Enquanto escrevo este artigo, entra na quarta semana de exibição o programa Direitos de Resposta. A empreitada é o resultado de uma ação judicial movida pelo Ministério Público de São Paulo, em parceria com seis entidades de direitos humanos, contra a Rede TV!, em razão de recorrentes violações de direitos cometidas no programa Tardes Quentes, do humorista João Kléber.
O apresentador, demonstrando ignorar qualquer princípio de respeito aos direitos humanos, declarou-se ferido na sua liberdade de expressão artística. O protesto é uma pequena amostra da idéia geral defendida pelos donos e porta-vozes das grandes empresas da mídia: a auto-regulamentação irrestrita.
Exemplos de manifestações mais concretas desta ideologia são o Conar (Código Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária) – uma ‘ação entre amigos’, como bem denotou o observador Alberto Dines – e a atitude raivosa e autoritária em relação às propostas de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e da Agência Nacional do Audiovisual (ANCINAV), que continham elementos, bastante comuns e eficazes em tantos outros países, de controle público e social da mídia.
O ‘noticiário’ a respeito desses assuntos, em 2004 e 2005, explicitou de forma inequívoca a estratégia dos (tu)barões da mídia: sequer aceitam a possibilidade de debater amplamente, no Congresso Nacional e/ou na sociedade, os detalhes das propostas. Simplesmente puseram seus arsenais midiáticos para rejeitá-las sumariamente, inclusive através da desqualificação grosseira dos defensores das mesmas, como se tratassem de algo abjeto aos olhos e ouvidos de qualquer pessoa.
Protagonistas ativos
A idéia do controle público – feito em público e pelo público – e social da mídia não é nova no Brasil. No entanto, é muito pouco conhecida pela população em geral, insuficientemente debatida no campo da comunicação e, pior de tudo, raramente colocada em prática pela sociedade organizada.
Em 2002 foi publicada no Brasil, pela Edusc, uma obra bastante valiosa sobre o tema: O arsenal da democracia: sistemas de responsabilização da mídia, de autoria do professor francês Claude-Jean Bertrand [leia aqui o prefácio do livro e aqui, o primeiro capítulo]. O livro comenta sobre mais de uma dezena de experiências do que Bertrand denomina de ‘Media Accountability Systems’ (MAS), traduzido para o português como ‘Sistemas de Responsabilização da Mídia’. Conselhos de imprensa e códigos de ética jornalística de vários países, publicações especializadas em crítica de mídia, ombudsman/mediador/ouvidor, crítico interno, pesquisas acadêmicas que visam contribuir com o aperfeiçoamento da mídia, campanhas e movimentos de ‘consumidores de mídia’, projetos inovadores, como o Project Censored, nos EUA, entre muitos outros, são abordados pelo autor e por diversos colaboradores.
A idéia central que justifica cada vez mais a proliferação e o fortalecimento dos MAS, segundo Bertrand – que também escreveu A deontologia das mídias, em 1999 – é a necessidade de livrar o processo de produção e circulação de informação e cultura das perigosas armadilhas do mercado da mídia totalmente desregulamentado, por um lado, e do Estado, sempre com tendência autoritária e centralizadora, por outro.
Embora não faltem experiências – bem-sucedidas, inclusive – para ilustrar este agitado cenário de disputa relativa aos meios de comunicação no Brasil, ainda temos que avançar muitas posições para que sejam obtidos ganhos concretos e para que a cultura em relação a este segmento da vida social seja efetivamente transformada.
De modo geral, fomos condicionados a não encarar a comunicação como um patrimônio público e/ou, muito menos, um direito humano. No máximo, fala-se em ‘serviço’, termo que traz consigo a aura de ‘negócio’. Daí o primado da indústria da informação, ou do ‘infotretenimento’, sobre a concepção do direito humano à comunicação.
Assistimos, literalmente, ao espetáculo de segregação e estigmatização de tudo aquilo e de todos aqueles que se posicionam de forma contrária às idéias principais do ‘pensamento único’ vigente, expressão cunhada por Ignacio Ramonet para se referir ao dogmatismo avassalador do neoliberalismo.
Neste sentido, a vitória judicial obtida contra a Rede TV! e seu apresentador/violador de direitos humanos representa um marco histórico. Pela primeira vez nas quase seis décadas de existência da televisão brasileira, organizações que representam setores notoriamente discriminados pela chamada ‘grande mídia’ foram alçadas, nestes tempos de ‘esfera pública midiatizada’, à condição de protagonistas ativas no exercício do seu direito a expressar suas opiniões e posições políticas a respeito dos mais variados assuntos.
Visão distorcida
Nas três primeiras semanas do Direitos de Resposta, os quinze programas envolveram dezenas de entrevistados e produções em vídeo de entidades que provavelmente jamais teriam acesso a uma rede de televisão em cadeia nacional. Entre os temas, todos censurados ou abordados de forma superficial ou distorcida pela mídia corporativa, figuram diversidade sexual, questão racial, deficiência, educação, concentração da mídia e o direito à comunicação, liberdade religiosa, direito à terra e à moradia, discriminação contra a mulher e outros.
Os instrumentos de controle social da mídia, como a campanha ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania‘ ou as redes de entidades da sociedade, como a CRIS Brasil, saem fortalecidos deste episódio. Ganharam pujança e visibilidade e acumularam experiência para o prosseguimento da batalha contra-hegemônica.
A veiculação do Direitos de Resposta se encerra no dia 20 de janeiro, mas a disputa por uma mídia democrática, que respeite e promova a comunicação como direito humano, seguirá sem data para terminar – porém com mais força e inspiração a partir dessa conquista memorável. Um próximo passo é superar a visão distorcida – por quem tem interesse nela – de que controle social é igual a censura. Ótimo desafio para 2006.
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Jornalista da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social