Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Conseguirá Cristina fazer o que Lula não fez?

Na abertura da sessão legislativa no último dia 1º de março, a presidenta argentina Cristina Kirchner reiterou que será enviado ao Congresso, ainda este ano, projeto de lei geral de radiodifusão para substituir o decreto-lei 22.285, promulgado pela ditadura militar em 1981, que pretende desmonopolizar o mercado e democratizar a radiodifusão. O envio será precedido pelo lançamento de grande campanha de comunicação que deverá estimular o debate público do tema e realçar sua importância para o cotidiano dos argentinos.

A principal preocupação do governo argentino é o controle da mídia – eletrônica e/ou impressa –, hoje concentrado nas mãos de uns poucos empresários privados (nacionais e/ou estrangeiros) – o que lhes confere, obviamente, enorme poder (ver abaixo trechos de entrevista de Gabriel Mariotto, interventor do Comité Federal de Radiodifusión). Além disso, ao contrário do Brasil, a Argentina não decidiu ainda sobre o padrão digital que adotará. Também não se decidiu sobre a entrada das teles na distribuição de conteúdo audiovisual. Tudo isso deverá ser regulado previamente por uma nova Lei Geral de Radiodifusão.

Três pontos do projeto

Pelo que se sabe, três pontos se destacam no futuro projeto:

1. A radiodifusão passaria a ser organizada em três ‘sistemas’, cada um equivalente a 33% do mercado: comercial, explorado pelo setor privado (este setor controla hoje cerca de 95% do mercado); estatal, explorado pelo Estado; e o restante pelo setor privado não comercial. A expectativa do governo argentino é que o processo de digitalização multiplique por cinco o número de canais hoje disponíveis, possibilitando, assim, a distribuição de novas concessões e a democratização do controle da radiodifusão.

2. Deverá ser reduzido pela metade (12), o número de concessões de rádio, televisão aberta e televisão a cabo, para um só grupo empresarial que, ademais, não poderia controlar mais de 35% de um mesmo mercado (essa medida, por exemplo, atingiria diretamente os interesses comerciais do Grupo Clarín, que detém cerca de 80% das concessões de TV a cabo em Buenos Aires).

3. A exploração das concessões de radiodifusão seria considerada uma prestação de ‘serviço público’, o que permitiria que o Estado, a exemplo do que já ocorre com a prestação de outros serviços públicos, regule os preços cobrados pelos concessionários (de TV a cabo) aos consumidores.

Lições para o Brasil

Anunciado pela primeira vez em maio de 2008, o projeto do governo – que ainda não se materializou – enfrenta, todavia, resistências ferozes da oposição política e, claro, dos atuais controladores da mídia argentina.

A oposição acusa o governo de tentar controlar a mídia, ‘a exemplo do que faz Hugo Chávez, contra a mídia privada na Venezuela’. A presidente da Comissão de Liberdade de Expressão da Câmara dos Deputados considera que não existem as condições mínimas necessárias para discussão e aprovação de uma reforma na radiodifusão tendo em vista os constantes enfrentamentos entre governo e meios de comunicação. A Federação Argentina dos Trabalhadores de Imprensa, por outro lado, emitiu nota apoiando as intenções do governo e declarando-se comprometida com a modificação de uma ‘lei da ditadura, que será defendida com unhas e dentes pelos grandes senhores do monopólio’.

Infelizmente, no Brasil a regulação democrática da mídia permanece um tema que não consegue avançar faz tempo. Ao contrário das enormes expectativas que se criaram antes do primeiro governo Lula, a elaboração de um projeto de lei geral de comunicação eletrônica jamais se concretizou.

As últimas esperanças para algum avanço na democratização do setor convergem para a Conferência Nacional de Comunicação, cuja realização passou a ser de interesse de todos, tendo em vista a ausência de regulação e a necessidade de regras para a disputa dos mercados. E é exatamente aí que está o maior risco de se ter uma conferência nacional que acabe controlada pelos atores – organizados e poderosos – que sempre dominaram o setor e que legitime a perpetuação de uma mídia concentrada e longe de contemplar o direito à comunicação da cidadania brasileira.

Enquanto isso, apesar da feroz oposição que enfrenta da grande mídia local, o governo de Cristina Kirchner, compreendendo a enorme importância da mídia, parece que quer avançar.

Será que se fará na Argentina o que mal se consegue discutir nesta Terra de Santa Cruz?

Entrevista de Gabriel Mariotto

Trechos de entrevista concedida ao Página 12 por Gabriel Mariotto, em julho de 2008 (muito antes, portanto, da eleição de Barack Obama), logo depois de fazer uma viagem aos Estados Unidos para discutir a regulação da mídia (íntegra disponível aqui).

En el imaginario social, Estados Unidos no se caracteriza por la intervención del Estado, sino por dejar al mercado sin demasiadas regulaciones. ¿Con qué realidad se encontró en materia de medios?

Gabriel Mariotto – Están viviendo un debate. Están muy preocupados porque no se concentren en pocas manos los medios de una misma área de cobertura, de una misma región. Las leyes de comunicación en Estados Unidos garantizan libertad de expresión sobre la base de leyes antimonopólicas que también tiene la sociedad norteamericana y que son muy fuertes. En Estados Unidos hay muchos medios de comunicación y muchas voces que se expresan, pero también se ve una tendencia a concentrar. Entonces aparece el Estado en su función, en su rol parlamentario, para profundizar el debate y pedir mucha información cada vez que un empresario quiere comprar otro medio en una misma área de cobertura. Y la sociedad también pide mucha información. En Argentina, en cambio, en los últimos 25 años vivimos un fenómeno de concentración casi sin debatirlo. Parece que fuera natural.

¿Cómo es la legislación estadounidense en materia de comunicación?

G.M. – El Estado es absolutamente claro en fijar normativas para garantizar la libertad de expresión. Porque hay una preocupación de los funcionarios, de la Comisión Federal de Comunicaciones, de los parlamentarios y de la sociedad, que busca garantizar múltiples puntos de vista. Eso hace a una democracia real y plural y participativa, como corresponde. Concentrar, en cambio, significa restringir puntos de vista. En Estados Unidos y la Argentina llegamos a un lugar filosófico del debate pero con dos realidades distintas: los norteamericanos están discutiendo para que el sistema de medios no se concentre y nosotros para que se pluralice.

Os argumentos do establishment

O para atenuar la concentración ya existente.

G.M. – Nosotros buscamos garantizar pluralidad, no atenuar concentración solamente. Garantizar que haya muchas más voces que puedan expresarse. Por eso el proyecto de la ley que hemos terminado garantiza que personas jurídicas sin fines de lucro, el Estado y las personas jurídicas con fin de lucro dispongan del 33% del espectro cada una. Para que esa pluralidad de voces ya tenga un status legal y que a la pregunta de quién es el que emite, haya diversidad de respuestas.

¿La próxima batalla parlamentaria es la ley de radiodifusión?

G.M. – La ley de servicios de comunicación audiovisual es la redistribución de la palabra. Por eso están ligados una cosa con la otra. Desde la Ley 22.285 impuesta por la dictadura no se debate sobre la conformación de un sistema de medios democrático. Esa falta de debate trajo una concentración de voces que no ha sido motivo de discusión en los ámbitos políticos.

La oposición dice que la nueva ley no puede ser sancionada sin también legislar sobre el acceso a la información pública.

G.M. – Hay que sancionar muchas leyes y debatir muchos temas de comunicación. Es cierto que hay otros temas que hay que poner en agenda, pero se me ocurre que cuando los diputados de la oposición están diciendo que con esta sola ley no alcanza, están siendo funcionales a los argumentos de los sectores del establishment mediático que durante veinticinco años no quisieron tratar la ley de radiodifusión y sostuvieron la 22.285.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)