Quando dificulta a expressão legítima e equilibrada do pluralismo político, a mídia é acusada de descumprir uma função historicamente requerida pelas democracias liberais. A fim de zelar pela qualidade e pela diversidade da informação que chega ao público através dos meios de comunicação de massa, diversos Estados modernos lograram construir instituições sólidas como os sistemas públicos de radiodifusão da Europa Ocidental e as respectivas legislações no setor.
Já em países como o Brasil, o livre mercado trouxe resultados que estão hoje sob intenso questionamento, especialmente após a criação do Conselho de Comunicação Social pelo Congresso Nacional, do qual se espera uma atuação decisiva na defesa da função social da mídia.
Este contexto ganha contornos específicos se analisado no quadro do debate atual entre culturalismo e neo-institucionalismo. Assim, cabe avaliar como um país que convive há 40 anos com os limites impostos pela atual configuração de mídia comercial – e pelos respectivos valores, hábitos e expectativas – poderia criar um arcabouço institucional capaz de resguardar a pluralidade da informação.
Este texto retoma aspectos da discussão sobre os papéis das culturas nacionais e das instituições na manutenção do capital social que o desenvolvimento de um país democrático exige, inserindo a função dos meios de comunicação no debate a fim de apontar obstáculos que precisam ser considerados quando se pretende tornar a mídia mais responsiva ao que dela se espera nas democracias liberais contemporâneas. São revisadas características do contexto legal brasileiro de frágil regulação da mídia e, por fim, são apontadas qualidades ideais de um sistema de manutenção da qualidade dos meios de comunicação.
Democracia e capital social
No cenário atual da discussão acadêmica sobre o papel das instituições na manutenção da vitalidade de uma democracia, aponta-se a importância de considerar os arcabouços institucionais de duas formas específicas. De um lado, eles são vistos como mero resultado de tradições culturais mais abrangentes que, estas sim, seriam responsáveis pela criação e sustentação dos elementos aptos a gerar a eficácia das políticas públicas em diferentes setores. De outro, são considerados o estímulo para o desenvolvimento e a consolidação de traços culturais capazes de lograr, adiante, o mesmo tipo de eficiência.
Um ponto em comum a ambas as perspectivas é o reconhecimento de que as instituições, sozinhas, não são capazes de construir caminhos seguros para o desenvolvimento dos segmentos sociais envolvidos em determinada política pública. Outro pressuposto compartilhado é o de que comportamentos, valores e hábitos podem estar a tal ponto arraigados em uma dada sociedade, que passam a ser eles, e não as instituições – sejam elas legislações, conselhos, comissões, autarquias, departamentos, etc – que definem o sucesso ou o insucesso das estratégias de um governo, muitas vezes à revelia do planejamento ditado pelas instituições.
Surge, assim, o conceito de capital social, qualidade obtida a partir do fortalecimento generalizado do exercício dos direitos civis e políticos entre a população de um município, região ou país. Ou seja, trata-se de uma qualidade observada em uma coletividade que situa a participação popular como prioridade nos processos democráticos de definição e implementação de políticas públicas.
Acredita-se, neste contexto, que o poder das tradições culturais deve, de alguma forma, ser avaliado e monitorado pelos administradores. E a maneira mais eficiente seria, justamente, aquela dada por instituições aptas a fortalecê-las na direção de sua expressão cidadã, isto é, no sentido de sua crescente catalisação pelos processos políticos. Uma democracia desenvolvida é aquela na qual comportamentos, hábitos e valores sejam valorizados exatamente na medida em que resultem no fortalecimento institucional, e vice-versa: as instituições poderiam se tornar mais eficazes se impelidas pelas tradições culturais, dinamizando o capital social necessário ao sucesso das políticas públicas. O Estado, por si só, não seria suficiente; exigiria um terreno de receptividade às suas ações e decisões, capaz de realimentá-las, tornando-as mais eficazes, de forma a ampliar a adesão e assim por diante.
Abu-El-Haj (1999) foca este aspecto, sustentando que uma burocracia governamental pode não dispor, sozinha, do poder político exigido para conduzir políticas públicas bem-sucedidas. Por mais eficiente que seja, o Estado não pode prescindir do público, e o reconhecimento da necessidade de incluí-lo na formulação e na implementação de políticas não significa perda de autonomia, mas ampliação da capacidade de produzir a resposta desejada pelas comunidades.
O capital social, entendido como a capacidade de setores das comunidades engajarem-se na consecução de políticas orientadas ao desenvolvimento social, econômico e político a fim de ampliar sua eficiência, é visto na perspectiva do autor como elemento importante para entender o sucesso de políticas implantadas em diversas partes do mundo.
Segundo Abu-El-Haj, a otimização do capital social é alcançada na medida em que se desenvolvem relações de confiança e reciprocidade na comunidade:
Em outras palavras, em duas ou mais comunidades em que o nível educacional das pessoas e os recursos materiais oferecidos são constantes, o que distingue o desempenho de seus membros é a confiança estabelecida, que permite a mobilização coletiva e a maximização dos recursos individuais existentes (1999: 68).
Um elemento que pode ser visto como fundamental para o desenvolvimento do capital social é a cultura política estimuladora do associativismo horizontal, forma de organização que propicia o incremento do bem-estar social a partir da eficiência obtida por redes de solidariedade e confiança que atuam de maneira decisiva para o sucesso das políticas governamentais.
Certas tradições culturais, como aquelas alinhadas à tradição britânica, poderiam resultar em condições adequadas ao melhor rendimento do capital social, ao passo que a linhagem ibérica lograria centralização autoritária e clientelismo. Isto explicaria outras divergências, como a desigualdade entre o desenvolvimento dos Estados Unidos, por exemplo, e de países da América Latina. O argumento pode ser relacionado a Weber (1987), que associa o protestantismo à estruturação de relações horizontais, e o catolicismo à verticalização que origina hierarquias rígidas, marcadas pela desconfiança em suas relações sociais. Desta forma, a inclinação culturalista chega a ver obstáculos às políticas públicas em países em desenvolvimento, nos quais não haveria condições propícias ao autogoverno. Essas nações estariam condenadas ao atraso econômico, já que nelas não se verificaria a existência de experiências de associativismo horizontal.
Distinguem-se, segundo Abu-El-Haj (1999), duas abordagens interpretativas do capital social: o culturalismo e o neo-institucionalismo. Para o primeiro, são as particularidades culturais os fatores determinantes no estabelecimento de redes cívicas de participação; para o segundo, é a natureza da intervenção institucional que pode dispersar ou aglutinar as forças sociais – ou seja, a ação estatal deve ser considerada elemento catalisador da ação coletiva.
No segundo caso, indica o autor, ‘a função do Estado passaria de ação reguladora da interação social para um ativismo político mobilizador do capital social’ (1999: 72).
De maneira geral, o êxito de experiências retomadas pelo autor está distante dos extremos do estatismo e do neoliberalismo, figurando como resultado de uma ‘coordenação de esforços entre as instituições e as iniciativas coletivas da sociedade’ (1999: 75). Trata-se de uma construção política de capital social, cuja viabilidade depende da natureza das instituições públicas, da missão atribuída pelos atores políticos à mobilização coletiva e da qualidade das lideranças sociais.
O autor reconhece uma limitação à abordagem neo-institucional, que ‘omite um fator fundamental subjacente ao ativismo institucional: a natureza das elites políticas e seu projeto de poder’ (1999: 76). Ele sugere que o debate sobre capital social deve incorporar dois aspectos: devem ser consideradas as condições culturais das comunidades como fatores que afetam o desenvolvimento do engajamento cívico, mas também se deve atentar para a força de instituições aptas a estimular a mobilização coletiva. Redes de cooperação e confiança podem surgir mais facilmente em condições de associativismo horizontal do que sob hierarquias impostas; ao mesmo tempo, a mobilização do capital social deve ocorrer com mais dificuldade na ausência de um quadro institucional receptivo.
Sob outra ótica, o neo-institucionalismo pode ser caracterizado em três versões (Hall e Taylor, 2003): histórico, da escolha racional e sociológico.
Na perspectiva do neo-institucionalismo histórico, as instituições são tidas como ‘procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política’ (2003: 196). O conceito abrange, desta forma, quaisquer ‘regras de uma ordem constitucional ou dos procedimentos habituais de funcionamento de uma organização’.
Segundo esta conceituação, os indivíduos obtêm satisfação do modo com o qual as instituições organizam-lhe a vida em sociedade; eles servem-se de modelos já conhecidos para mover-se no tecido social, e suas expectativas são dadas por protocolos comuns facilmente reconhecíveis. ‘Desse ponto de vista, as instituições fornecem modelos morais e cognitivos que permitem a interpretação e a ação’, sintetizam Hall e Taylor (2003: 198).
A continuidade dos mecanismos instituídos se dá, neste contexto, justamente pela naturalidade com a qual eles determinam a realidade social, escamoteando possibilidades distintas de forma automática, em um processo que vai resultar em uma espécie de tradição política. ‘Em suma, as instituições resistem a serem postas radicalmente em causa porque elas estruturam as próprias decisões concernentes a uma eventual reforma que o indivíduo possa adotar’ (2003: 199). A imagem de mundo daí composta determina as próprias expectativas em relação ao sistema, de tal maneira que a inércia inibirá o aparecimento ou a mera discussão de desenhos alternativos. Assim, ‘as estratégias induzidas por um contexto institucional dado podem fossilizar-se ao longo do tempo e tornar-se visões de mundo, que são propagadas por organizações oficiais e terminam por moldar a imagem de si e as preferências dos interessados’.
Já sob o enfoque do institucionalismo da escolha racional, uma instituição se mantém ao longo do tempo porque assenta-se sobre um acordo voluntário que permite, aos indivíduos nela interessados, obter o máximo de benefícios para todos eles, coletivamente. Neste cenário, as instituições são tidas como formas de arranjo que permitem a obtenção de soluções ótimas – consideradas do ponto de vista da coletividade – em detrimento de arranjos excludentes que levariam a soluções sub-ótimas, ou boas apenas para parcelas da sociedade. ‘Se a instituição está submetida a algum processo de seleção competitiva, ela desde logo deve sua sobrevivência ao fato de oferecer mais benefícios aos atores interessados do que as formas institucionais concorrentes’ (2003: 206).
Por fim, o institucionalismo sociológico considera os protocolos institucionais não como formas de maximização instrumental da relação entre meios e fins ou da busca por eficácia de uma organização, mas sim como resultado de práticas culturais. Nesta perspectiva, o conceito de instituição é definido de forma flexível, ‘incluindo não só as regras, procedimentos ou normas formais, mas também os sistemas de símbolos, os esquemas cognitivos e os modelos morais que fornecem ‘padrões de significação’ que guiam a ação humana’ (2003: 209).
Nesta concepção, segundo Hall e Taylor (2003: 209), a cultura passa a ser entendida como ‘uma rede de hábitos, de símbolos e de cenários que fornecem modelos de comportamento’. Torna-se importante, de acordo com os autores (2003: 210), verificar o modo ‘como as instituições influenciam o comportamento ao fornecer esquemas, categorias e modelos cognitivos que são indispensáveis à ação, mesmo porque, sem eles, seria impossível interpretar o mundo e o comportamento dos outros atores’. E, vale destacar, o corpo institucional não apenas orienta o que fazer em determinadas situações, mas justamente o que é possível fazer, ou seja, o alcance das escolhas aceitas em um determinado contexto social.
Neste contexto, afirmam-se determinados comportamentos ligados ao associativismo como fatores favoráveis à consolidação democrática. ‘O engajamento cívico somente seria possível com o florescimento de associações autônomas que agrupassem os cidadãos, facilitando o compartilhamento de uma relativa igualdade de condições e de uma missão política comum’, aponta Abu-El-Haj (1999: 76). ‘A verticalização da política moderna nos partidos oligárquicos e nos ritos institucionais formais aniquilam o ativismo político. Crescentemente, a política perde seu sentido público e o cidadão comum se isola na sua vida privada’ (1999: 76).
Uma vez que se assume o papel central dos meios massivos de comunicação no estímulo ou desestímulo à participação política da sociedade civil, cabe apontar nexos possíveis entre a noção de capital social e a vigilância que poderia ser exercida sobre a atuação da mídia por instituições criadas por relações de associativismo horizontal.
O papel da mídia no contexto
À medida que os meios de comunicação massiva assumem papel privilegiado na construção e na veiculação de representações de natureza ideológica e cultural, a exigência da construção de uma cultura democrática vigorosa encontra problemas. Os veículos são empresas e, assim, possuem interesses específicos, que nem sempre serão compatíveis com o imperativo do amadurecimento progressivo de um sistema democrático.
E, com a crescente atenção dedicada à importância dos meios de comunicação massiva na constituição de um cenário no qual estão representados os temas relacionados de forma geral às políticas públicas, a própria mídia surge neste contexto como objeto que mereceria instâncias de participação aptas a exercer pressão para que os veículos cumprissem o papel que deles se espera nas democracias liberais contemporâneas, qual seja, o de dar vazão à pluralidade necessária à constituição de sujeitos autônomos, estritamente necessários em um sistema político que elege a participação cívica como vetor do desenvolvimento.
No entanto, a problemática da regulação da função social da mídia não vem à tona no Brasil, como se o público devesse meramente se contentar com o que recebe dos canais de TV abertos – de recepção supostamente gratuita1 – e como se a única forma de protestar contra a tendenciosidade de jornais e revistas fosse recusar o último exemplar nas bancas ou negar a eles a renovação de assinatura.
É neste contexto que deve ser afirmado o imperativo de tornar os meios de comunicação mais responsivos ao que deles se exige para o fortalecimento das democracias contemporâneas. Torna-se importante a constituição de instituições capazes de exercer pressão de forma organizada sobre a mídia, que deve dar forma e voz aos diferentes posicionamentos coexistentes em dada sociedade. Trata-se, neste caso, do legítimo direito à informação, muitas vezes mal atendido pela mídia comercial, que tende a noticiar o quê e da forma que melhor corresponda às suas perspectivas de lucro imediato.
Como se sabe, o fato de que os meios de comunicação de massa dificilmente serão capazes de atender ao interesse público se abandonados à sorte do mercado é plenamente reconhecido pelos países ricos da Europa Ocidental, que criaram instituições específicas para zelar pela qualidade das informações disponíveis ao público em geral, especialmente nos meios eletrônicos, nos quais o acesso se tornava limitado em função do estreito espectro eletromagnético de transmissão.
Segundo o Ofcom (Office of Communications), atual instância reguladora do sistema de radiodifusão britânico, por exemplo, a televisão em um sistema de mercado falha em quatro aspectos: a) não é capaz de oferecer informação precisa e plural o suficiente para a formação de cidadãos no nível de esclarecimento exigido pelas democracias liberais contemporâneas; b) não é capaz de cultivar uma identidade cultural a partir da expressão das diferentes comunidades regionais, o que abre caminho para a dominação de valores culturais de outros países; c) não consegue estimular, apesar da enorme potencialidade do meio televisivo, o interesse sobre o domínio de conhecimentos de história, ciência e meio ambiente, imprescindíveis ao crescimento intelectual; d) é incapaz de disseminar valores comuns sobre como a sociedade funciona, quais regras devem ser seguidas e quais relacionamentos devem ser construídos (Office of Communications, 2004: 6). Além disso, um mercado de telecomunicações oferece um dos maiores riscos a uma sociedade democrática, caso haja apenas uma ‘limitada gama de perspectivas disponíveis nas notícias e programas sobre assuntos da atualidade, modeladas pelas agendas das principais corporações no controle dos empreendimentos de radiodifusão’.
Isto é, se a vigilância sobre os meios de comunicação de massa pode, de um lado, tornar a própria mídia mais sensível à sua função social e política, de outro serve para que seja fortalecida a própria cultura de participação democrática. Kliksberg (1999: 31) aponta a importância da informação como estímulo à participação:
Aspira-se a substituir a ‘democracia passiva’ por uma ‘democracia inteligente’, em que o cidadão seja amplamente informado, tenha múltiplos canais para fazer chegar continuamente seus pontos de vista – não só a eleição das autoridades máximas a cada tantos anos – e exerça uma influência real constante sobre a gestão dos assuntos públicos.
Segundo o autor, o desenvolvimento de processos de fortalecimento da sociedade civil é uma tendência que exige a mobilização social, para a qual, inclusive, a mídia deve ser chamada (1999: 33):
Um ponto central a encarar (…) é a geração de consciência pública a respeito das vantagens da participação. É necessário procurar que o tema transcenda a discussão dos especialistas e se converta em uma questão da agenda pública, das suas implicações de toda ordem. Requer-se um trabalho intensivo com os meios de comunicação de massa sobre o assunto e, desse modo, alimentar a discussão com informação detalhada sobre todos os aspectos: potencial, dificuldades esperáveis, experiências internacionais, ensinamentos das experiências realizadas e em marcha. Dada a genuinidade da proposta da participação, uma opinião pública informada a respeito pode ser um ativo fator em seu favor.
Neste contexto, a consciência sobre a importância da participação deveria envolver os meios de comunicação na difusão desse valor, que hoje pode ser erigido no Brasil através dos conselhos municipais em áreas como educação, saúde, desenvolvimento urbano, defesa dos direitos de crianças, adolescentes, idosos e portadores de deficiência2.
E, o que é ainda mais desejável, a atenção da mídia sobre a relevância da participação deveria envolver os meios de comunicação a tal ponto que sua própria atuação fosse monitorada por estruturas de participação pública, concretizadas em formatos específicos para cada mídia, seja ela eletrônica (rádio, TV e internet) ou impressa, capazes de exigir a responsabilização necessária ao atendimento integral do direito à informação, algo inclusive previsto, no Brasil, pelo artigo 5 da Constituição Federal. No entanto, as instituições brasileiras de regulação de mídia são frágeis. Também nessa área, reina uma vaga noção do que seja interesse público e do que é necessário para preservá-lo.
A regulação brasileira da mídia
São conhecidos os artigos 221 e 224 da Constituição Federal, capítulo V. Segundo o primeiro, a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos princípios de ‘preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas’ (inciso I), ‘promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação’ (II), ‘regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei’ (III) e ‘respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’ (IV). Já o segundo determina que o ‘Congresso Nacional instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei’.
Além destes dois dispositivos, deve-se destacar o artigo 223, que atribui ao Poder Executivo a outorga e a renovação de concessões para a radiodifusão, afirmando que a ‘não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal’, que o ‘cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, depende de decisão judicial’ e ‘o prazo da concessão ou permissão será de dez anos para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão’.
O Conselho de Comunicação Social (CCS) foi instituído pela lei 8.389 de 1991, mas passou a funcionar somente após a aprovação de seu regimento interno pela Mesa do Senado Federal e a conseqüente eleição de seus primeiros integrantes, em 5 de junho de 2002. Segundo o artigo 2 da lei, o CCS ‘terá como atribuição a realização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional a respeito do Título VIII, Capítulo V, da Constituição Federal’. O órgão possui 13 integrantes, com representantes das empresas de rádio, televisão, imprensa, um engenheiro da área de comunicação, representantes das categorias profissionais dos jornalistas, radialistas, artistas de cinema e vídeo, e cinco representantes da sociedade civil.
Assim, entre as funções do CCS, estão a defesa do ‘respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’ nos meios de comunicação. No entanto, como ‘valores éticos e sociais’ são algo difícil de definir – especialmente sua apropriação pela programação de televisão – e como o conselho permanece como órgão auxiliar do Congresso Nacional, vale dizer, sujeito aos problemas de representatividade comuns ao Poder Legislativo no Brasil, a tarefa de lutar por qualidade na televisão aberta continua algo difuso e sem responsáveis diretos.
E, considerando-se que a atual Lei de Imprensa é de 1967 e tem sido evitada pelos eventuais ofendidos, que não querem ser acusados de proteger-se com o recurso a um instrumento legal gerado pela última ditadura militar, atualmente o meio legal de proteção que resta contra a mídia no país é dado pelo Código Civil (lei 10.406 / 2002). Segundo o artigo 953, a ‘indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido’. O parágrafo único alerta para os riscos envolvidos nas exigências de indenização – ‘Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso’.
Trata-se, pode dizer, de algo insuficiente. O quadro é complementado por campanhas como ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’, lançada em 2002 pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e organizações da sociedade civil. A iniciativa promove o ‘acompanhamento permanente da programação da televisão para indicar os programas que – de forma sistemática – desrespeitam convenções internacionais assinadas pelo Brasil, princípios constitucionais e legislação em vigor que protegem os direitos humanos e a cidadania’ (2005).
O ‘ranking da baixaria’ é listado no site da campanha, e os excessos indicados por denúncias são encaminhados ao Ministério Público. A campanha também produz pareceres que apontam problemas de diversos programas de TV. É uma iniciativa de grande importância, mas de resultados que ainda esperam ser ampliados.
Assim, parece frágil o contexto institucional que regula a atuação da mídia brasileira. Cabe, desta forma, apontar qualidades ideais de sistema de manutenção da função social dos meios de comunicação. Uma arquitetura desejável seria justamente aquela dada a partir dos níveis municipais de abrangência política, que se relacionariam a estruturas mais amplas, estaduais, convergindo, talvez, para um CCS modificado.
Os sistemas de responsabilização da mídia
A função social dos meios de comunicação de massa deve ser objeto dos chamados conselhos de imprensa, instituição evocada por Bertrand (2002). ‘Os conselhos de imprensa apareceram em países que compartilhavam os mesmos valores e as mesmas preocupações com democracia – ou em países que estiveram sob a influência colonial ou cultural de democracias ocidentais’, descreve (2002: 142).
Foram ou são mais comuns nos países desenvolvidos, e raros na América Latina. Os modelos vêm principalmente do Reino Unido, e renderam, segundo o autor, 40 conselhos após a Segunda Guerra Mundial. São, em geral, instituições não vinculadas ao Estado, às categorias profissionais do jornalismo ou às empresas de comunicação, que centram seu foco na defesa da função social de mídia e sua independência. ‘Um conselho de imprensa é uma maneira de utilizar a opinião pública, mais forte do que antes, com a finalidade de fazer pressão sobre a mídia para que ela sirva melhor à população’ (2002: 143).
O problema a ser enfrentado pelos conselhos de imprensa é específico, já que a imprensa nas democracias é, destaca o autor, indústria, serviço público e poder político ao mesmo tempo. ‘Desta tríplice natureza decorre a maioria de seus problemas, pois ela acarreta uma associação conflituosa entre quatro grupos: os cidadãos, os jornalistas, os proprietários dos materiais e os dirigentes da nação, eleitos ou nomeados’.
Além disso, na perspectiva de Bertrand há duas ameaças principais à liberdade de expressão. A primeira é o próprio Estado; isto significa que um conselho de imprensa não poderá contar com representantes estatais. A segunda é o poder econômico dos próprios meios de comunicação. No entanto, Bertrand aponta, como uma das formas de sobrevivência dos conselhos (que exigem infra-estrutura e publicidade para seu funcionamento), o apoio das empresas de mídia. Neste caso, seus representantes devem ser tolerados nos conselhos, e o poder econômico deve ser cerceado pela vigilância dos outros integrantes, provenientes de grupos de usuários, jornalistas, proprietários, outros profissionais da comunicação, legisladores e juízes.
Entre as diversas combinações possíveis para um conselho, sete são registradas historicamente, aponta o autor (2002: 148):
(…) somente proprietários, como no Peru; proprietários e jornalistas, como em Luxemburgo; proprietários e usuários, como na Grã-Bretanha desde 1990; somente jornalistas, como na Bélgica; jornalistas e usuários, como nos Países Baixos; proprietários, profissionais e usuários, como na Nova Zelândia, o modelo clássico; proprietários, profissionais, usuários e legisladores, como na Índia.
Cada combinação tem suas vantagens e desvantagens. Os jornalistas tendem a se ver como as melhores pessoas para definir o que é notícia e como o será, embora apenas os donos dos veículos de comunicação tenham o poder efetivo para fazê-lo. Já os políticos tendem a gerar desinformação, enquanto cabe ao público a defesa do direito à informação. Para superar o impasse, Bertrand (2002: 148) propõe uma hierarquia de conselhos, começando do tipo mais desejável para o menos desejável:
A.1. os conselhos mistos tripartites, compreendendo representantes dos proprietários, dos jornalistas e dos usuários, como na Austrália; A.2. os conselhos mistos bipartites, compreendendo donos e usuários, como no Reino Unido desde 1990 – ou jornalistas e usuários, como nos Países Baixos; B. os conselhos profissionais bipartites, comportando donos e jornalistas, como na Alemanha. E depois, paralelamente ao conceito de conselho de imprensa: C.1. os conselhos reservados ao patronato, como no Japão, que são mais escritórios de controle de qualidade; C.2. os conselhos reservados aos jornalistas, como na Suíça, que são mais comissões de disciplina.
Convém lembrar que, no Brasil, a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, lançada pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e acolhida pelo Executivo federal em 2004 (que o apresentou ao Congresso Nacional em forma de Projeto de Lei), foi arquivada pela Câmara dos Deputados no mesmo ano. Era algo como o tipo C.2, ou o menos desejável, segundo Bertrand, se o objetivo é ampliar a vigilância sobre a mídia.
Nos conselhos, a luta pela liberdade de imprensa, pela pluralidade e contra a manipulação da informação associa-se à defesa dos códigos deontológicos da profissão jornalística. Cabe, para aclarar este contexto, percorrer o caminho de Bertrand, que situa a deontologia e os conselhos de imprensa no quadro dos chamados sistemas de responsabilização da mídia (ou MAS, na sigla em inglês, de Media Accountability Systems).
Configurada, em primeiro lugar, segundo as tradições de cada país, a deontologia do jornalismo também pode assumir feições específicas em função de cada meio de comunicação. No entanto, a maioria dos traços são comuns mundialmente. O código de ética da Fenaj (Bucci, 2000: 215-217), por exemplo, determina que a ‘informação divulgada pelos meios de comunicação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social coletivo’ (artigo 3), e que a ‘obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação e a aplicação de censura ou autocensura são um delito contra a sociedade’ (artigo 5).
Além disso, segundo o código, o jornalista não pode ‘submeter-se a diretrizes contrárias à divulgação correta da informação’ ou ‘frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate’ (artigo 10). O profissional deve evitar a divulgação de fatos ‘com interesse de favorecimento pessoal ou vantagens econômicas’ e ‘de caráter mórbido e contrário aos valores humanos’ (artigo 13).
O arsenal dos MAS, que Bertrand (2002: 35) qualifica como ‘arsenal da democracia’, divide-se em três grupos: ‘documentos impressos ou difundidos por radioteledifusão; pessoas, indivíduos ou grupos; e processos, longos ou curtos’.
No topo da lista do primeiro grupo, estão justamente os códigos deontológicos. Mas a categoria também abrange orientações mais ou menos flexíveis, como manuais de redação, colunas de cartas dos leitores, artigos, programas de televisão, rádio e sites de jornalistas incumbidos regularmente de avaliar criticamente a produção noticiosa, etc.
No segundo grupo, de indivíduos ou grupos, entram as funções de ombudsman exercidas por pessoas ou setores das empresas de mídia, os conselhos de imprensa e as agências de autofiscalização do setor, além de sociedades profissionais, entidades empresariais e agências oficiais.
Vale destacar que, segundo Bertrand, os canais públicos de radiodifusão também estão neste grupo, já que a empresa de difusão não-comercial, ‘cujo único propósito é servir ao público, representa, por sua mera existência, uma crítica implícita à mídia comercial’ (2002: 40).
Por fim, o terceiro grupo (processos) é representado por amplos sistemas como a própria educação superior na área de jornalismo, pesquisas não-comerciais de recepção, eventos científicos do setor e prêmios de mídia. E, o que é especialmente importante, entra neste grupo a alfabetização para a mídia (media literacy, na expressão em inglês), em programas informais da comunidade e formais do sistema de ensino oficial.
Livingstone e Thumin (2003: 6) caracterizam media literacy como a habilidade para receber criticamente conteúdos provenientes dos diversos meios de comunicação de massa, incluindo a internet. As autoras enunciam cinco qualidades ideais para o desempenho de um indivíduo completamente alfabetizado para mídia: 1. separar fato de ficção, identificando diferentes degraus de realismo; 2. entender os mecanismos de produção e distribuição que resultam nos sistemas através dos quais as emissoras comerciais sobrevivem com a venda de espaços de publicidade; 3. distinguir uma reportagem da mera defesa de pontos de vista, comparar padrões de apresentação de evidências e reconhecer mensagens comerciais embutidas na programação; 4. reconhecer as exigências econômicas e culturais e os imperativos da lógica da exposição jornalística na produção de notícias; 5. explicar e justificar as escolhas de assistir a programas e veículos de comunicação, apresentando opções ponderadas e distância crítica.
Indivíduos alfabetizados para a mídia serão cidadãos aptos a exercer pressão pela responsabilização da mídia em relação à sua função social. No entanto, eles são difíceis de encontrar no atual contexto brasileiro.
À medida que o aprofundamento da democracia iniciado, no país, com a multiplicação dos conselhos municipais a partir de 1988 siga seu curso, espera-se que a exigência democrática de zelar pela qualidade da informação nos meios de comunicação massiva torne-se evidente em cada vez mais esferas da sociedade. E, com isso, talvez os conselhos de imprensa – e outros media accountability systems – deixem de ser algo tão improvável de se encontrar no Brasil.
Inclusive, trata-se, neste caso, de dar relevo à discussão sobre culturalismo e neo-institucionalismo, mas agora em relação às instituições capazes de exercer pressão para que os meios de comunicação massiva, eletrônicos ou impressos, tornem-se mais responsivos à exigência democrática de prover o pluralismo e a liberdade de informação.
Críticos do culturalismo alegam que essa corrente teórica confere excessivo peso à cultura, de forma que determinadas sociedades, marcadas por estruturas hierárquicas de clientelismo e pela desvalorização dos direitos civis da cidadania, estariam fadadas ao insucesso em suas experiências de ampliação da participação democrática. De fato, Bertrand, analisado acima, afirma que, empiricamente, os conselhos de imprensa são raros na América Latina.
O que ainda piora as chances dos MAS em um país como o Brasil é a história da livre exploração comercial no setor de mídia eletrônica, que tem resultado em padrões de telejornalismo marcados por fragmentação, superficialidade e busca do entretenimento evasivo, como se essas fossem características naturais e inevitáveis da informação no meio televisivo.
Cabe, assim, pensar maneiras de incentivar a adesão às políticas que devem ser implementadas para gerar a responsabilização dos meios de comunicação – ligadas especialmente à criação de conselhos de mídia, sejam eles municipais, estaduais ou federais, mantidos com o suporte de empresas privadas do setor ou do poder público e compostos por grupos de usuários, jornalistas, proprietários, outros profissionais da comunicação, legisladores e representantes do Ministério Público, ligados por relações de associativismo horizontal.
É preciso fazer florescer o capital social na criação de instituições de vigilância sobre a atuação da mídia, e para o fortalecimento do exercício dos direitos civis em coletividades que elejam a participação como meio de fazer com que os meios de comunicação massiva sejam impelidos a cumprir as funções necessárias à preservação da vitalidade de uma democracia.
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Notas
1. As estimativas variam muito, dependendo da fonte do mercado publicitário. Mas é certo que uma porcentagem significativa do preço final das mercadorias relaciona-se ao custo nelas embutido correspondente ao investimento em publicidade que precisa ser feito para atingir o consumidor através dos anúncios em TVs abertas. As empresas pagam para anunciar e repassam essa despesa aos telespectadores-consumidores.
2. No Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, os traços assumidos pelos canais de participação política ganharam nova feição. O ressurgimento das instituições de participação democrática no país após o fim do regime militar instalado em 1964 levou, sublinha Dagnino (2002: 10), ao ‘reconhecimento da importância dos mecanismos autoritários que, enraizados historicamente, ordenam a sociedade brasileira no seu conjunto, contribuindo assim para fortalecer uma visão que localiza a luta pela democracia no próprio terreno da sociedade civil’. O processo desencadeou, segundo a autora, a construção de uma nova cidadania, baseada principalmente na afirmação do cidadão como ‘sujeito portador de direitos, inclusive aquele de participar efetivamente na gestão da sociedade’. Como se sabe, os conselhos municipais são peça essencial nesse contexto. Tatagiba (2002: 49) destaca que, de um lado, os conselhos temáticos de áreas como meio ambiente, transportes e desenvolvimento urbano relacionam-se a representativos perfis políticos ou sociais de um município, embora sem vínculo necessário à legislação nacional; de outro, os conselhos ditos setoriais adquirem funções definidas legalmente nas áreas de saúde, assistência social, educação e direitos de crianças e adolescentes.
Referências bibliográficas
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Professor da Universidade do Sagrado Coração (Bauru, SP)