O leitor deste Observatório vem acompanhando: a comissão de professores criada pelo MEC para rever as diretrizes curriculares dos cursos de jornalismo aproxima-se da conclusão dos seus trabalhos. Já realizou as três audiências públicas que estavam programadas. A terceira aconteceu há pouco mais de uma semana (no dia 18 de maio, uma segunda-feira), em São Paulo. Fui convidado pelo presidente da comissão, professor José Marques de Melo, a apresentar minhas idéias nesta reunião de São Paulo. Compareci com prazer. Sintetizei, em dez minutos, o que exponho de modo mais ordenado agora, aqui no Observatório.
Reconheço no grupo conduzido pelo professor José Marques a competência e a legitimidade necessárias para dar cabo dessa difícil encomenda. Rever as diretrizes curriculares – ou, em termos menos cifrados, rever o conteúdo das faculdades de jornalismo, o que elas devem ensinar aos seus alunos – será um exercício que terá de combinar habilidade, coragem e determinação. Mas a autoridade dos professores reunidos na comissão está à altura do desafio.
Uma crise de três dimensões
É preciso levar em conta, também, que a hora é das mais delicadas. A profissão vive uma crise séria, em pelo menos três níveis.
1.
No primeiro, mais amplo, o lugar social do jornalismo foi posto em dúvida pelas dificuldades sucessivas e cumulativas por que vêm passando os jornais impressos no mundo inteiro. A internet substitui os leitores perdidos pelos meios impressos, é verdade, mas quem financiará o jornalismo independente? Até agora, pelo menos, as receitas dos sites informativos na rede mundial de computadores ainda não deram conta de suprir o que se perdeu nos jornais de papel e tinta. Postos de trabalho são fechados em ondas de demissão sucessivas. O modelo de negócio da imprensa precisa se redefinir e se reencontrar. Sem faturamento próprio, ele não dará conta de financiar o jornalismo independente, o que aponta para um mal-estar da própria democracia. Por isso é que é correto dizer que o lugar social do jornalismo foi posto em dúvida.2.
O segundo nível da crise é, por assim dizer, mais localizado, mais ‘brasileiro’. O vazio jurídico trazido pelo sepultamento da velha Lei de Imprensa criou um pequeno vazio institucional quanto à própria missão e ao regime da imprensa no Brasil. O que deve regulá-la? De que modo? Junto disso (ainda nesse mesmo segundo nível), há também as indefinições sobre os marcos regulatórios do setor de mídia (não gosto da palavra ‘mídia’, mas não vou aqui me insurgir contra o linguajar corrente). São indefinições antigas: até hoje, ao contrário das principais democracias do nosso tempo, o Brasil não estabeleceu limites claros para a propriedade cruzada dos meios de comunicação, não inibe legalmente os monopólios e oligopólios, não se preparou devidamente, no plano institucional, para a chegada das tecnologias digitais. Como esse mercado será regulado? Por meio de quais instrumentos? A quem caberá fiscalizar? Pois dessas perguntas, naturalmente, dependerá diretamente o exercício da profissão de jornalista.3.
Por fim, no terceiro nível, temos aí esse capítulo um tanto indigesto acerca do diploma de jornalista. Ele vai mesmo cair? Ou vai cair meio aos pedaços? Para que tipo de atividade profissional será necessário o diploma de jornalista? O histórico brasileiro nesse quesito demonstrou que, ao menos no passado, a exigência do diploma contribuiu para civilizar a profissão. Mas, e agora? Essa exigência ainda tem algum papel a cumprir? As alegações quanto à inconstitucionalidade dessa exigência parecem, ao menos para mim, bastante fundamentadas. Não vou aqui me aprofundar nisso, mas é necessário registrar que a outra indefinição, essa a respeito do diploma, traz complicações adicionais. Que não ficam só nisso: essas complicações adicionais também terão efeitos sobre a atividade dos assessores de imprensa que, aos olhos da mentalidade sindical (corporativa) hoje em vigor, são também jornalistas e, como tal, precisam portar o diploma para poder trabalhar. Por várias vezes manifestei minha posição sobre isso: não existe o menor sentido, não existe a mínima razoabilidade nessa suposição corporativista – a de que jornalistas e assessores exercem a mesma profissão – mas aqui, também, não vamos nos ocupar disso. Apenas reconheçamos que, também por aí, a profissão vive uma crise de identidade.Pois justamente nessa hora a comissão do MEC arregaça as mangas para rever as tais diretrizes curriculares. Não é fácil. Além das diretrizes propriamente ditas, ela se viu instada a lidar com outra variável, sugerida pelo próprio ministro da Educação: a de abrir a possibilidade para que pessoas já graduadas por outras faculdades se formem também em jornalismo por meio de um segundo bacharelado, abreviado, mais curto. Teríamos, assim, um curso rápido (de um ou dois anos) para que engenheiros, médicos, economistas, sociólogos, advogados e outros se tornassem também jornalistas. A idéia é boa – é mesmo o caso de dizer que ela é necessária para a melhoria geral da profissão no país. O problema da comissão, um problema espinhoso, é encontrar um modo de colocá-la de pé sem melindrar seriamente o corporativismo.
Tristes corpos (docentes e discentes)
É claro que, num tempo em que os empregos mínguam, um considerável desânimo se instala nos cursos de jornalismo contaminando professores, funcionários e alunos. Há exceções, como sempre há, mas o desalento dá o tom geral. É explicável, é compreensível, mas é triste.
Adolescentes que chegam aos bancos do ensino superior movidos por seus sonhos puros e grandiosos encontram verdadeiros paredões de pessimismo e acidez. A marteladas, são forçados a se convencer de que o jornalismo não melhora o mundo, não muda a vida, não traz realização pessoal: é meramente uma ferramenta nas mãos das ‘elites’ perversas que se dedicam sem descanso a dominar corações e mentes. O jornalismo seria a arte de tecer mentiras a favor da ‘classe dominante’. Em pouco tempo, esses meninos são intimados a se envergonhar, a se arrepender de suas aspirações de criança e, sem perceber, passam a carregar a cruz ressentida das gerações que lhes deveriam servir de inspiração e encorajamento. Em alguns casos, as salas de aula se converteram em câmaras de triturar esperanças e utopias pessoais. Muitas vezes, ensinam a criticar (muito mal e precariamente) a imprensa, mas não estimulam (nem ensinam) a fazer imprensa. É uma pena.
É com dor que escrevo estas linhas, mas, como professor que sou, devo fazer aqui o registro. Tenho uma coleção de alegrias inesquecíveis no exercício da minha profissão e tenho, também, dentro da sala de aula, momentos de imensa alegria. Para mim, o sentido mais profundo de ser professor está na chance de participar da evolução do aluno em direção à sua própria vocação. Ser professor é procurar enxergar no aluno a força interior que o instiga, o que o leva adiante, o que o faz acreditar que vale a pena viver da palavra, da notícia, da informação, do contato com tanta gente, gente com histórias tão surpreendentes. O aluno é a razão de ser do professor. O resto não importa. Respeitar o aluno – sua história, seu modo de encarar o futuro – é tudo. O aluno não pertence ao professor. Antes, o contrário.
Infelizmente, temos visto turmas e mais turmas feridas pelas ‘desilusões perdidas’, desilusões dos outros, em ambientes que não cultivam o orgulho próprio, que não cultivam a confiança na enorme diferença que uma história bem contada pode fazer no destino de uma pessoa, de uma comunidade, de um país. O jornalismo, muito mais do que o samba, é um privilégio. Por maiores que sejam as crises. É isso o que deveria ser ensinado nas escolas de jornalismo, nosso colégio. Mas não é. Olho em volta e, exceções à parte, não vejo altivez, não vejo convites ao talento, não vejo vibração. Vejo, quase sempre, dois extremos que são igualmente infrutíferos.
Extremo número 1: A escola é um lugar em que se extrai o azedume da teoria – para amaldiçoar indevidamente o jornalismo. Extremo número 2: a escola é um lugar que se refugia no fetichismo da prática. Acaba dando no mesmo. Ou a escola envereda pela negação do projeto da imprensa ou ela cai na idolatria dos tais modelos de mercado, prometendo à sociedade um adestramento acelerado. Quando acometida desse tipo de ‘tietagem’ do mercado, a faculdade não se arrisca a pensar ou inventar formas novas de cobrir os fatos: prefere servir, de modo subalterno, como criadouro para abastecer os padrões supostamente consagrados. É como se, diante da crise, a única saída fosse a imitação. Pior: a imitação do que vai aos poucos fracassando.
Enfim, também em virtude desse banzo acadêmico, a tarefa da comissão constituída pelo MEC trafega e ainda vai trafegar por labirintos mais ou menos mal-assombrados. Ela não deve se intimidar. Aliás, já deu sinais de que não vai se dobrar às posturas defensivas. De minha parte, torço para que ela ajude a desfazer as sombras com propostas ousadas, inovadoras, voltadas para o futuro.
O futuro como era antigamente
‘Estamos todos embarcados, queiramos ou não, numa era que revoluciona o pensamento e a própria vida’, escreveu Joseph Pulitzer no comecinho do século 20, em 1904, num texto que se tornaria clássico: The School of Journalism in Columbia – The book that transformed Journalism form a Trade into a Profession (Inkling Books, Seatle, 2006). ‘O progresso caminha velozmente, com imensa aceleração, percorrendo em décadas os avanços que antes custariam séculos ou milênios.’
Pulitzer via o futuro com entusiasmo. E, mais do que muitos, acreditava que o papel da imprensa poderia ser ainda mais fecundo e elevado. Morreu um ano antes de a Escola de Jornalismo de Columbia começar a funcionar, mas o esforço fundador se deve a ele, reconhecidamente. Seu sonho era dar aos jornalistas uma formação que os pusesse em pé de igualdade com médicos, engenheiros, advogados – e seu sonho foi alcançado. É curioso, hoje, relermos o que ele propunha como disciplinas recomendáveis aos estudantes daquilo que então seria um novo curso universitário.
Estilo, bom inglês: isso era indispensável. Além da elegância e do conhecimento da língua, da literatura, o magnata do World acreditava que noções fundamentais de direito não poderiam faltar. Ele advogava que os profissionais da imprensa conhecessem, entre outras, as regras contra os monopólios. Ética também, naturalmente. Ele afirma: ‘Notícias são importantes – é a própria vida de um jornal. Mas o que é a vida sem o caráter? O que é a vida de uma nação ou de uma pessoa sem honra, sem coração e sem alma?’
A verdade e os critérios de sua verificação deveriam constituir outro ramo de estudos na faculdade que ele imaginou. Do mesmo modo a História, a Sociologia, a Economia. Ah, sim, outra área que deveria ser bem estudada seria a Estatística, para que os jornalistas não se deixassem enganar – nem enganassem – pelo uso malicioso dos números. Línguas estrangeiras também. As Ciências. Por fim, o próprio jornalismo: as idéias que revolucionaram a profissão e o mercado, a função social da imprensa, o benefício público que ela representa numa democracia.
Detalhe: Joseph Pulitzer era inteiramente contrário à idéia de que, na escola de jornalismo, fossem ensinadas noções de administração e de gestão de negócios. Isso era assunto dos homens de negócio, ele dizia, não dos homens de imprensa. E foi assim, com essas poucas orientações, que ele plantou aquela que hoje é vista como a mais destacada faculdade de jornalismo do mundo – cujo curso, por sinal, é de curta duração em comparação com as nossas faculdades. Em um ou dois anos, o sujeito sai formado de Columbia. Em seu tempo, Pulitzer enxergou o futuro – e o futuro que ele foi capaz de ver ainda não esgotou seu prazo de validade.
O que sugeri à comissão do MEC
Existem, é claro, boas experiências no Brasil de ensino de jornalismo. Dessas experiências surgirão soluções para os trabalhos da comissão. Além das experiências brasileiras, há outras referências que considero úteis, como a proposta da UNESCO para o ensino de jornalismo: Model Journalism Curricula for Developing Countries and Emerging Democracies (o projeto está disponível aqui, em inglês e espanhol). Neste artigo, porém, não devo tratar dos projetos existentes. Vou apenas resumir a idéia que apresentei, apenas em parte, para exame da comissão.
O meu ponto de partida é muito simples: a imprensa cumpre uma função indispensável à democracia – antes de atender a demandas de mercado. É para a democracia, portanto, que devemos perguntar o que ela espera do jornalismo. Nesse sentido, a formação dos jornalistas deve se organizar em torno do projeto de formar profissionais capazes de entender, criticar e exercer a fiscalização do poder, de modo independente, comprometida com a verdade dos fatos e com o livre trânsito das idéias e opiniões as mais diversas. A comissão, na medida em que julgar necessário, cuidará de especificar em detalhes as habilidades e competências dos profissionais de imprensa e deverá, nessa perspectiva, estabelecer as correspondências entre essas habilidades e competências e os conteúdos oferecidos pelo curso.
Logo, acredito que esses conteúdos devam se articular em torno de sete eixos:
**
Linguagens.**
Democracia e Liberdade.**
Estudos da Comunicação.**
Humanidades.**
Reportagem.**
Cultura e Crítica.**
Gestão e Negócio.Passo a um breve detalhamento:
I.
No eixo das Linguagens, proponho o estudo do estilo, da retórica e da lógica no texto, tanto em ficção como em não-ficção. Aí, também, incluo as linguagens audiovisuais e as técnicas da era digital, que o estudante deve conhecer, compreender e dominar na prática. Já não há sentido na divisão esquemática, hoje ainda em voga nas faculdades, que põe de um lado a disciplina de ‘jornalismo impresso’ e, de outro, o ‘jornalismo online’. Ainda nesse mesmo eixo deveriam comparecer a estatística e a matemática elementar. Em apoio a esse primeiro eixo, teríamos oficinas práticas de gramática e de línguas estrangeiras.II.
Em Democracia e Liberdade, a partir de matérias vindas do Direito e da Ciência Política, o aluno conheceria os fundamentos da democracia, o funcionamento dos poderes e a administração pública. Direitos Humanos, cultura da paz, políticas públicas, transparência e terceiro setor ocupariam lugar de destaque no programa. Legislações de imprensa e História da Imprensa seriam estudadas também aqui.III.
Penso que os Estudos da Comunicação, que vários especialistas consideram um campo estranho ao jornalismo, não podem faltar na formação de bons profissionais. Embora possam ser vistos também no eixo das Linguagens, os temas deste terceiro eixo merecem atenção à parte. Não há muito como escapar: a reflexão sobre os processos comunicacionais mora no âmago da consciência profissional.IV.
Todos afirmam, com razão, que o bom jornalista vem de uma boa formação humanística. A questão é como sistematizar e modelar essa formação. Assim, as Humanidades, no currículo das faculdades de jornalismo, deveriam produzir uma primeira síntese a partir do qual o estudante fosse capaz de mapear esse conhecimento e prosseguir seu aprendizado mais adiante. História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia (e a Ética), Psicologia e outras entrariam aqui.V.
Reportagem. Nesse eixo essencialmente prático, e de longa extensão durante o curso, o aluno se iniciaria em técnicas de apuração, contato qualificado com as fontes, investigação de contas públicas e da conduta de autoridades etc.VI.
Em Cultura e Crítica seriam vistos, em destaque, as artes, as práticas culturais e sua compreensão crítica. Naturalmente, haveria um forte entrelaçamento entre este e os eixos I, III e IV.VII.
Por fim, e aqui contrariando Pulitzer, penso que o jornalista precisa ter noções sobre governança, planejamento e liderança de equipe logo em sua primeira formação. Isso o ajudará, mais tarde, a empreender novas idéias.Para encerrar, reitero que as sugestões que fiz à comissão – e, no esforço de resumi-las, não cheguei expor todas as que reuni agora – são meramente sugestões, ou seja, a comissão pode dispor delas do modo como julgar mais adequado, no todo ou em parte. Confio nos critérios adotados pelos professores e é com boa fé e espírito colaborativo que deixo aqui documentado esse resumo, também ele bastante condensado, das minhas idéias sobre o tema.
Leia também
A Renoi e as Diretrizes Curriculares — Rede Nacional de Observatórios de Imprensa******
Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP