A Alemanha está revendo a disputa entre a visão de mercado e a pluralidade de interesses na formação da opinião pública através dos meios de comunicação de massa. O processo foi detonado pela intenção da maior empresa jornalística européia (a alemã Alex Springer) de comprar a terceira rede nacional de televisão (a ProSiebenSat.1 Media).
A ação coordenada do mais influente diário do país (o jornal sensacionalista Bild) e da rede de TV daria à Springer um poder de fogo empresarial e político desconhecido na Alemanha do pósguerra. Algo em torno de 64% do ‘potencial de formação’ da opinião pública. Ainda consagraria um duopólio nacional com Bertelsmann, o terceiro conglomerado mundial de mídia e entretenimento.
Os dois órgãos de governo alemão que vigiam a livre concorrência e a pluridade nos meios de comunicação são contra. O Departamento Federal de Cartéis só aceita sacramentar a compra se Springer vender o Bild ou uma das duas maiores emissoras que compõem a rede de TV. A Comissão de Verificação da Concentração nos Meios de Comunicação (KEK) mostra certa flexibilidade.
O presidente da KEK, Dieter Dörr, acredita que os planos da Springer colocariam em risco a pluralidade e a liberdade do pensamento, elementos básicos de uma sociedade democrática. ‘Uma vez criado esse superpoder, não é mais possível voltar atrás ou somente a muito custo’, disse ele. Por isso, Dörr defende que um conselho independente controle a programação, a publicidade e a contratação dos principais jornalistas da rede de TV.
Decreto especial
Esse modelo de conselho integrado por representantes da chamada sociedade civil (sindicatos de empregados e empresas, as igrejas católica e protestante, entre outros) é aplicado às empresas jornalísticas de direito público, que operam redes de rádio e TV.
Isto permite que estas emissoras (ARD, ZDF, WDR e outras) ofereçam programas formativos e informativos, em geral de qualidade. Captadas por 42% da população, elas ficam, contudo, com apenas 8% da verba publicitária, pois são financiadas por uma taxa mensal equivalente a 70 reais, cobrada de quem possui aparelhos de rádio ou TV.
O influente diretor do Instituto de Estudos de Políticas de Informação, Lutz Hachmeister, achou a idéia ‘ilógica, distante da realidade’. Como a compra pretendida é entre empresas privadas, imediatamente falou-se de ‘desapropriação’. O principal executivo da Springer foi além. ‘Comparada a essa exigência, a ex-Alemanha Oriental parece ter sido um paraíso econômico do liberalismo ortodoxo’, disse Mathias Döpfner.
A declaração revela sua irritação. Ao fechar em julho do ano passado a compra da rede ProSiebenSat.1 com o empresário americano-israelense Haim Saban, Döpfner imaginava um desfecho diferente. Ao preço de 4 bilhões de euros, ele estaria renacionalizando uma fatia do setor. A sinergia da rede com a editora jornalística traria redução substancial de custos e alavancaria a publicidade. Afinal, Springer passaria a ser um conglomerado da mídia de peso europeu, um chamado national champion.
Agora, em meados de janeiro de 2006, os obstáculos institucionais estão claramente colocados. Estrategistas da Springer acreditam que o veto técnico dos órgãos de governo ainda poderia ser anulado. Uma alternativa seria recorrer à Justiça, reivindicando o direito à livre associação. Porém, o processo levaria anos e o desfecho é imprevisível.
Outra possibilidade seria o caminho político. A exigência do KEK poderia ser derrubada pelos governos estaduais que integram o órgão – os estados de maior peso político como Baviera e Renânia do Norte Westfalen apóiam Springer. O eventual veto do Departamento Federal de Cartéis poderia ser anulado por meio de decreto especial do ministro da Economia, um bávaro amigo da casa. O argumento seria que a compra da rede de TV é de relevante interesse nacional. O último decreto especial data de 2003, quando o então ministro da Economia permitiu a fusão de duas companhias energéticas, consolidando o cartel do setor. Coroando tudo isso, a considerar-se o acesso direto da dona da empresa, a viúva Friede Springer, à recém-empossada premiê Angela Merkel.
Sugestão madura
Springer preferiu, porém, o caminho do meio. Dois dias antes do prazo para apresentar sua última proposta ao Departamento Federal de Cartéis, a empresa anunciou que venderia a ProSieben, a principal emissora de TV. Mas a solução passou imediatamente a ser o novo problema. O órgão de governo quer que a ProSieben seja vendida antes de a rede de quatro emissoras integrar o conglomerado Springer.
Já a empresa quer se desfazer da ProSieben somente após a incorporação. Seus advogados alegam que a Lei das S.A. exige a apresentação de nova proposta de compra e venda aos acionistas minoritários. Mas também que a venda da ProSieben ainda em 2006 significaria pagar impostos adicionais de alguns milhões de euros.
Springer queixa-se da dificuldade de negociar a curto prazo a venda da ProSieben. Seu atual proprietário, Haim Saban, anunciou que só fechará o negócio se vender o pacote inteiro de quatro emissoras.
Ganhar tempo parece ser a tática da Springer. Negociando as condições da venda da ProSieben, a empresa evita o veto formal do Departamento Federal de Cartéis, que seria anunciado na próxima sexta-feira (20/1). Quem sabe enquanto Springer estica o tempo de jogo surge a jogada política que mude as decisões a seu favor.
Pode ajudar o fato de que todas as empresas potencialmente interessadas em comprar a ProSieben são estrangeiras. São elas a holandesa SBS Broadcasting, as americanas Viacom e NBC Universal, e a francesa TF1. Isto gerou uma tempestade de críticas ao governo de Angela Merkel. ‘É o típico gol contra, pois agora virá a desnacionalização’, disse Uwe Kammann, diretor do Instituto Adolf Grimme, especializado em questões da mídia.
O vice-líder do Partido Social Democrata, Fritz Rudolf, vê Rupert Murdoch e Silvio Berlusconi invadindo a Alemanha. Ambos já estão presentes em nichos do mercado alemão de televisão.
Independente do desfecho da novela Springer, políticos e especialistas são unânimes em constatar que a legislação alemã é anacrônica. O diretor do Departamento de Meios de Comunicação do influente estado de Renânia do Norte, Norbert Schneider, exige que a lei leve em consideração a evolução técnica e empresarial no mundo e as convergências intrassetoriais. Sem esquecer os aspectos estratégicos de contar com mais empresas nacionais de alcance mundial.
Uwe Kammann acredita que a crescente digitalização vai diluir os atuais centros que buscam monopolizar a formação da opinião pública. ‘Importante será saber quem fornece o conteúdo para as redes de comunicação’, diz.
A sugestão mais madura do momento é a do diretor do Instituto Formatt de Economia e Pesquisa dos Meios de Comunicação, Horst Röper. Diz ele: ‘Atualmente, o conjunto de regras para fazer cumprir a disposição constitucional da pluralidade vê os meios de comunicação de maneira unilateral. Estas regras tornaram-se ultrapassadas diante da atual multiplicidade e convergência desses meios. Para cumprir o preceito constitucional, é preciso ter instrumentos claros de controle que não fiquem presos a conceitos da época da rádiodifusão – e nem sejam influenciados pelos interesses conflitantes dos estados [federais alemães]’.
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Jornalista