Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Assim é que lhe parece…

A discussão sobre a TV que o Governo Federal quer criar poderia ser mais clara se os conceitos de televisão pública e televisão estatais fossem claros. De qualquer maneira, os ocupantes do Palácio do Planalto não podem reclamar da desconfiança generalizada que se instalou na sociedade, desde o anúncio extemporâneo da idéia, feito pelo Ministro das Comunicações, Hélio Costa, quanto às intenções do Poder Executivo.

Há que se recordar que o assunto nasceu durante as eleições de outubro do ano passado, quando Lula e o PT se colocaram como vítimas de um intricado complô da mídia; as idéias foram fervilhando, se multiplicando, o debate sobre democratização da imprensa se instalou entre os petistas, aprofundaram-se nas análises e desdobramentos da parte do programa de governo referente à comunicação do então candidato à reeleição, até se materializar a TV do Executivo.

O que desejo enfocar neste artigo, no entanto, não são as intenções por detrás das vírgulas, e. sim, o que pode estar dando margem a que, por detrás de definições vagas, se possibilite, realmente, um instrumento e uma política de comunicação cujos fins, por não ficarem explicitados, podem ser o que o dono quiser.

Leitura atenta

O que se impõe, nesse meu ponto de vista, é a definição clara do que seja televisão pública e televisão estatal. A princípio, mais uma vez o próprio governo alimenta as dúvidas, ao batizar essa sua idéia de TV do Executivo – se é do Executivo, é do Governo, é estatal; se do público fosse, deveria ser TV Pública.

Pois que só há um instrumento legal, por sinal o maior deles, a Constituição, que fala em televisão pública, estatal e privada. Em seu artigo 223, a Carta Magna diz o seguinte: ‘Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas PRIVADO, PÚBLICO E ESTATAL.’

Ocorre que este artigo permanece até hoje sem regulamentação, sem que sejam definidos, exatamente, os campos de atuação de cada um dos sistemas, o que lhes confeririam as necessárias e esclarecedoras especificidades. Talvez por isso mesmo, o ministro Hélio Costa, que escancarou o debate – esse mérito é só dele – não se ateve à Constituição para justificar sua visão do projeto. Ele buscou amparo na legislação que rege a implantação da TV Digital no país.

O Decreto Nº 5.820, de 29 de junho de 2006, em seu artigo 13, diz que ‘A União poderá explorar o serviço de radiodifusão de sons e imagens em tecnologia digital, observadas as normas de operação compartilhada a serem fixadas pelo Ministério das Comunicações, dentre outros, para transmissão de I – Canal do Poder Executivo: para transmissão de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Executivo; II – Canal de Educação: para transmissão destinada ao desenvolvimento e aprimoramento, entre outros, do ensino à distância de alunos e capacitação de professores; III – Canal de Cultura: para transmissão destinada a produções culturais e programas regionais; e IV – Canal de Cidadania: para transmissão de programações das comunidades locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal.’

Daí, surgiu a expressão ‘TV do Executivo’ que, questionada, passou para ‘TV Pública’. Este artigo sugere a leitura atenta dos preceitos legais citados, o que parece ter sido negligenciado pelas autoridades do governo central que estão se pronunciando sobre o assunto. E cabe advertir as várias interpretações que toda lei nos possibilita, aqui possibilidades essas exarcebadas pela falta de clareza na definição dos objetos foco da legislação. Na verdade, a não regulamentação do artigo 223 da Constituição torna a leitura da legislação da TV Digital confusa.

Foco legalista

Em recente debate na comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática da Câmara dos Deputados, o ministro Hélio Costa, exatamente usando de filigranas legais, disse que, a princípio, todos os canais de televisão, em atividade ou não, são da União e assim o permanecem porque sua utilização é fruto de concessão de uso. A princípio ele está certo. Mas, o que se está discutindo não é a titularidade, mas a atividade a que se prestará cada canal.

Na verdade, o decreto 5.820 no seu artigo 13 diz que a União poderá explorar o serviço de radiodifusão digital nos termos que estabelece a seguir. Ora, se a exploração do serviço é da União, então a atividade será estatal, e não pública. Atente-se para o fato descrito no decreto de que, dos quatro canais reservados à União, somente no Canal de Cultura parece não ter atribuições oficiais. O Canal do Executivo é para transmitir o trabalho do governo; o de Educação capacitará professores. E até o da Cidadania – proclamado pelo ministro Hélio costa como pertencente à comunidade – terá que divulgar ‘atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal.’

Com este quadro, com essa legislação, não há como pensar outra coisa: a televisão que o governo planeja fazer, agora sob o comando do Ministro Franklin Martins – que tem a seu favor sua militância radical pela Democracia –, da recém criada Secretaria de Comunicação Social (que por juntar verba e verbo merece um debate à parte) é sim ESTATAL, e não PÚBLICA.

O perceber da falta de fronteira clara, no Brasil e no caso da radiodifusão, não é ideológico; não se pode culpar o PT e o governo Lula de se querer democratizar a comunicação com inspirações, no mínimo, pouco democráticas. Trata-se apenas de, fazendo o mesmo com as palavras, uma chicana administrativa – o governo de plantão interpreta a dúbia legislação de acordo com os seus interesses.

Assim, como essa discussão envolve a democracia, e observando os rumos para onde essa discussão está apontando, faz-se imperioso que ela saia do campo político e retome o foco legalista. Até pelo caráter permanente que terão as conclusões e as decisões advindas do atual debate.

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Jornalista