O Artigo 222 da Constituição Federal, que garantia que os meios de comunicação em operação no país fossem controlados exclusivamente por cidadãos brasileiros, foi o único do capítulo Da Comunicação Social a ser alvo de reforma nestes 20 anos. Em 2002, a Emenda Constitucional 36 alterou seus dispositivos, permitindo a presença de até 30% de capital estrangeiro no quadro acionário das empresas jornalísticas e de radiodifusão.
O novo texto estabeleceu também algumas salvaguardas. A gestão das atividades, a definição da programação e a responsabilidade editorial dos conteúdos deveriam ser controladas exclusivamente por brasileiros. A título de manter o controle sobre a entrada dos capitais estrangeiros, foi previsto que as alterações dos quadros societários decorrentes da entrada de investidores de outros países deveriam ser comunicadas ao Congresso Nacional.
A nova redação do artigo ainda remetia a regulamentação em lei específica. Apesar de ter se comprometido a enviar um projeto de lei para o Congresso como base da norma que detalharia a nova redação do Artigo 222 da Constituição, o governo Fernando Henrique publicou uma Medida Provisória (a 70/2002) no início de outubro.
No apagar das luzes daquele ano, em 20 de dezembro, foi aprovada a Lei 10.610, que disciplinou a entrada dos investimentos internacionais no setor. O uso de uma MP e a tramitação rápida foram um recurso do governo tucano em resposta à pressão do empresariado, que queria evitar que a definição destas regras ficasse a cargo do recém-eleito governo de Luis Inácio Lula da Silva.
Motivos nada nobres
Esta agilidade também já havia marcado a tramitação da Emenda Constitucional 36. Em menos de um ano, seus operadores no Congresso Nacional conseguiram resgatar a Proposta de Emenda Constitucional 203/B, de 1995, do deputado Laprovita Vieira (PPB-RJ), e aprová-la, em maio de 2002. Jornalistas que trabalhavam em Brasília na época contam que a votação foi comandada em plenário pelo vice-presidente de relações institucionais das Organizações Globo, Evandro Guimarães, articulador do acordo para viabilizar a concordância dos parlamentares com todos os partidos, à exceção do PDT. O PT, que se notabilizava por uma postura combativa em relação aos interesses do empresariado, acabou também aceitando o projeto, reivindicando durante a negociação a instalação do Conselho de Comunicação Social.
A mudança de postura das emissoras, que até poucos anos antes eram refratárias à presença de capital estrangeiro do setor, se deu por motivos muito concretos: o conjunto de dívidas contraídas ao longo da década de 1990. ‘A aprovação da emenda foi feita para atender os interesses dos empresários, que estavam em um momento delicado do ponto de vista financeiro, pois haviam fracassado na sua tentativa de participar do processo de privatização das teles. Foi na esteira destes fracassos que capital estrangeiro passou a ser luz no fim do túnel’, lembra o professor aposentado da UnB e pesquisador Venício Lima.
Reforma do Artigo 222 abriu setor ao capital estrangeiro
Além da desastrada investida sobre o espólio da Telebrás, citada por Lima, outra aventura dos empresários foi a reforma de seus parques de produção e transmissão. Exemplos são o Projac, inaugurado pela Rede Globo no Rio de Janeiro em 1995, e o Complexo Anhanguera, lançado pelo SBT em 2000. Tais iniciativas foram motivadas pela paridade entre o real e o dólar. Quando veio a desvalorização cambial, em 1998, a dívida contraída explodiu.
O resultado foi o acúmulo de prejuízos da ordem de R$ 7 bilhões em 2002, sendo R$ 5 bilhões apenas da Globopar, holding das Organizações Globo. A situação dramática gerou inclusive uma divisão entre os radiodifusores. As redes SBT, Record e Bandeirantes reivindicavam uma abertura maior do que os 30% previstos no projeto. A Globo foi contra. Ela precisava garantir a sua capitalização sem correr o risco de que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro, ou seja, que suas concorrentes não utilizassem o apoio de investidores estrangeiros para fortalecerem demais sua atuação no país.
Pró-mídia
No entanto, a expectativa de que a abertura ao capital estrangeiro resolvesse os problemas financeiros das empresas de comunicação não se concretizou. Sem encontrarem interessados em seus negócios, os radiodifusores transferiram o foco de suas lamentações do Congresso para o Executivo. O recém-eleito governo Lula foi duramente pressionado a elaborar um programa de ‘resgate’ das empresas, apelidado de Pró-Mídia. Em 2004, o BNDES assumiu a possibilidade de executar o programa e chegou a prometer R$ 4 bilhões para o setor, que àquela época acumulava dívidas de R$ 10 bilhões.
Em documento divulgado à época, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), questionou a necessidade da ajuda financeira e defendeu, caso ela fosse ser levada a cabo, a exigência de contrapartidas dos contratantes dos financiamentos como: transparência na gestão dos recursos obtidos, tratamento equânime para os veículos públicos e estatais, garantia de acesso por novos concorrentes e não apenas pelos endividados, e compromissos de que parte do empréstimo fosse usado para adquirir produção independente e regionalizada.
As divergências surgidas já durante a formatação do texto da Emenda Constitucional ressurgiram, levanto a um racha dentro da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Estas divergências internas dos radiodifusores foram importantes para a desistência do programa de apoio por parte do governo federal. A Globo, em situação mais dramática, iria resolver sua fragilidade financeira articulando a abertura de outro setor a investidores internacionais: o da televisão por assinatura.
Abertura nas telecomunicações
Após a aprovação da Emenda 36, a única empresa jornalística ou concessionária de rádio e TV a vender parte de seu capital a um grupo estrangeiro foi o Grupo Abril, controlador da principal editora no ramo de revistas. Em 2006, ela negociou 30% de suas ações para o grupo Naspers, uma empresa multinacional com base na África do Sul que atua na área de mídia eletrônica.
‘Até onde se sabe, a questão da propriedade dos meios de comunicação no Brasil jamais esteve na pauta dos grupos financeiros internacionais, para efeito de controle econômico’, analisa o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Othon Jambeiro. Para ele, o setor mais atrativo para os empresários estrangeiros sempre foi o de serviços de telecomunicações. Quando houve a reforma constitucional, tal tendência já havia se confirmado na privatização do setor de telefonia. A espanhola Telefónica e a Portugal Telecom ficaram com o ‘filé’ do fatiamento do Sistema Telebrás, ao adquirir a Telesp.
Dois anos após a aprovação da Emenda 36, em 2004, foi a vez da gigante latino-americana Telmex entrar no país com a compra da Embratel por US$ 360 milhões. ‘É preciso entender que, embora não pareça, TV aberta é um negócio em extinção e, num país como o Brasil, onde poucos lêem, editar jornais interessa menos ainda ao grande capital global. O negócio, agora, é a TV por assinatura e na sua regulamentação é que deveríamos estar centrando os nossos esforços’, indica Marcos Dantas, professor da PUC-RJ.
Se comparado à radiodifusão aberta, o mercado de TV por assinatura está sensivelmente mais tomado pelos grupos estrangeiros. O principal responsável por este cenário foi as Organizações Globo, que como resposta às suas dificuldades financeiras promoveu a desnacionalização deste mercado.
Na distribuição por cabo, a Globo passou o controle da Net à mexicana Telmex. Apesar da Lei do Cabo restringir a presença de capital externo a 49%, uma engenhosa operação financeira garantiu o repasse da maioria da operadora aos mexicanos com a anuência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A empresa GB Empreendimentos e Participações, formada por 51% da Globo e 49% da Telmex, comprou 51% das ações ordinárias da Net. Por meio da Embratel, a Telmex comprou 37,3% das ações ordinárias e 49% das preferenciais da Net, chegando ao controle real de 62% da companhia.
No satélite (DTH), as Organizações Globo atuaram fortemente para viabilizar a fusão da DirecTV, da Hughes Eletronic Corporation, com sua operadora Sky, mantida em uma parceria com o conglomerado internacional News Corporation. Em 2006, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autorizou o negócio. Com ele, a nova operadora passou a controlar 97% do mercado, tendo controle majoritário pela News Corporation com 74% e a Globo com 26%.
A Abril, que competiu durante a década de 1990 com a Net, também vendeu sua operadora de TV por assinatura, TVA, para um grupo estrangeiro, a Telefónica. A empresa espanhola explora o serviço de telefonia fixa em São Paulo e detém 50% da Vivo, que atua na área móvel.
Intenção original: controle nacional
Apesar de ter sido o único artigo alterado do capítulo da Comunicação Social, o Artigo 222 esteve entre os poucos consensos dentro da subcomissão que discutiu capítulo Da Comunicação Social durante a Assembléia Constituinte. Em sua versão original, ele restringia o controle das empresas de mídia a ‘brasileiros natos e naturalizados há mais de 10 anos’, aos quais caberia ‘a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual’.
A preocupação com o controle nacional unia os interesses dos grupos remanescentes alinhados aos militares aos da esquerda nascente. A internacionalização do parque produtivo, que viria a ser uma marca do projeto hegemônico no país durante a década de 1990, ainda não havia aportado no país como uma saída para os problemas nacionais.
Para Venício Lima, no texto prevaleceu a tradição constitucional brasileira do setor. ‘Por um princípio antigo, impediu-se também a participação das pessoas jurídicas.A racionalidade atrás disso era que se podia responsabilizar alguém pela calúnia, pela difamação’, explica.
Tal impedimento foi também revertido na Emenda Constitucional 36. Reivindicação dos evangélicos, a novidade tem contribuído para o ascenso da Rede Record no mercado de televisão aberta. Caso o crescimento da rede comandada por Edir Macedo confirme-se a ponto de tirar a liderança de mercado da Globo, estaremos diante de uma ironia: por caminhos tortos, a única reforma constitucional do capítulo Da Comunicação Social terá criado condições para uma mudança profunda nas comunicações brasileiras.
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Do Observatório do Direito à Comunicação