‘Estamos dando o caminho para que as empresas, com seus técnicos e com apoio valiosíssimo da Anatel e do Ministério das Comunicações, possam concluir por um sistema que vai poder atender a necessidade brasileira.’ Com este discurso, Hélio Costa despediu-se do Ministério das Comunicações em 30 de março, anunciando a publicação de uma portaria que instituiu o Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBDR).
A ênfase nas empresas de comunicação como únicos atores a serem considerados no processo, presente na fala do ex-ministro, é o principal motivo que levou diversas entidades da sociedade a divulgarem uma Carta Aberta pedindo participação de toda a sociedade e maior controle social sobre o processo.
Além disso, a instituição do SBDR por meio de uma Portaria Ministerial, e não de um Decreto (como foi com a TV digital), demonstra como o tema não está recebendo a devida importância dentro do governo. Uma mudança desta magnitude, em um veículo da importância do rádio, que está presente em 88,9% dos lares brasileiros, não pode ficar restrita apenas ao Ministério das Comunicações. O tema envolve, necessariamente, políticas de desenvolvimento tecnológico, educacionais e, claro, culturais. Entre outras.
A fala do ex-ministro em sua despedida apenas ratifica a preocupação dos movimentos sociais com um processo açodado e sem participação social de implantação do rádio digital.
Se não houver uma ampla participação da sociedade, serão as emissoras comerciais que decidirão o melhor padrão ou sistema. O melhor para elas. Essa, porém, é uma decisão que cabe à toda sociedade e não apenas aos empresários de comunicação.
Ano eleitoral prejudica debates com a sociedade
É sabido que os poderes Executivo e Legislativo federal praticamente param em ano de eleições presidenciais. Apenas assuntos de grande interesse eleitoral são discutidos. Menos ainda são os votados. Isso significa que será muito difícil promover debates e audiências públicas este ano, o que torna qualquer decisão em 2010 autoritária e distante dos interesses da sociedade.
Não devemos incorrer no mesmo erro que aconteceu com a TV Digital. A existência de uma ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), que questiona o decreto da TV Digital (5.820 de 2006), é uma prova de que essas questões precisam der discutidas com profundidade, pois trata-se da criação de um novo serviço de comunicação eletrônica de massas, não uma mera atualização tecnológica.
O que diz a portaria
Muito pouco. A portaria tem o mérito de criar oficialmente o Sistema Brasileiro de Rádio Digital, reivindicação de alguns movimentos sociais. Mas simplesmente não indica quais serão os meios para implementar a política.
A primeira parte da portaria é muito similar ao Decreto 4.901/03 que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), estabelecendo diretrizes que, apesar de positivas, são genéricas e pouco práticas. E fica por aí. Não define instâncias, cronograma, método, muito menos envolve outras áreas do governo.
O conjunto de entidades da sociedade civil já aponta nesta direção: que o debate sobre o padrão de rádio digital passe pelo Congresso Nacional, e que tenha como resultado uma nova lei.
Testes com apenas dois padrões estrangeiros
Na história das comunicações, não são raros momentos de padronização de determinados serviços com base em uma tecnologia específica. Foi assim com a internet (IP), com a TV digital (ISDB) e agora será com o rádio.
No Brasil, foram testadas apenas duas normas de rádio digital: o HD Radio (também conhecido como IBOC), padrão proprietário da empresa estadunidense iBiquity , e o DRM (Digital Radio Mondiale), de origem europeia, cujos testes estão sendo realizados em escala muito inferior ao IBOC e sequer foram concluídos.
Entretanto, além de existirem outros padrões, alguns com potencialidades técnicas interessantes, outros com experiência em diversos países, o debate se restringiu àqueles dois padrões e envolveu apenas emissoras e técnicos, não chegando de fato à população.
Decisão apressada: TV digital ainda não se tornou realidade
Uma decisão precoce pode acarretar em baixa penetração do serviço, reduzido interesse da população e ausência de políticas públicas no sentido de maximizar a inclusão digital e os serviços públicos. São os mesmos alertas feitos em 2005 e 2006, durante a escolha do padrão de televisão digital.
Quatro anos após o Brasil ter batido o martelo em relação ao padrão japonês de TV, o serviço não chegou às casas dos brasileiros. É a reprise do mesmo filme, só que agora com o rádio.
Listamos, abaixo, alguns motivos para o governo brasileiro não apressar a escolha do padrão de rádio digital, antes da realização de debates junto à sociedade e estimular a pesquisa nacional:
1.
Apenas dois padrões foram testados.Os testes do rádio digital obedeceram ao interesse das emissoras. A partir de 2005, estações realizam experimentos com o HD Radio, o preferido dos empresários da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). No mesmo ano, a extinta estatal Radiobrás promoveu experimentos com o DRM, tecnologia desenvolvida a partir de um consórcio de empresas públicas de comunicação da Europa. E ficou nisto.
Entretanto, existem outras normas internacionais que não foram testadas, como o DAB (presente na Inglaterra e Portugal, entre outros), o FMeXtra (EUA, Holanda e Bélgica), o DMB (Coreia e França) e o ISDB-TSB ou NISDB-T (adaptação do padrão japonês de TV digital para radiodifusão sonora).
2.
Mudança no Ministério não é fator determinante.Não se pode utilizar a saída de Hélio Costa do Ministério das Comunicações, que deixou a função para concorrer a um cargo eletivo em seu estado, como motivo para apressar a definição sobre o padrão de rádio. Se o mesmo ocorrer, será uma herança maldita para a sociedade, já que não há maturidade técnica e política para tal decisão.
Apressar uma decisão desta magnitude em um momento de transição é uma irresponsabilidade. A TV digital não se tornou realidade após quatro anos, e o mesmo poderá ocorrer com o rádio. Afinal, as pesquisas para a digitalização do rádio caminham lentamente em todo o mundo.
3.
Adoção será automática, sem aprimoramentos tecnológicos.Ambos os padrões favoritos são pacotes prontos e não há perspectiva concreta de melhoramentos em suas funcionalidades. O HD Radio tem dono: a empresa estadunidense iBiquity. Já o DRM foi desenvolvido por um grupo composto por empresas públicas de comunicação da Europa, como Radio França Internacional (RFI), Deutsche Welle e BBC World Service, mas tem patentes de empresas privadas como Sony e Fraunhofer.
Este último grupo aponta a possibilidade de mudanças a fim de atender a realidade brasileira, consideravelmente diferente da europeia. Contudo, ainda não foram sinalizadas quais seriam estas melhorias, como aconteceu com a TV Digital, em que o ISDB japonês sofreu uma evolução, passando a utilizar a codificação MPEG-4 e a interatividade Ginga, desenvolvida no Brasil, pelas universidades PUC-Rio e UFPB.
Existem avaliações, inclusive, apontando que as pesquisas desenvolvidas no Brasil, as quais resultaram no Ginga, seriam suficientes para que um padrão de rádio digital nacional partisse de um patamar bem avançado.
4.
Não há compatibilidade com a TV digital brasileira.Convergência é a palavra de ordem das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Um serviço, se isolado dos demais, tende ao insucesso. Para que os investimentos em uma plataforma digital de rádio não sejam em vão, é importante que ocorram estudos e adaptações que permitam a interoperabilidade do padrão de rádio digital com a TV Digital brasileira e outros serviços digitais.
5.
TV Digital ainda não decolou.Em 2006, o governo brasileiro bateu o martelo em torno do padrão japonês de TV digital. Na época, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, prometeu uma rápida transição e a venda de conversores a baixos preços (cerca de 100 dólares). Mas, o que se vê são poucos e caros receptores à venda e uma baixa adesão por parte das pequenas e médias emissoras. Além disso, há um desrespeito da regra de multiprogramação, a qual só é permitida às emissoras públicas. Já existem grupos de comunicação utilizando seus novos canais exclusivamente para vender produtos e horários a terceiros.
6.
Não se está estimulando a P&D nacionais.A criação de consórcios nacionais para a preparação de um Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) incentivou pesquisas universitárias na área e possibilitou uma melhor avaliação dos padrões estrangeiros.
A adoção do SBTVD genuinamente nacional seria o ideal, já que era o mais adequado à realidade brasileira, porém um padrão estrangeiro foi escolhido. Mas, como estas pesquisas resultaram em inovações tecnológicas, parte delas foi incorporada ao ISDB, aprimorando-o.
Com o rádio digital, uma nova pesquisa poderia ser feita, mobilizando o campo acadêmico, desenvolvendo tecnologia nacional e atendendo às necessidades da sociedade.
7.
Nenhum dos padrões de Rádio Digital apresenta experiência consolidada no mundo.Os padrões estrangeiros favoritos não apresentam experiência suficiente para determinar uma escolha confiável. Um histórico de sucessos e problemas é essencial para avaliar uma opção. O Brasil não deve servir como campo de testes de nenhuma tecnologia estrangeira.
8.
Adotar dois padrões distintos é irresponsabilidade.Foi levantada a possibilidade de o Brasil adotar dois padrões de rádio digital: um para ondas curtas e outro para a faixa de frequências onde atualmente estão as emissoras AM e FM.
Esta atitude geraria insegurança entre os usuários e entre a indústria, que enfrentaria dificuldades em definir prioridades de investimento.
9.
Rádios comunitárias não participaram do processo.Somente emissoras de grande porte, em sua maioria privadas, participaram dos testes do rádio digital. As estações comunitárias foram preteridas neste processo, o que pode acarretar na adoção de um padrão que não atenda a seus anseios.
Pagamento de royalties para empresas detentoras do padrão e alto custo dos equipamentos de transmissão são fatores que devem ser levados em conta na decisão do governo. Se isto não ocorrer, as rádios comunitárias serão as principais prejudicadas com a digitalização, e, por consequência, a população, na medida em que será impedida de transmitir e receber informações.
10.
Novas concessões para um novo serviço.O Rádio Digital deve ser encarado como um novo serviço de radiodifusão e não como uma atualização tecnológica. A digitalização permite um melhor aproveitamento do espectro eletromagnético. A multiplicação de canais de frequência é a oportunidade para novos atores participarem das comunicações de massa.
Para o cumprimento da complementaridade constitucional, estas novas concessões seriam divididas de acordo com o critério da Conferência de Comunicação entre estações públicas (40%), privadas (40%) e estatais (20%).
O Rádio digital não pode reforçar o atual latifúndio eletrônico. Ao contrário, deve servir para mudar essa realidade.
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Integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social