Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Censura como política de Estado

Tradicionalmente a censura é apontada como uma ação violenta e daninha praticada por governantes autoritários e, por conseguinte, pouco afeitos às práticas democráticas e aos seus pilares, como a liberdade de expressão. Tudo isso é verdade. As conseqüências da censura não se restringem ao momento histórico em que ocorre, mantendo conseqüências indeléveis também no futuro. No entanto, essa prática não deve ser vista, em nossa história recente, como um ato de barbárie descolado de uma lógica própria e desconectado de iniciativas outras no âmbito estatal.

Desde que a imprensa surgiu no Brasil, com a Gazeta do Rio de Janeiro no raiar do século XIX, a censura foi a prática preferida de governantes para lidar com o jornalismo e com as ‘diversões públicas’. Há uma diferença nesses dois focos: em relação às ‘diversões públicas’ (peças de teatro, músicas, filmes, programação televisiva e radiofônica, enfim, o que chamamos de entretenimento), a censura foi institucionalizada e prevista em diversos marcos legais, o que a tornou moralmente desculpável e socialmente aceita. Em relação ao jornalismo, isso não ocorreu. Leis, decretos e constituições, do início da República até 1964, via de regra, escamotearam essa possibilidade, tergiversaram sobre a liberdade de imprensa e encontraram na subordinação dela a ‘princípios e valores nacionais’ uma justificativa para o cerceamento.

Assim, o jornalismo sempre foi livre, desde que não violasse a moral, os bons costumes, a segurança nacional e que tais. Ou seja: era podado, ainda que oficialmente apontado como livre, porque, livre nas democracias ocidentais, era razoável que democracias nem tão democráticas (perdoem o trocadilho) também o respeitassem à luz das potências norte-americana e européias. Quando não há democracia, esse é sempre um termo de grande apelo retórico.

Falta de quadros

Quando estourou o golpe de 1964, o Brasil não havia formado ou capacitado profissionais capazes de discutir regulação de conteúdo de uma forma democrática. Os principais cursos superiores onde se formavam os jornalistas não os preparavam para esse fim. Os políticos tradicionais não estudavam o tema. Intelectuais tampouco se dedicavam ferrenhamente ao conteúdo. A regulação conhecida e difundida era, ainda, a censura.

Governos de diferentes esferas dispunham de departamentos de censura numerosos, compostos de intelectuais, advogados, jornalistas e policiais, dentre outros. Acreditava-se que a amálgama de profissionais qualificaria o quadro de censores – afinal, intelectuais deveriam compreender melhor que policiais os subterfúgios nas palavras de seus colegas letrados. Em eventuais tempos de democracia, esses departamentos distanciavam-se da imprensa e restringiam-se às ‘diversões públicas’.

A exclusão dos militares desse rol de habituais censores é proposital. Nos departamentos de censura, não era freqüente a presença de representantes das Forças Armadas. Na verdade, quando chegaram ao poder, elas tinham convivido pouquíssimo com a práxis jornalística. Antes de Castello Branco, 26 homens ocuparam o cargo de presidente da República como representantes eleitos ou em épocas de vacância de poder. Desses, apenas sete eram militares, incluindo três membros de uma junta que, durante onze dias, governaram o país antes da posse de Getulio Vargas. O período em que os militares mais permaneceram no poder durou cinco anos, de 1889 a 1894.

Antes do golpe, as Comunicações, para as Forças Armadas, tinham outro sentido. Até 1964, elas participaram, sempre de forma maciça, das instâncias decisórias do setor, como a Comissão Técnica de Rádio (CTR) e o Conselho Nacional de Telecomunicações (CONTEL). Em 1959, foi criada a Arma de Comunicações do Exército Brasileiro, legitimando a participação militar no setor e fomentando o estudo do tema que realmente lhes importava – a infra-estrutura. Seria inviável, neste espaço, debater a fundo os porquês desse foco, mas é possível resumir que seu encanto estava na possibilidade de interligar o país, rapidamente e de ponta a ponta. Não à toa, é possível afirmar que os militares, durante o regime que capitanearam, fizeram, nas Comunicações, a revolução dentro do golpe, ao criar ministério das Comunicações, Embratel, Telebrás, Radiobras e dar uma lógica a todo esse sistema.

Saída natural

E a questão do conteúdo e da imprensa? Ora, a surpresa seria se houvesse algo renovador nesse sentido, consideradas a tradição brasileira e a falta de formação dos novos governantes e de seus assistentes nesse âmbito. A censura foi a tônica, como Política de Estado predileta para lidar com a informação. Mais que isso: grupos de extrema direita chegaram a cometer atentados contra jornais, jornalistas e artistas, em fatos conhecidos de todos.

Vale ressaltar, no entanto, que a censura foi a saída natural, no sentido de que era a forma de regulação de conteúdo mais testada na história do Brasil (para não dizer a única). Acrescente-se a isso a inexperiência dos militares em tratar do tema, seu foco na infra-estrutura e a preocupação constante de qualquer ditadura com a opinião pública e as críticas motivadas pelos meios de comunicação de massa. Nada disso, é claro, torna a censura realizada menos violenta ou desculpável; revela, porém, o tradicionalismo e o simplismo de uma estrutura comprometida por constantes turbulências políticas e descaso com a democracia.

A pergunta que se segue é: por que, então, nunca houve ênfase na capacitação de quadros dispostos a lidar com o conteúdo de forma menos autoritária? Porque o conteúdo sempre foi considerado objeto e alvo das empresas jornalísticas, que advogaram para si a auto-regulação. Essa defesa inconteste só surtiu efeito graças à demora excessiva do Estado em regular o setor, principalmente no que se refere à radiodifusão: quando se experimentou a regulamentação do rádio na década de 1930 e, depois, a promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), em 1962, os governos depararam-se com interesses já consolidados e privados.

Não causa estranheza, por isso, que empresários e parlamentares tenham derrubado, em votação nominal, os 52 vetos de João Goulart ao CBT. Menos chocante, ainda no presente, é a derrubada de qualquer proposta de regulação de conteúdo, sempre taxada de censura por parte da mídia.

Diversos autores chamaram a atenção para o fato de que o pior da censura não é o seu veto momentâneo, e sim a auto-censura, enraizada na cultura como herdeira do autoritarismo. É ela a responsável por nem sequer questionar-se, por se achar que perguntas e críticas só prejudicarão seus autores. O caráter público que necessariamente deve ter a informação é subjugado a interesses privados e individuais por temor do que possa vir a acontecer. Esse estado de paralisia, decorrente da autocensura, não é exclusivo do jornalismo, mas é exponencialmente mais grave em uma profissão tão ligada à democracia. E é essa censura que, saindo do Estado, ganhou as empresas e lá sobrevive.

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Jornalista, doutorando em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV, autor de Políticas Públicas para Radiodifusão e Imprensa (Ed. FGV, 2007) e organizador e autor de Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil Contemporâneo