No primeiro semestre deste ano, dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) alteraram drasticamente as estruturas da comunicação do Brasil. Em abril, a partir de uma ação protocolada pelo deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), o Supremo decidiu pela revogação total da Lei de Imprensa, que estava em vigor desde 1967. A maioria dos ministros da Corte decidiu que a legislação era incompatível com princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 e que todos os seus dispositivos tinham que ser extintos. A Lei foi taxada de ‘entulho autoritário’. Dois meses depois, o STF derrubou a exigência do diploma específico em Jornalismo para o exercício da profissão. O Decreto Lei que impôs a obrigatoriedade foi instituído em 1969, em plena ditadura militar. O recurso – apresentado pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Sertesp) e Ministério Público Federal (MPF) – questionou a constitucionalidade da exigência do diploma.
O Observatório da Imprensa exibido terça-feira (28/07) pela TVBrasil, excepcionalmente gravado, entrevistou o ministro Marco Aurélio Mello, voto vencido nos dois julgamentos. Foi o único a ser a favor da manutenção integral da Lei de Imprensa. E a decidir pela manutenção da exigência do diploma. Alberto Dines recebeu o ministro na antiga sede do Supremo no Rio de Janeiro, atual Centro Cultural Justiça Federal.
Marco Aurélio Mello é ministro do STF desde 1990, instituição que presidiu entre 2001 e 2003. Em 2002, em uma das ocasiões em que ocupou interinamente a presidência da República, sancionou a lei que criou a TV Justiça. É professor da UnB e da Uniceub. ‘Esse é um momento importante porque nós temos que respeitar as decisões do Supremo, são irreversíveis, mas nós temos que nos conscientizar de que assim como está, não pode ficar. O Observatório da Imprensa tem uma posição histórica em defesa da profissão do jornalismo, da especificidade do jornalismo, e por isso escolhemos a edição de hoje para ouvir, antes de tudo, o professor Marco Aurélio de Mello’, explicou Dines.
O apresentador do programa perguntou ao ministro se há alguma relação no seu posicionamento nos dois casos. ‘Há. Acima de tudo, há o temor considerando o fato normativo. Não consigo conceber que após a vigência de uma lei durante 40 anos, sendo aplicada, sendo depurada pelo Judiciário quanto àquilo que se mostrava conflitante com a Constituição Federal, se conclua pelo descompasso’, criticou. O ministro contou que costuma reexaminar a posição assumida quando fica isolado nas votações do Supremo e disse que está sempre pronto a ‘dar a mão à palmatória’. Nessas duas votações, porém, está convencido de que tomou a decisão acertada. Grande parte da mídia foi favorável à extinção total da Lei de Imprensa, mas muitos veículos de comunicação e jornalistas já questionam o vazio legal que ocorreu após a derrubada da Lei. Dines comentou que no julgamento da extinção da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista a imprensa foi parte da ação, por isso, não podia manifestar-se e ‘servir à sociedade’.
Sobreposição de poderes
O fato de o STF assumir funções que deveriam ser decididas pelo Poder Legislativo foi levantado por Dines. ‘Está havendo uma judicialização excessiva do processo brasileiro?’, questionou. O ministro explicou que a atuação do Supremo é vinculada à lei de regência do conflito de interesses. A interpretação da Constituição Federal, que é a Lei que submete a todos, e das leis ordinárias consubstanciam um ato de vontade. ‘Um órgão não pode abandonar a Lei, sob pena de graçar a Babel, a bagunça, e criar um critério de plantão. Talvez agora, com a repercussão havida, nós tenhamos uma reflexão sobre as decisões do Supremo’, disse.
Na opinião do ministro, em termos culturais e de segurança jurídica, o Brasil não está melhor hoje do que sob a vigência das duas Leis. Houve um retrocesso para a sociedade. O fato de as duas legislações terem sido editadas durante o regime de exceção não significa que havia um ‘ranço’ autoritário. Dines ressaltou que a Lei do Divórcio data do mesmo período e é considerada pela sociedade como um avanço e o ministro destacou que outros parâmetros normativos em vigor nos dias atuais são herança do regime militar. Para Dines, o diploma de Jornalismo foi o grande foco das discussões. A profissão de jornalista, que existe desde o império romano, ficou esquecida no debate. ‘O Estado existe para proporcionar aos cidadãos segurança jurídica. Como ficam tanto quantos ingressaram em faculdades – são cerca de 430 faculdades nos país – e que agora têm um diploma cuja valia é diminuída? ‘, questionou o ministro.
‘Alguém que ingressa em uma faculdade de Comunicação não fica quatro anos dentro de uma sala de aula ouvindo simplesmente ‘abobrinhas’. Há uma formação. E a formação resulta em uma consequência, uma segurança maior ao atuar. E ao atuar com repercussão inafastável considerada a formação de opinião dos cidadãos em geral’, advertiu. Dines completou que o curso de Jornalismo resulta também na formação de uma consciência.
Questão mal colocada
Dines questionou a presença do Ministério Público na ação que resultou na não obrigatoriedade do diploma de Jornalismo. A questão está ‘mal colocada do ponto de vista técnico’, afirmou. Chama a atenção de Dines que o MP tenha atuado junto ao sindicato de empresas de rádio e televisão, que representa apenas um lado da questão. ‘O Ministério Público tem um papel importantíssimo para a sociedade, o papel de fiscal da Lei. Evidentemente, quando se parte para estabelecer o alcance de um dispositivo legal, se percebe as repercussões na organização da própria sociedade’, disse Marco Aurélio Mello. O ministro ressaltou que é preciso considerar também o interesse do ‘prestador dos serviços’ e questionou se o mercado de trabalho conseguirá regular a profissão.
‘Eu não posso conceber que durante 40 anos, dos quais 20 sob a regência da ‘carta cidadã’, que é a Carta de 1988, não se tenha percebido esta inconstitucionalidade. Só agora, passados estes 20 anos, é que se glosa este dispositivo do Decreto Lei. É um Decreto Lei que foi editado pela Junta Militar, eu reconheço, mas segundo até um ministro da época, o ministro Jarbas Passarinho, foi a pedido de segmentos do Jornalismo’, relembrou.
Outro ponto levantado por Dines foi a questão do sigilo da fonte de informação, garantido pela Constituição Federal. ‘Já que está extinta a profissão de jornalista, quem será o titular deste direito?’, perguntou. O ministro explicou que o sigilo diz respeito ao exercício da profissão e que pressupõe uma qualificação específica. ‘Aí surge o fato normativo’, explicou. Marco Aurélio Mello acredita que os juízes em geral observarão a jurisprudência já existente baseada na Lei de Imprensa e na exigência de diploma para exercício profissional.
Com o novo quadro, o papel do jornalista deve ser maximizado. ‘Nós teremos que potencializar o papel daquele que está à frente de um veículo de comunicação ou integra um veículo de comunicação e divulga idéias, pensamentos, notícias e fatos. No tocante ao Jornalismo, nós temos que observar o sigilo da fonte. É indispensável para que continue o veículo contando com informações e informações que interessam à sociedade’, argumentou.
Vácuo e insegurança jurídica
Com as mudanças na Lei decididas este ano pelo Supremo, criou-se um vácuo que, na visão do ministro, não é benéfico para a segurança jurídica. ‘Se estando o órgão julgador submetido à legislação nós já somos surpreendidos com certas decisões, o que se dirá se cada qual fixar o critério segundo o conhecimento técnico possuído e também a formação humanística. Aí, evidentemente, não se terá almejado a segurança jurídica’, ponderou.
Para Dines, a necessidade do diploma poderia ser discutível, mas a extinção da profissão, implícita na votação, é grave. Marco Aurélio Mello destacou que a responsabilização por possíveis falhas cometidas por jornalistas pode ser prejudicada e que o mercado de trabalho brasileiro é desequilibrado. ‘Nós temos uma oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de empregos. Qual é a tendência, principalmente no interior? Eu não me preocupo muito com os grandes veículos de comunicação, que continuarão exigindo diploma de Jornalismo. Mas e no interior, tendo em conta dificuldades econômicas e financeiras? Os pequenos veículos tenderão a contratar a mão-de-obra mais barata. E isto em prejuízo daqueles que devem ser informados e bem informados’, avaliou.
Dines pediu para o ministro explicar de forma resumida os dois votos proferidos. Em relação à Lei de Imprensa, o ministro defendeu que a legislação já estava ‘purificada’, o Judiciário afastara os preceitos inconstitucionais. O ministro avalia que a Lei que assegurava o exercício da profissão continha garantias favoráveis aos jornalistas e cuidava dos parâmetros da divulgação de idéias, de notícias. ‘Como será exercido o Direito de Resposta se já não se tem mais as balizas do Direito em termos de espaço e veiculação? Segundo o critério do julgador? Isso é muito ruim. Principalmente, se encontrarmos um colega acometido de ‘juizite’, que se sinta acima do bem e do mal. Ele fixará o ‘critério de plantão’ e teremos as decisões variando conforme o juiz que aprecie o processo’.
O ministro Marco Aurélio Mello acredita que o Poder Judiciário adotará a jurisprudência que foi fixada segundo a lei anterior. Na prática, a lei declarada como inconstitucional pelo Supremo continuará regendo as relações jurídicas. Dines comentou que a situação é kafkiana. ‘A jurisdição visa restabelecer a paz social momentaneamente abalada pelo conflito de interesses. É interessante que as regras que impliquem este restabelecimento sejam as mesmas regras aplicadas em todo o território nacional. Nosso Direito é uno, e una deve ser a jurisprudência.’, disse o ministro.
A quem interessa o fim do diploma?
Na votação da obrigatoriedade do diploma para exercício do Jornalismo o ministro afirmou que indagou a quem interessava a declaração de inconstitucionalidade. ‘Aos jornalistas? A reposta é negativa. Aos veículos de comunicação? Resposta também negativa’, disse. O ministro não acredita em desregulamentação da profissão e na regulação pelo próprio mercado. ‘Se, já havendo uma legislação já regedora da matéria, nós temos enfoques conflitantes, o que não se dirá se não houver essa mesma legislação?’, questionou. Dines comentou que as grandes empresas jornalísticas hoje têm cursos de aperfeiçoamento que complementam a formação profissional.
‘Eu hoje tenho 30 anos de juiz. E acredito ainda que sou um estudante do Direito. O aperfeiçoamento nessa nossa área é constante. E pobre é o homem que já se sinta em um patamar que não precise mais deste aperfeiçoamento’, avaliou. Dines considera que o jornalista profissional está em um processo de educação contínua. Para prestar um serviço de maior valor para a sociedade, deve-se acumular conhecimento e leitura. E destacou que não é a mídia que deve formar o profissional, mas sim escolas independentes.
Uma vez que a questão da obrigatoriedade do diploma foi julgada pelo Supremo, não há mais recursos no âmbito do Poder Judiciário. Mas o ministro acredita que o tema voltará ao debate. O Poder Legislativo pode reverter o quadro. Na opinião do ministro, a problemática da exigência se resolve no campo da opção política normativa. Os deputados e senadores é que devem decidir a matéria de acordo com os anseios da sociedade. Uma emenda constitucional que exija o diploma pode ser apresentada. A solução seria uma lei ordinária, e não uma medida provisória.’O Supremo não é um legislador. Ele é um legislador negativo quando a lei ordinária conflita com a Constituição Federal. Mas é preciso que o conflito seja evidente. Surja ao primeiro exame. E neste caso eu penso que ele não surgiu’, criticou.
Inspirados na primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, defensores da tese de que o diploma específico em Jornalismo não é necessário para o exercício da profissão alegam que o legislador não pode impor obstáculos à liberdade de expressão. ‘Exigir-se a qualificação não cria cerceio à liberdade de expressão. Mesmo porque o Decreto-Lei continha um preceito revelando a figura do colaborador’, explicou o ministro.
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Como está, não dá para ficar
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 513, exibido em 28/7/2009
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Estamos na avenida Rio Branco, no prédio onde funcionou entre 1909 e 1960 o Supremo Tribunal Federal, a nossa Corte Suprema. E este cenário foi escolhido para ouvir uma figura muito importante que, embora minoritário em duas votações, conseguiu, de certa forma, criar uma consciência de que não adianta votar certas coisas quando não há algo para oferecer em troca.
Este ministro que nós vamos ouvir, discutir e aprender com ele, é Marco Aurélio Mello. Foi minoritário na votação da extinção da Lei de Imprensa em 30 de abril e foi minoritário, aliás, o único, que votou contra o fim da obrigatoriedade do diploma, em 17 de julho.
Este é um momento importante porque nós temos que respeitar as decisões do Supremo, são irreversíveis, mas nós temos que nos conscientizar que assim como está, não pode ficar.
O Observatório da Imprensa tem uma posição histórica em defesa da profissão do jornalismo, da especificidade do jornalismo, e por isso escolhemos a edição de hoje para ouvir, antes de tudo, o professor Marco Aurélio Mello.