Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Balanço de muitos recuos e alguns avanços

O ano de 2005 chega ao fim e o balanço que se pode fazer no sentido da consolidação do direito à comunicação para o conjunto da população brasileira não é favorável.

É verdade que alguns avanços foram feitos. Aparentemente, houve aumento significativo no grau de consciência coletiva sobre a importância da mídia no cotidiano das pessoas. Houve, sobretudo, várias iniciativas do movimento social e de organizações da sociedade civil. No entanto, as expectativas em relação a ações positivas do Executivo e do Legislativo foram se frustrando, uma a uma, ao longo do ano.

Sem qualquer pretensão de ser exaustivo, relaciono alguns exemplos.

Duas promessas foram feitas pelo governo federal em janeiro, quando do recuo em relação ao pré-projeto da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav). A primeira, sobre a imediata elaboração de um projeto que preservasse o caráter de fomento e fiscalização da agência. A segunda, sobre a elaboração do projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGCEM). Nenhuma das duas foi cumprida.

No caso da LGCEM, decreto de abril criou um grupo de trabalho interministerial (GTI) para elaborar o projeto. Apesar da demora de cinco meses para ter sua constituição anunciada, o GTI nunca foi instalado e, quase um ano depois da promessa feita, sequer começou a funcionar.

Outro exemplo são os serviços de RTVIs – Retransmissão de TV Institucional – que retransmitiriam, nos municípios, os sinais de geradoras exploradas diretamente pela União e poderiam inserir programação local (institucional, educativa, artística, cultural e informativa) em até 15% do total das horas de programação retransmitida. Criados por decreto em fevereiro, duraram apenas sete semanas. O que poderia vir a ser o embrião de uma verdadeira rede pública de TV foi revogado por outro decreto, em abril.

Posições desconsideradas

A apresentação de uma alternativa para a Lei das Rádios Comunitárias também não se concretizou. Apesar da criação de um GTI, nada aconteceu (um grupo de trabalho já havia sido criado no Ministério das Comunicações, em 2003, e resultou em nada). Na verdade, o relatório final do GTI, redigido em agosto, não foi entregue ao presidente da República e suas sugestões não saíram do papel. Consta que o atual ministro das Comunicações discorda das conclusões do GTI e, por isso, não teria dado o encaminhamento devido ao documento.

Registre-se ainda que os movimentos sociais ligados às rádios comunitárias, apesar de ouvidos, não participaram diretamente do GTI; e que não há consenso entre eles sobre o apoio às conclusões do seu relatório final.

Outro fato refere-se aos encaminhamentos que o atual ministro das Comunicações tem dado para a importante definição do padrão de TV digital a ser adotado no Brasil. Na prática, as posições das organizações que representam o pensamento da sociedade civil têm sido desconsideradas em favor dos interesses dos grupos que controlam a radiodifusão no país.

Razões para frustração

No que se refere ao Congresso Nacional, as frustrações não são menores.

Vários deputados e senadores, no exercício pleno de seus mandatos, continuaram em 2005 sócios de empresas concessionárias de radiodifusão. Mais do que isso. Esses parlamentares votaram não só matérias relativas à radiodifusão, mas às novas concessões e renovações de concessões de radiodifusão, inclusive as suas próprias. Essa tem sido uma das causas importantes para a perpetuação do chamado ‘coronelismo eletrônico’ no Brasil.

Também em 2005 foi apresentada – e começou a tramitar na Câmara dos Deputados, subscrita por 189 parlamentares – uma proposta de emenda constitucional (PEC 453/05) que exclui deputados e senadores das restrições constitucionais com relação ao controle de concessionárias de radiodifusão. Se aprovada a PEC, o que hoje é ilegal (mas, mesmo assim, é praticado) continuaria a ser feito, agora legalmente. Mas continuaria a ser gritantemente antiético.

O projeto de lei que regulamenta o artigo 221 da Constituição, referente à regionalização da programação de radio e TV – e que, em março de 2006, completa quinze anos de tramitação – depois de aprovado na Câmara dos Deputados encontra-se parado na Comissão de Educação do Senado Federal.

Uma Frente Parlamentar da Radiodifusão, subscrita por 136 deputados de 14 partidos, foi criada em dezembro. Na verdade, trata-se de uma frente contra as rádios comunitárias, em defesa dos interesses dos radiodifusores privados, muitos deles parlamentares.

Registre-se também a nova composição do Conselho de Comunicação Social (CCS), que rompeu – a favor dos empresários – o equilíbrio precário existente entre representantes da sociedade civil, dos próprios empresários e das organizações profissionais do setor.

Há ainda outras razões fortes para frustração. Por exemplo: a agência reguladora das telecomunicações, a Anatel, em decisão tomada em novembro, aprovou a fusão das operadoras de TV por assinatura via satélite Sky (News Corporation + Globo) e Direct TV. Se o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) do Ministério da Justiça confirmar essa decisão, a nova operadora passará a ter o controle de 95% do mercado – ou seja, na prática, terá o monopólio do setor.

Diretrizes e prioridades

Mas nem tudo são derrotas. Avanços importantes precisam ser lembrados.

O mais emblemático talvez tenha sido fruto de uma ação civil pública que pediu a cassação da concessão da Rede TV! por violação dos direitos humanos e manifestações de homofobia no programa Tarde Quente, apresentado por João Kleber.

A ação foi ajuizada em outubro pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo (PRDC-SP) em conjunto com as ONGs Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; Centro de Direitos Humanos; Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo; Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo; Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual; Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual.

Uma decisão judicial deu provimento à ação do PRDC-SP e depois de várias negociações a Rede TV! fez um acordo com o Ministério Público Federal e as ONGs, comprometendo-se a garantir a transmissão e o custeio da produção de 30 programas de conteúdo educativo (‘Direitos de Resposta’) que promovam e defendam os direitos humanos entre os dias 5 de dezembro e 13 de janeiro, de segunda a sábado. Esse é um fato inédito na história da TV brasileira.

No mesmo sentido, o Instituto Projor – mantenedor deste Observatório da Imprensa na web, na TV e no rádio – protocolou, na Procuradoria Geral da República, em outubro, documentos para servir de base a uma representação que questiona a legalidade da ação de deputados que, além de concessionários de rádio e televisão (e membros da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados), também votam em favor da renovação de suas próprias concessões.

A campanha ‘Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania’, que reúne dezenas de entidades da sociedade civil e funciona na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, completou três anos em julho. Nesse período a campanha tem divulgado o ‘Ranking da baixaria na TV’ e obtido importantes vitórias em relação ao conteúdo e ao horário de exibição de programas na TV comercial privada.

Outro fato importante foi a divulgação, no início de dezembro, das conclusões de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a não utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) pelo governo federal, comprometendo os programas de inclusão digital. Dentre outras recomendações, o TCU determinou que o Ministério das Comunicações deverá apresentar, no prazo máximo de 180 dias, diagnóstico da necessidade de universalização de telecomunicações no Brasil e apontar políticas, diretrizes e prioridades para sua aplicação, indicando os programas governamentais que receberão os recursos.

Ação da sociedade

No balanço geral de 2005 há também que se mencionar o papel central que a mídia desempenhou na grave e prolongada crise política que atingiu o governo federal e vários partidos. Essa centralidade fez com que a mídia se transformasse, ela própria, em objeto de discussão em importantes setores da sociedade civil. E esse é, com certeza, um fato extremamente positivo.

A sobrevivência e até o fortalecimento de uns poucos, mas importantes, veículos da chamada mídia alternativa – ou independente –, mesmo sem o volume de recursos em verbas publicitárias que se esperava pudesse vir do governo federal vis-à-vis o que é destinado à grande mídia, é também um fato que deve ser registrado e celebrado.

E é preciso registrar o auspicioso início das transmissões da Telesur, projeto de iniciativa do governo da Venezuela para construção de uma alternativa de televisão para a América Latina. E também da entrada no ar da TV Brasil – Canal Integração, liderada pela Radiobrás e reunindo as emissoras de TV dos três poderes da República.

2006 será certamente um ano dominado pelas campanhas eleitorais. Isso não nos dá esperança de que possa haver grandes alterações no comportamento do Executivo e do Legislativo. Por outro lado, alguns temas que afloraram discretamente este ano tendem a reaparecer. Um deles, ainda a ser mais bem pesquisado e esclarecido, refere-se a uma possível forma nova de utilização indireta das concessões de radiodifusão como moeda de barganha política. Agora seriam as rádios comunitárias, ‘vinculadas’ a lideranças políticas profissionais desde o encaminhamento da habilitação inicial no Ministério das Comunicações até sua seleção pela Secretaria de Relações Institucionais (ou pela Casa Civil), para envio ao Congresso Nacional. A ver.

De qualquer maneira, o que ficou mais uma vez abundantemente claro em 2005 é que os poucos avanços na democratização da comunicação não ocorreram por iniciativa do Executivo ou do Legislativo. Ocorreram sim pela ação consistente da sociedade civil organizada. Essa continua sendo a melhor forma – senão a única – de se buscar a consolidação do direito à comunicação no Brasil.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)