Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Conferência de Comunicação, um marco histórico

Embora o governo federal tenha trabalhado com a questão da lei do audiovisual e do Conselho Nacional de Jornalismo de uma forma que a sociedade não esperava, ele acaba de convocar a Conferência Nacional de Comunicação. Esse evento, que deve ocorrer em dezembro deste ano, é resultado de uma luta histórica da sociedade organizada. Esta espera que, a partir das discussões a serem feitas ao longo da organização e da realização da conferência, aconteça o surgimento de um marco regulatório justo para todos os brasileiros. Até que a Conferência aconteça, o sítio do IHU abrirá espaço para se debaterem os temas que devem ser abordados no evento.

A IHU On-Line conversou com o professor Valério Brittos sobre a realização desta conferência. Segundo ele, a universidade tem um papel fundamental nesse processo. ‘As universidades devem estar na conferência, fazer propostas, discutir com seus alunos, solicitar conferências locais. É o momento em que a própria universidade pode se sentir desafiada e cumprir o seu papel histórico’, afirmou na entrevista, concedida pessoalmente.

Valério Cruz Brittos é formado em Direito, pela Universidade Federal de Pelotas, e em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pelotas, com especialização em Ciências Políticas. É mestre em Comunicação, pela PUCRS, e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é professor do PPG de Comunicação da Unisinos e presidente da ULEPICC – União Latino-americana de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura. Confira a entrevista.

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O mercado e os interesses em jogo

O que precisa estar em discussão durante a Conferência?

Valério Brittos – Eu espero que essa conferência seja o marco histórico que o Brasil precisa, ou seja, um espaço para se discutir o papel da mídia. Além disso, espero que sua realização possa evoluir para um arcabouço regulatório, capaz de fazer avançar nos processos de regulação da mídia, o que considero fundamental. Nesse sentido, minha expectativa é de que haja, ao mesmo tempo, um processo prévio de discussão. Isso já ocorre, de certa forma, através de um conjunto de mecanismos alternativos, como o próprio IHU, o FNDC, a Intervozes. Mas, se não passar pela discussão na mídia, o debate ficará restrito. A discussão sobre saúde, por exemplo, passa pela mídia, havendo, então, um outro nível de impacto. A fim de se atingir esse objetivo, o ideal seria que o governo pudesse liberar, previamente, uma pauta que fosse necessariamente midiatizada, para que a grande mídia pudesse tratar desse tema, preparando a sociedade para debatê-lo.

Como o senhor vê o interesse da grande mídia nesse tipo de discussão?

V.B. – Em princípio, tradicionalmente, eles não têm muito interesse nesse tipo de discussão, pois uma conferência como essa, com o grau de representatividade que se espera que tenha, com participação da sociedade, não é o palco ideal no sentido dos interesses do mercado. A grande mídia, normalmente, prefere discutir internamente, nos gabinetes do Legislativo e com o próprio Executivo, para poder contornar o mercado a partir dos seus próprios interesses, fazendo a legislação do seu jeito. Por isso, afirmo que precisa haver algum tipo de deliberação que simule esse tipo de discussão.

Assinala um nível de mudança

De qualquer forma, além desse debate prévio e do debate durante o desenvolvimento da conferência, o ideal é que se tenha (1) consequências objetivas no plano material, que é justamente, na área da comunicação comunitária ou alternativa; (2) uma chamada anistia para todas as emissoras de rádio que foram fechadas e perseguidas porque não tinham outorga; (3) uma legislação que permita o funcionamento da comunicação alternativa de forma mais ampla, com mais concessões, processos mais ágeis e com modelo de financiamento para eles; e (4) recursos, porque não adianta montar a conferência e não ter a possibilidade para sobreviver. Pode ser com recursos do próprio governo (que investe muito em publicidade) ou até um fundo até da publicidade comercial para a comunicação alternativa. Então, que se pense nisso, numa efetiva complementaridade do sistema privado, do sistema público estatal e do sistema público não estatal. Isso é fundamental.

É preciso pensar, também, em mecanismos de controle do público pelo privado, ou seja, que mesmo a comunicação privada, estabelecida como negócio, possa ser rentável para aqueles que a controlam. Além disso, que ela traga dividendos sociais para o conjunto da sociedade, e exista controle público sobre os atos da midiatização. Controle público sempre há. No entanto, precisamos substituir o controle privado daquelas famílias que controlam uma empresa na questão específica do midiatizar por algum nível de controle público, com criação de conselhos, enfim. A expectativa acaba sendo muito grande. Num país como o Brasil, onde a questão da mídia sempre foi tratada como uma caixa-preta, decidida em gabinetes e corredores, a realização de uma conferência nacional é um marco, um momento de maior importância e assinala algum nível de mudança.

Criar fatos, propor e regulamentar

Frente ao cenário de convergência tecnológica, o que precisa ser modificado na legislação brasileira em relação aos meios de comunicação? Existe espaço para todos?

V.B. – Espaço sempre houve, mesmo no analógico, embora o meio fosse menor. Agora, ao mesmo tempo, sem dúvida com a multiplicação de espaços existe, hoje, um grau de facilidade de ocupação deles. Mesmo com essa questão da digitalização, há dois aspectos que precisam ser considerados. Por um lado, não adianta apenas os meios alternativos terem acesso às mídias segmentadas específicas. É necessário, também, que os grandes espaços massificantes e massificados da produção de sentido se abram para a diversidade, como as grandes redes de televisão, os grandes telejornais e jornais. Por outro lado, é preciso que mesmo os veículos alternativos tenham possibilidade de financiamento. Hoje, isso existe no Brasil apenas na base do voluntariado, mas é preciso que algo seja feito da melhor maneira para obter uma quantidade de público grande, torná-lo fiel. Atualmente, ele é educado para a grande mídia e quer também um conjunto de códigos que possa reconhecer e se reconhecer.

No mínimo há 15 anos, no Brasil, fala-se na necessidade de uma lei de comunicação de massa. Eu diria que o Código Brasileiro na área das comunicações, que vige o campo de radiodifusão, tem mais de 40 anos. Claro que nessa época não existiam internet e outras possibilidades para a televisão. Temos até discutido, no âmbito do grupo Cepos, que o próprio conceito de televisão hoje se transforma, pois ela pode trazer outros serviços e, ao mesmo tempo, ser disponibilizada em outras plataformas tecnológicas. Tudo isso não está contemplado na lei das comunicações. O Brasil precisa de uma grande lei. Eu nem chamaria de comunicação eletrônica. Antes de tudo, o país necessita de uma grande lei de Comunicação Social. E, a partir, daí criar uma grande código que dê conta dessa diversidade. Essa lei deve criar fatos novos e fazer proposições, assim como regulamentar questões já existentes.

Um marco regulatório efetivo

Qual é o papel das universidades dentro desse processo de ‘repensar a comunicação’?

V.B. – A universidade, seja estatal, federal ou privada, tem um papel fundamental e acho que esse é seu momento de reafirmar seu papel de compromisso público. Todas têm um compromisso público histórico, o que precisa ser reforçado, na medida em que as atitudes mostram a vinculação social – função social com os interesses do país – por parte dos seus cursos de graduação e pós-graduação na área da Comunicação Social. Deve haver provocação para o debate junto aos seus alunos, além da comunidade, fazendo essa relação da sociedade com a comunidade universitária. Elas devem fazer propostas, discutir com seus alunos, solicitar conferências locais. É o momento em que a própria universidade pode se sentir desafiada e cumprir o seu papel histórico.

O governo resistiu bastante para anunciar a Conferência Nacional de Comunicação. Que papel ele deve ter nesse evento?

V.B. – Haver uma conferência de comunicação, sabendo que a comunicação sempre foi tratada de forma privada e que os empresários pressionam para que ela não seja discutida e não seja mudada, é um marco histórico, embora tenha saído somente no segundo mandato do governo Lula. Ou seja, apesar do histórico que o Brasil tem da não-discussão da comunicação, existir uma conferência é um fato de grande importância. Nesse sentido, apesar do grau de contrariedade que é o governo Lula, ele quebra um paradigma, acaba sendo ousado e merece ter uma consideração. Aliás, toda essa contrariedade se expressa nisso. Esse é o mesmo governo que cedeu ao padrão japonês de TV digital, que não era o que a comunidade queria. Também é o mesmo que não avançou no conselho federal de jornalismo, uma luta histórica da classe, nem avançou na lei do audiovisual. Ainda assim, criou, com todas as imperfeições que tem, a TV Brasil, uma TV pública, de que o país precisa. Desta forma, o governo já teve um papel fundamental ao convocar essa conferência e segue tendo, ao liberar recursos necessários, criando situações para que o debate aconteça. E, depois, continuará tendo papel importante, sendo permeável para que as decisões da conferência venham a se transformar em marco regulatório efetivo.