Marcado por pompa e circunstância, o início da transmissão da TV digital no Brasil, na noite de domingo (2/12), representa, sem dúvida, um novo capítulo na história da comunicação de massa no país. Telespectador assíduo, o brasileiro, que consome 3 horas e 43 minutos do seu dia em frente à tevê (dados de 2006, do Ibope Mídia), vai poder receber um sinal de muito melhor qualidade e até em alta definição. Vai também poder assistir tevê no celular, no ônibus ou trem, na ida para o trabalho ou no retorno para casa. E fazer uma série de operações a partir do conversor de sinais, o setop box: interagir com o programa a que está assistindo, marcar consulta na rede pública de saúde, ver se a aposentadoria foi depositada, entre muitos outros serviços.
Mas tudo isso é futuro. A TV digital começa limitada a poucos telespectadores não só porque a transmissão digital, por enquanto, só cobre a Grande São Paulo. É limitada também porque poucos usuários têm televisores digitais preparados para a recepção digital, comercializados por volta de 7 mil reais, ou investiram na compra do conversor que, acoplado à TV analógica, permite receber os sinais digitais. Ao contrário das promessas do governo, os conversores chegaram ao mercado com preço salgado: o modelo mais simples, da Positivo, foi lançado por 499 reais.
Além do preço, que deve cair, os conversores padecem de um outro mal. Não trazem recursos de interatividade, porque não incorporam o software, no caso o Ginga, o middleware desenvolvido no país, com recursos públicos, que faz a interface entre o sistema operacional e os programas aplicativos. Isso significa que quem comprar agora o conversor vai ter de trocá-lo mais à frente, se quiser novos recursos. Para evitar a chamada base legada, os órgãos de defesa do consumidor estão sugerindo à população não comprar os conversores agora, mas esperar pela nova geração com recursos de interatividade. Segundo os desenvolvedores do Ginga, ele já está sendo embarcado em produtos de diferentes fabricantes, que devem chegar ao mercado a partir de maio/junho de 2008.
Que a televisão digital seria voltada a uma elite, no início das transmissões, todos sabiam. Afinal, o governo brasileiro escolheu o padrão japonês (e com alterações em relação ao middleware e ao sistema de compressão de sinais), que tem uma base muita limitada – só está operacional no Japão e, mesmo assim, em poucas cidades. Para contornar a falta de escala, o país precisava ter definido uma política industrial agressiva. Mas não o fez. Mais uma vez prevaleceram os interesses regionais, e o conversor foi enquadrado como bem de imagem e som. Ou seja, seus fabricantes só têm benefícios fiscais, se estiverem instalados na Zona Franca de Manaus.
Promessas não cumpridas
Da mesma forma que não construiu uma política para que os conversores chegassem ao mercado ao preço prometido pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, menos de 200 reais, o governo também falhou no que se refere à interatividade. Aliás, esse foi um dos principais argumentos, ao lado da mobilidade, que o governo brasileiro apresentou na defesa do padrão japonês, o preferido dos radiodifusores, pois, ao permitir a transmissão, na mesma faixa de espectro, para pontos fixos e móveis, mantém intacto o modelo de negócios desse setor. Ou seja, os radiodifusores não têm que dividir com outras redes a transmissão dos programas e, portanto, os recursos publicitários que os patrocinam.
A interatividade é importante do ponto de vista do desenvolvimento de uma política de inclusão digital. Diante da elevada taxa de penetração da televisão no país – ela está presente em 91% dos domicílios brasileiros –, usar o televisor, na versão da transmissão digital, como canal de difusão de programas de governo, de programas educacionais, de serviços da Previdência, para citar um exemplo, pode significar uma revolução social de proporções não imaginadas.
Mas, embora no discurso o governo tenha destacado a importância da interatividade, na implementação do processo ela não mereceu a prioridade devida. O governo, que financiou desenvolvimentos para a TV digital com recursos do Funttel, o fundo de desenvolvimento das telecomunicações, não traçou uma política para garantir a industrialização dos conversores com a incorporação do Ginga, desenvolvido pelas equipes da PUC do Rio e pela Universidade Federal da Paraíba, e do sistema de compressão MPEG. Só assim seria possível ter um conversor popular, de baixo custo e com os recursos da interatividade. O governo também não se preocupou em montar um programa coordenado de desenvolvimento de aplicativos sociais para rodarem no Ginga, e serem utilizados pela população. Pelo que se sabe, só a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil têm projeto nesse sentido.
Por fim, também não há um trabalho organizado de definição do canal de retorno, que hoje só pode ser feito via redes telefônicas (fixas, no domicílio que contar com uma linha), ou celular, ambas pagas. Para aplicações sociais, seria importante que o canal de retorno fosse gratuito (reservando-se espaço para uma rede pública nas freqüências de 3,5 GHz ou mesmo em 700 MHz), ou patrocinado pelo provedor do serviço.
Programas sociais
Há muitos outros equívocos no modelo de televisão digital definido para o Brasil. Como o fato de ter privilegiado a alta definição no lugar da multiprogramação, o que limitou o número de emissoras praticamente às existentes – só houve espaço para a criação de quatro novos canais públicos. Também as anunciadas contrapartidas do governo e empresas japonesas à adesão ao seu padrão deixaram muito a desejar. Da hipotética fábrica de difusão de semicondutores ao centro de desenvolvimento de design de chip, passando pela garantia de mercado a produtos fabricados aqui. Ao final das negociações, a montanha pariu um rato.
Se, em relação a esses pontos, não há nada o que fazer, o governo Lula pode ainda corrigir a rota da TV digital, para que ela não sirva apenas aos interesses dos radiodifusores brasileiros – e também dos telespectadores que puderem pagar por um sinal de muito melhor qualidade e facilidades que virão no futuro. É preciso que se monte um programa para fazer, da interatividade na TV para programas sociais, um objetivo estratégico do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre. Aí, sim, a TV digital vai fazer uma diferença que vai muito além da imagem sem chuviscos. Ela vai ser a porta de entrada para a Sociedade da Informação.
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Jornalista