A maior vitória do 6º Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa foi unir representantes dos quatro continentes em Lisboa, entre os dias 10 e 12 de janeiro. Porque embora o português seja a sétima entre as 6.800 línguas vivas do planeta – como o presidente do Observatório da Imprensa em Portugal, Joaquim Vieira, ressaltou na abertura –, ela está espalhada em oito países pelos quatro cantos do mundo, Europa, Ásia, África, América. Mais que uma vitória lingüística, trata-se de uma conquista política, econômica, literária e jornalística.
Os Congressos anteriores coincidiram em Macau com o ano da devolução do território à China, com o processo de independência de Timor, com o nascimento há oito anos e meio da Comunidade de Países de Língua Portuguesa que, segundo seu secretário-geral-adjunto, Tadeu Vieira, foi a resposta política a um sentimento. Tudo concorrendo para o exercício de pensar a lusofonia e de direcionar essa reflexão para nossos temas comuns.
Membro da comissão organizadora, Alberto Dines lembrou que os Congressos de língua portuguesa completavam uma década quando a bolha começava a inflar, gerações eram substituídas nos órgãos de comunicação, os departamentos comerciais adquiriam força excessiva e desproporcional na confecção da media. O que se percebia do lado de fora das redações era um avassalador apetite político temperado com a multiplicação de confissões religiosas, seitas e o agigantamento dos conglomerados econômicos. A imprensa, no meio, vítima desse festim diabólico, desse verdadeiro banquete canibal.
Como buscar a verdade numa área tão pantanosa se o que sempre nos salvou foi a certeza de poder mudar o curso da História? Quando o analista político e professor universitário português José Pacheco Pereira, citando Pôncio Pilatos, disse ‘não sabemos o que é a verdade, mas sim o que é a procura da verdade’, uma dúvida tomou conta da platéia de jornalistas: ainda sabemos?
Este é o desafio do jornalismo sempre, e foi o tema central do Congresso que discutiu media, cidadania e a eterna busca da verdade numa sociedade que, segundo o advogado pernambucano e presidente do Conselho de Comunicação Social, José Paulo Cavalcanti, exige como valores a mentira e a astúcia – qualidades de Ulysses, rei de Ítaca, inventor do Cavalo de Tróia, herói moderno.
Saturação, desinformação
Jornalismo e democracia, jornalismo e ficção, Pacheco Pereira lembrou os relatos proféticos de Kafka, George Orwell e Marshall McLuhan nos retratos que exibiram da sociedade labiríntica, manipuladora, teatralizada.
Quando o mundo real e o virtual dissolveram-se num caldeirão só, e a internet encarregou-se de assumir o papel de mediação, a questão da liberdade no jornalismo passou a preocupar os agentes da profissão que visivelmente privilegiou o pathos (a emoção, o espetáculo), em detrimento de logos (a razão) e ethos ( a ética). Ao mesmo tempo a televisão assumiu a ficção da vida e a promessa fácil de felicidade.
A espetacularização dos media foi ressaltada em diversas ocasiões, mas principalmente na palestra de Mario Mesquita (da Escola Superior de Comunicação Social, Lisboa), que recriminou o abuso do fácil, do leve, do drama, da sedução e do divertido na imprensa. ‘Cada vez há mais mediatização e menos mediação: os políticos se vêem diante de um microfone ao vivo e discorrem sobre algo que não sabiam três minutos antes – como resolver o problema da transmissão ao vivo e o da democracia?’.
Adelino Gomes (Público, Lisboa) responde: ‘Para salvar a democracia a gente reinventa a democracia’. Mesquita continua: ‘E que tipo de sociedade será aquela em que temos a obrigação de saber tudo sobre tudo?’ Leão Serva (Último Segundo, São Paulo) responde lembrando que o mar de informação no qual nos atolamos, um tsumani, produz paradoxalmente saturação, sonegação, submissão e desinformação.
Rede de observatórios
Se já é imensa a dificuldade de trabalhar com ética nas sociedades ditas normais ou democráticas, qual seria o nível de exigência na África onde, citando Isaiah Berlin, Henrique Monteiro (Expresso, Lisboa) definiu aquela sociedade como o lugar do mapa onde as escolhas são sempre pelo mal menor. Aquela sociedade onde o jornalismo está doente porque a saúde da democracia está intimamente ligada à saúde do jornalismo – já havia insinuado Pacheco Pereira.
Para confirmar, o guineense Tony Tcheka (África Lusófona) vem trazer à tona a realidade africana, tão longe, tão perto, tomada pelos terrorismos da fome, da doença, dos refugiados, da dívida interna, mais um tsumani que mata todos os dias. Além de outros tipos de catástrofes informativas provocadas pela guerra onde, na maioria das vezes, não se sabe, não se conhece, não existe o outro lado da história.
Se a comunicação de Tcheka causou tanta perplexidade, e a do angolano Rafael Marques (Fundação Open Society, Luanda) convidando portugueses e brasileiros a uma moção de solidariedade por Angola envergonhou jornalistas como a ex-assessora de comunicação do presidente Mario Soares, Estrela Serrano (‘por que não nos envolvemos nisso antes?’), fica patente que esta comunidade lusófona ainda não se conhece. E vai levar muito tempo para se igualar.
A mesma surpresa com o relato do moçambicano Salomão Moyana (Zambeze, Maputo) sobre o relacionamento desigual entre justiça e jornalismo – o que levou a presidente do Congresso, a caboverdiana Filomena Silva, a perguntar por que não criamos uma rede de observatórios pela internet para nos comunicar todos os dias, um Congresso todos os dias e não de dois em dois, de quatro em quatro anos?
Interesse coletivo
Em proporção menor, autoridades e imprensa também não convivem no melhor dos mundos do lado de cá, como relatou Tolentino da Nóbrega (Público, Funchal) sobre suas experiências com o governo da Madeira: atentados, ataques, exigências. Como contrapeso Maria José Oliveira (Público, Lisboa) denunciou a falta de espírito crítico dos profissionais de imprensa, sua ‘notória passividade e receio de correr riscos’.
Às autoridades, assusta sabermos (os jornalistas) como exercem o poder. ‘Não há notícia que saia do segredo de Justiça que não se saiba nos bares meses antes – mas o jornalista que publicar a história é condenado.’ O juiz e desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, Olindo Geraldes, perguntou, da platéia, ‘por que não há um juiz na mesa?’Ao que os jornalistas da mesa responderam ‘não temos problema de consciência por termos sido injustos com os magistrados neste Congresso: eles erram tanto, o poder judiciário é tão arbitrário…’.
Dines, repondendo ao juiz da platéia, disse: ‘Convidaremos os magistrados para nossas mesas no dia em que também formos convidados para participar dos seus Congressos’. E o juiz Geraldes: ‘Se vivemos numa sociedade tão imperfeita, por que a Justiça teria de ser perfeita?’.
O que Sofia Pinto Coelho (TV SIC, Lisboa), em seguida, acusou, foi a duvidosa cumplicidade com as fontes estabelecida pelo jornalista que cobre tanto a área de polícia como a dos tribunais – mais relações perigosas, e quem perde é a sociedade.
Foi, aliás, por se recusar a revelar uma fonte que um jornalista português arrisca-se a ser condenado a 11 meses de prisão num ato de arbitrariedade e intimidação para toda a categoria. E, como disse Antonio Marinho (Expresso, Coimbra), a única segurança que um jornalista pode oferecer à sua fonte é o sigilo profissional. Se esse sigilo não for respeitado, acabam-se as fontes, morre o jornalismo.
Ser jornalista não é para qualquer um, continuou Antonio Marinho. São pessoas que devem amar a verdade com todos os limites que esse valor implica. E não enfatizar a vitimização, propôs José Manoel Barroso (Agência Lusa, Lisboa).
Embora Carlos Fino (diretor de Comunicação da Embaixada Portuguesa em Brasilia) tenha reconhecido a fragilidade do jornalista, fica evidente a necessidade da autocrítica. José Paulo Cavalcanti delineou então os limites da liberdade: a informação deve ser suas fronteiras no interesse coletivo. Mais uma vez sem autovitimização, sem lamentações, ao contrário, ‘investigando nossos limites’ pediu, ainda, Fernão Lara Mesquita (Grupo Estado de S. Paulo). Há saídas, temos saídas, criemos saídas.
Fogo pelas ventas
No segundo dia, opondo pessimistas, otimistas e céticos, o debate ficou focado no conceito do público e do privado, uma distinção que, para Alberto Dines, é artificial porque ambos têm a mesma obrigação de satisfazer o bem comum com qualidade, desenvolvendo o senso crítico da sociedade .
O problema é saber quem fiscaliza essa qualidade, que autoridade, se no Brasil 30% dos congressistas são detentores de concessões de rádio e TV. Deputados, governadores, caciques políticos controlam a imprensa regional, e um conglomerado único desfigura o sistema mediático brasileiro: a Globo.
Fernão Lara Mesquita explicou que os Estados Unidos foram pioneiros, exemplares na criação da lei antitruste no final do século 19, mas hoje permitem uma imprensa concentrada nas mãos de cinco grupos: Viacom (CBS, MTV, Super Bowl, Paramount Pictures, Simon & Schuster, Blockbuster, Infinity Rádios etc…), Disney (ABC, ESPN etc…), Time Warner (CNN, AOL etc…), News Corporation, de Rupert Murdoch (Fox TV, Harper Collins, Weekly Standard, New York Post, London Times, DirecTV, Star e Sky de TV por satélite na Ásia e Inglaterra, associada à Globo no Brasil), Comcast, a maior empresa de cabo nos Estados Unidos, em processo de fusão com a Disney. Ou seja, logo serão quatro, em vez de cinco. Todos com faturamento acima de duas dezenas de bilhões de dólares anuais.
O Brasil vê sua democracia ameaçada pela concentração gigantesca de um único grupo, a Globo. É mercado de um só ganhador, o resto perde sempre. Para os media é um desastre alastrado pelo jogo do poder político fazendo a cabeça de multidões. Quem regula?
É a democracia que está em causa, reitera Mário Bittencourt Resendes (Lusomundo Media, Lisboa); o mercado dominado pela tecnologia perdeu a capacidade de se auto-regular, completou Sergio Figueiredo (Jornal de Negócios, Lisboa). Embora Figeiredo não veja problema nos conglomerados em si, Fernão Lara Mesquita alertou: ‘Cuidado, até os dragões nascem bonitinhos, mais tarde põem fogo pelo nariz’
Concorrência das novelas
Quanto ao público e o privado, Luis Marinho (RTP, Lisboa) não nega a pressão que a TV estatal recebe dos partidos políticos em Portugal. ‘Podemos sempre dizer ‘não’’, contesta Graça Franco (Rádio Renascença, Lisboa). ‘Se um serviço é público, somos nós que pagamos.’
Mas a pressão dos políticos no poder não impera sozinha sobre a TV pública, Ricardo Costa (SIC, Lisboa) queixa-se de outra, a competição de qualquer televisão, seja pública ou privada, com as TVs a cabo, os satélites.
Novamente a África chocou ao expor sua realidade. O público de Joaquim Gustavo, na TPA de Luanda, convive com a fome, a destruição e recupera-se de 30 anos de guerra doméstica, resultando um jornalismo encomendado, monopolizado, ameaçado numa democracia imberbe. Ele diz: ‘A distinção entre público e privado não está correta, o jornalismo deve ser simplesmente bom ou mau’.
Simão Anguilaze, da TVM moçambicana, vem baixar mais ainda as nossas expectativas. Uma TV pública naquele lado do mundo deve principalmente garantir e defender a paz dura e recentemente conquistada, e prevenir doenças como malária e cólera além da Aids. Lástima, o jornalismo que eles apesar de tudo conseguem colocar no ar ainda tem de competir com as telenovelas brasileiras de Ibope absoluto veiculadas no canal privado, como aconteceu há pouco com O Clone.
Ponto de encontro
Na Europa, como no Brasil, a discussão continua a ser em torno do espaço reduzido dos repórteres e das reportagens, da ausência de um jornalismo cívico como o defendido por Miguel Martins (Correio da Manhã, Lisboa), da falta de mulheres nas chefias e na discrepância dos salários comparados com os dos homens.
Mas nada se igualou à polêmica gerada pela palestra de um jovem jornalista, João Miguel Tavares (Diário de Notícias, Lisboa), acusando os velhos jornalistas de envelhecer mal, de utilizar a tarimba como um trunfo ‘quando, na verdade, tarimba é um mito, ou se tem talento ou não se tem; prática adquire-se em cinco meses’.
‘Os jovens podem não ter conhecido o cheiro do chumbo na impressão mas dominam a tecnologia melhor, têm formação universitária ao contrário dos antigos que vivem em torno de algo grandioso assinado no passado. Vivemos hoje, e hoje o jornalismo é muito melhor do que há 20 anos.’ Ao que o veterano Adelino Gomes respondeu, mesmo considerando que os jovens chegam às redações mais apetrechados: ‘Copy and paste aprende-se em poucos dias. Duro é um jovem desconhecer o autor de Os Irmãos Karamazov ou de Dom Quixote – memória, isso sim é essencial no nosso trabalho’.
Não temos de reinventar um jornalismo a cada geração, reagiram outros veteranos, como Dines. Filomena Silva garantiu ao jovem Tavares que ‘copy and paste até um garoto de cinco anos sabe fazer’. Carlos Fino revidou: ‘Não me parece que os jornalistas, como os futebolistas, têm de restringir sua profissão dos 20 aos 40 anos’.
A última mesa sobre divergências e convergências do jornalismo de língua portuguesa trouxe a nota final do Congresso concluído pelas nossas diferenças. Humberto Monteiro (Gazeta de Notícias, Guiné) receia que a língua portuguesa sucumba se Guiné-Bissau for absorvido pelo Senegal, diluindo a identidade e o jornalismo guineense. Fernando Pereira diz que na Guiné o português é rudimentar.
De Cabo Verde, Paulo Lima repete o apelo: socializar as aproximações via internet, criar espaços de discussões e troca de idéias e de angústias: ‘Mais intercâmbio, menos estereótipos’.
‘Por que não podemos crescer juntos?’, os jornalistas africanos perguntam a seus colegas brasileiros e portugueses. Carlos Fino diz que as diferenças entre Brasil e Portugal também são abismais; e que hoje, em Brasília, lê todos os dias as notícias veiculadas pela portal UOL e jamais vê referências a Portugal; a CBN tem convênio com a Radio France, a BBC, mas com Portugal, nada; a RTP chega ao Brasil e a GNT em Portugal, mas não há parcerias. ‘O Brasil é prioridade para Portugal mas há um desinteresse histórico em relação ao antigo colonizador. Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, ‘os brasileiros renegam o pai desmoralizado’, e eu me pergunto por que, se temos tudo para nos entender’.
Da platéia surge uma pergunta ferina de Acácio Barradas: ‘Por que no Brasil o jornalista pode perfeitamente passar da imprensa para as assessorias de imprensa e voltar como se nada tivesse acontecido?’. A resposta dos brasileiros é imediata: embora a Federação Nacional de Jornalistas não veja problema na hibridização dos jornalistas, a categoria quer acabar com isso, baseada justamente na experiência portuguesa – e esse foi um ponto de encontro entre o jornalismo dos dois países.
No que deu?
Na sua primeira viagem a Portugal, o timorense Antonio dos Santos de Matos, que provou saber cantar até um fado, fez um apelo comovente para que os oito países juntos criem uma mídia em português circulando pelo mundo lusófono. ‘Em Timor, a língua portuguesa é quase nula, principalmente entre os mais jovens’, alerta.
‘Que este encontro produza reflexões a ser desenvolvidas até o próximo Congresso’, pediu Paula Ribeiro (brasileira, do grupo Media Capital, Lisboa), ‘e que nenhuma dessas idéias morra aqui’.
‘Chega de lamentações, já nos lamentamos em seis Congressos, vamos agir’, pede a presidente Filomena Silva.
‘O Sindicato, só, não chega’, insiste Carlos Fino.
‘Então, ainda bem que existem esses Congressos’, José Paulo Cavalcanti reconhece.
Censura, sofremos todos, embora os africanos digam que hoje, de todos, Portugal é o país mais democrático. ‘Se Portugal viveu 48 anos de censura sob o governo salazarista’, interveio Dines. ‘O Brasil viveu 285 anos de diferentes censuras sobrepostas desde a Inquisição, mas conquistamos a liberdade e, neste Congresso, com a presença de representantes de oito países, falamos a mesma língua, queremos o mesmo jornalismo ético. Juntos, podemos. Sem otimismos e pessimismos exagerados, abaixo o niilismo, viva o ceticismo que vai nos conduzir a perguntas, indagações e a desenvolver a capacidade de duvidar. Juntos, chegamos lá.’
Lembrando que num dos Congressos de Língua Portuguesa José Ramos Horta fez sua primeira aparição pública no Brasil – pela primeira vez, a imprensa brasileira falou em Timor –, José Carlos Vasconcelos (Jornal de Letras, Lisboa) pediu que não esqueçamos a importância desses encontros lusófonos. Neles já se propôs a criação de uma Associação de Jornalistas de Língua Portuguesa, um Serviço Noticioso de Língua Portuguesa, uma rede pela internet onde um Congresso aconteça todos os dias – e muito mais.
Mas que fim levou tudo isso?
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Jornalista, relatora dos trabalhos do Relatório final do 6º Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa (Lisboa, 10 e 11 de janeiro de 2005)