Na Inglaterra a agência reguladora dos órgãos de telecomunicação (Ofcom) levantou, recentemente, dúvidas quanto ao ‘alcance e qualidade’ do trabalho jornalístico da BBC (International Herald Tribune, edição de 22 de abril de 2005, página 4). A questão, em resumo, é avaliar se o interesse público está bem atendido pela respeitada Instituição. Isto acontece, como dito, na Inglaterra. E com a BBC. Nestas paragens, examinar se o público é bem servido pelos órgãos de imprensa, notadamente jornais e televisões, é algo impensável. Não temos agências ‘reguladoras’, mas, em compensação, o péssimo costume de definir como ‘censura’ qualquer comentário sobre o papel da imprensa, até mesmo as decisões judiciais que digam respeito à atividade jornalística.
Os críticos de nosso dia a dia, em verdade, não admitem críticas. Só os elogios de sempre: ‘bastiões da democracia’, ‘garantidores das liberdades’ etc. São intocáveis, enfim.
A imprensa brasileira especializou-se na ‘investigação’ e os resultados de suas diligências nem sempre podem ser definidos como de boa ‘qualidade’ nem, muito menos, como sendo do ‘interesse público’. Salvo se o escândalo e o estardalhaço forem critérios de avaliação. Mais provável é verificar a assustadora imprecisão técnica do noticiário, o abundante recurso às fontes anônimas e, até, ilícitas. As manchetes, no entanto, revelam um falso sentido moralista, de correção da ilegalidade e de uma aparente irreversibilidade da situação que o jornal, por exemplo, já definiu como ‘criminosa’.
Quer dizer, o pobre coitado que for a ‘bola da vez’, inocente ou não, é condenado nas páginas dos diários ou dos telejornais que disputam a primazia de atacar a reputação alheia. Esta avidez, reveladora, antes de tudo, de uma certa falta de classe, não esqueçamos, costuma vir acompanhada da palavra do expert do assunto ou do oportunista de plantão.
Jornalismo fiteiro
Uma primeira ‘tendência’ desta prática ‘detetivesca’ foram as fitas resultantes de gravações de conversas telefônicas, feitas por terceiros sem autorização judicial, porém divulgadas sem parcimônia. Hoje, mais comum, é a câmara escondida ou o acesso privilegiado aos autos de inquéritos policiais, inclusive para cópia de documentos ou reprodução de gravações das famigeradas conversas telefônicas, as quais, ainda que feitas com autorização judicial, não podem ser divulgadas nos termos de expressa disposição de lei (artigo 10, da Lei nº 9.296, de 1996). Tudo serve ao propósito da ‘liberdade de imprensa’, aliás um termo cunhado por jornalistas que se julgam titulares de um direito excepcional, por isso inexistente e que sequer conhecem os dizeres da Constituição: ‘liberdade expressão’, isto sim (artigo 5°, IX).
Alguns casos sobressaem.
O ‘propinoduto’ deu causa à monumental injustiça, quando um jornal de grande circulação no Rio de Janeiro – e a televisão associada – anunciaram a descoberta da ‘contabilidade’ do caso. Nada disso. A busca policial na residência de um ‘suspeito’ não encontrou prova de qualquer envolvimento desse cidadão, eleito pelo jornal como ‘alvo’. O delegado que apurava o caso assim o disse. Uma certidão judicial tanto comprovava. E então? O periódico corrigiu-se? Nem pensar. A notícia, de primeira página, não foi desmentida e o ‘acusado/condenado’, agora, está pedindo em Juízo a sua indenização. O jornalista, este, até prêmio ganhou.
E o Desembargador Federal acusado de corrupção? Nada foi provado e o processo disciplinar instaurado no Tribunal competente o inocentou. Mas a foto de sua residência, apelidada de palacete, pois o fotógrafo a superpôs com outra para aumentar-lhe o tamanho, as sucessivas manchetes de primeira página, até no domingo, e o artigo do jurista da ocasião, encarregaram-se de destruir a imagem do Juiz, correto e honesto, até que a Justiça diga o contrário. De novo, aqui, haja Justiça, a ser consubstanciada no pedido de indenização contra o jornal e o jornalista (agraciado com um prêmio, é evidente).
Limites da atividade da imprensa
Sauve qui peut, diriam os franceses. Os limites da atuação jornalística, em qualquer dos veículos, precisa ser bem conhecido da sociedade. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, em caso inédito, precursor de outros, por certo, manteve a proibição da publicação do conteúdo de conversas telefônicas clandestinas. A intenção dos jornais, revistas, televisões etc. de derrubar a ordem judicial – definida como ‘censura’, claro – foi destruída com base em princípio constitucional inserido no capítulo dos direitos fundamentais (artigo 5°, incisos X e XII). Nem uma palavra sobre o caso, contudo. Nem que fosse para criticar a decisão. Uma censura às avessas, para impedir o cidadão de saber o que pode e o que não pode o jornal ou a televisão.
A conseqüência é a primazia do fait accompli. Proteger a privacidade do cidadão, nas suas comunicações telefônicas, postais ou eletrônicas, da intromissão ilegal da imprensa, suportada pela fonte criminosa, não é matéria do interesse do jornal. Talvez para que a sociedade não se aperceba que não é ‘censura’ exigir do jornal o respeito a intimidade de cada um de nós.
E vida que segue. Os escaninhos cartorários abarrotados das ações de indenização, dos pedidos de direito de resposta e das queixas-crime. As empresas jornalísticas, uma anunciando na outra, sem retratar o fato, opinando sobre tudo, até o tempo, apegada ao vulgar, investigando e reportando sem muito conhecimento de causa. E o interesse público, estará ele bem servido? E o leitor, será ele atraído por esta imprensa prenhe de adjetivos, insossa e superficial?
De minha parte continuarei assinante do International Herald Tribune. Ali, pelo menos, a fonte segue confirmada ao menos uma vez – e sem row backs levianos – e o esmero no relato dos fatos garantem uma leitura sossegada, ainda que se discorde do conteúdo dos artigos opinativos, que não se confundem com o trabalho do repórter que noticia o que vê e não entrevista por telefone (e quando o faz, deveria dizer).
O fato consumado? Na imprensa de categoria é deixado ao arbítrio do leitor bem informado.
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Advogado