O primeiro aforismo hipocrático sentencia: a arte é longa, a experiência difícil, a ocasião fugidia. A medicina é mais que uma disciplina, ela é um extenso campo com fronteiras muito plásticas. O enorme interesse do público por notícias desta área pode estar radicado em aspectos que estão para além da mera curiosidade científica ou da predisposição hipocondríaca das sociedades modernas. A medicina aponta para uma percepção clara e direta: de algum modo, ela tem ou terá a ver com nossas vidas e com as vidas das pessoas que conhecemos. Pode-se evitar muitas profissões e contornar muitas atividades. Dificilmente deixaremos de deparar – em algum ponto de nossas vidas – com a necessidade de um encontro médico.
O grande foco de debate da mídia científica e, portanto, sua pauta preferencial, têm sido as pesquisas de novos fármacos, descobertas de síndromes e patologias, além das inovações da tecno-ciência aplicada aos ambientes hospitalares. Entretanto, pelo menos um aspecto parece ter ficado negligenciado no ensino praticado nas Faculdades de Medicina: encontrar meios mais apropriados de facilitar o contato entre dois sujeitos que são médico e paciente. Portanto, não é nada fortuito que o Ministério da Saúde tenha tido uma específica e continua preocupação com este tema e que se venha detectando a instalação de cursos de ‘humanização da medicina’ nos ambientes universitários.
Correntes emergentes
A medicina outorgou-se o modesto titulo de ‘a mais nobre dentre todas as artes’. Por uma simples justificativa, enunciada abertamente pelo pai da medicina: o cuidado dos semelhantes. A anamnese é um ato que se repete desde que Hipócrates inventou a história clínica como técnica. Em cada encontro, este cuidado sempre foi o patrimônio líquido da relação. Relação que foi a pauta de quase todos os humanistas da história da medicina. O consenso entre eles era de que o encontro terapêutico não é somente um instrumento acessório; ele pode ser essencial, o coração do método e, por vezes, a principal ferramenta terapêutica disponível. Desta perspectiva, a consulta médica seria uma espécie de procedimento insuperável em todas as atividades clínicas. E não só para que se desvende o nome da moléstia, nem dar para às pessoas orientação conveniente, mas principalmente para estabelecer o vínculo terapêutico. Alguns dizem que se trata de uma ex-função do médico. A divisão de trabalho teria sido simplesmente resolvida com a adoção das técnicas psicoterápicas. Assim, cada um operaria sobre sua área do conhecimento e o hífen que separa psique de soma teria o devido encaminhamento, já que as palavras e as coisas estariam legitimamente divorciadas.
Mas a hermenêutica filosófica nos diz que a ciência não pode ser tomada somente como os procedimentos típicos das ciências naturais. A ciência é um procedimento analítico que interpreta culturas, que atualiza a realidade prática dos homens. A medicina representa bem esta fusão entre ciências naturais e humanas. É assim que o cuidado médico pode vir a assumir uma dimensão ainda mais ampla. Decerto ele atravessou inúmeras crises na história. Esteve seriamente ameaçado pelas promessas de uma razão tecnológica e pela chamada ‘medicina baseada em evidências’, porém reergueu-se. Até chegar a ser considerado um aspecto-chave em pelos menos duas outras moderníssimas correntes emergentes nas ciências da saúde. Trata-se da ‘medicina baseada em narrativas’ e da ‘medicina centrada no paciente’.
Desafio pedagógico
Parte expressiva da comunidade médica, especialmente sanitaristas e epidemiólogos, conhecem muito bem a realidade do solo. Estão cientes de que não há uma única solução para os graves problemas crônicos de saúde da população brasileira. Dentro de parâmetros ético-científicos e desde que contenham alguma plausibilidade biológica, as soluções podem se articular em muitas medidas que implicam, inclusive, aceitar a diversidade e o controverso. Devem incorporar, portanto, a diversidade de procedimentos terapêuticos existentes, pois a manutenção desta pluralidade parece ser um forte desejo da sociedade.
Qualquer tipo de exclusão apriorística dentre as várias possibilidades terapêuticas só faz endossar o obscurantismo, ao invés de, supostamente, combatê-lo. Este é o essencial do pensamento dialógico. Implica no compromisso – através da conversação – de acolhimento das várias racionalidades. Claro que, para não fugir da tradição de repetição erros antigos, existem os sempre refratários à tolerância. E isto acontece nas duas frentes. Há os que insistem em ‘racionalizações dementes’, como denunciou Edgar Morin, outros em generalizações sem suporte científico algum. Vez por outra, confrontam-se publicamente.
E é neste contexto que o cuidado se impõe como agenda nas ciências da saúde. Não porque os pesquisadores o escolheram como prioridade, nem porque uma decisão governamental qualquer assim determinou. Mas porque é o que vem emergindo de questionários qualitativos e entrevistas com as pessoas que buscam assistência médica. É o que os sujeitos das várias sociedades – e este parece ser um fenômeno mundial – desejam. Não só precisam narrar suas histórias clínicas e aportar suas vicissitudes biográficas, como esperam dos médicos um elemento insubstituível que a simples prescrição de fármacos não atende. Esperam uma espécie de suporte subjetivo com forte ênfase na escuta e na solidariedade. Concordam os educadores que se trata de um imenso desafio pedagógico, já que parece ser dificílimo ensinar tema tão delicado, especialmente dentro da atual disposição dos currículos universitários nas ciências da vida.
Diálogo científico
O registro da expansão mundial das chamadas medicinas integrativas – com forte apoio da OMS e recomendação no relatório da Academia Americana de Ciências de 2005 – nada mais é do que o produto indireto deste desejo de milhões. Erra, grosseiramente, quem aposta que esta tendência mundial é um movimento rival da medicina comum. Ou que estejamos testemunhando apenas um processo de competição comercial. Não que a filantropia seja exatamente a preocupação central das grandes corporações farmacêuticas, mas não é mais crível que fabulosas teorias conspiratórias ainda sejam o epicentro dos debates.
O que realmente interessa é garantir o nascimento de uma novíssima medicina, que encontre na pluralidade das estratégias meios reais e cientificamente mediados de cuidar, promover a saúde e curar as pessoas enfermas. A multiplicidade de enfoques aumentaria muito esta perspectiva e foi exatamente este o espírito do diagnóstico que a Organização Mundial de Saúde emitiu em seu relatório de 2004.
É muito provável que a resistência à aceitação das medicinas integrativas – notadamente da homeopatia e da acupuntura – como áreas específicas do conhecimento médico ainda esteja ligada à memória de um embate ideológico que, embora já superado, ainda é mantido nos bolsões mais dogmáticos. A sociedade teria muito a ganhar se a insistência no enfrentamento migrasse para o genuíno diálogo científico.
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Médico, mestre em Medicina Preventiva e doutor em Ciências pela FMUSP. Integra o grupo de Racionalidades Médicas IMS-UERJ e é pesquisador da USP