigo agora é outro – a insolvência.
Suprema ironia: a mais grave crise já enfrentada pelo euro tem origem na débâcle do mercado financeiro americano. A bolha imobiliária acionada pela exuberância irresponsável de George W. Bush – e insuficientemente lancetada por Barack Obama – contagiou a fortaleza europeia. E tem virulência para chegar ao Japão e irradiar-se até a inexpugnável China.
A História não se movimenta ao som de trombetas. Nem ouve o rufar dos tambores em velórios. Aqueles que deveriam fazer manchetes e obituários estão de folga – assistindo às telenovelas.