Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Democratização da comunicação na América Latina

Novos caminhos para a democratização da comunicação na América Latina começam a ser trilhados. Exemplo disso é a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação no Brasil e o polêmico projeto de Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, apresentado pela presidente argentina Cristina Kirchner. O argentino Guillermo Mastrini, em entrevista ao e-Fórum, avalia que essas iniciativas são reflexo das mudanças no contexto político da América Latina.


Guillermo Mastrini, licenciado em Ciências da Comunicação e docente da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de Quilmes, considera que a caminhada para a democratização dos meios ainda é longa, mas que nunca antes a participação da sociedade civil foi tão ativa. Hoje, na América Latina, garante ele, uma maioria de governos moderadamente de esquerda ou de centro-esquerda está disposta a buscar, ainda que lentamente, uma outra configuração dos sistemas de comunicação.


Em entrevista concedida ao e-Fórum, o professor e autor do livro Los dueños de la palabra, lançado na sexta-feira (18/9), em Buenos Aires, fala sobre a nova lei argentina de comunicação audiovisual, a concentração dos meios, a necessidade de políticas públicas e a luta por uma comunicação mais democrática. Leia a seguir.


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O projeto da nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovado no último dia 17 pela Câmara dos Deputados da Argentina, vem gerando polêmica. Qual a sua avaliação sobre o projeto?


Guillermo Mastrini – Eu creio que em termos gerais é um bom projeto, ele avança notavelmente no sentido de definir a radiodifusão e o sistema de comunicação audiovisual numa abordagem mais ampla, como um conceito de liberdade de expressão vinculado ao direito à comunicação e não a uma liberdade de expressão entendida no sentido estreito e que somente é garantida àqueles que detêm o controle dos meios. Ou seja, é um conceito de liberdade de expressão que garante ao conjunto da cidadania a participação nos meios.


Logicamente, como ocorre em toda a América Latina – podemos ver isto recorrentemente na Venezuela, no Equador, na Bolívia e também no Brasil – cada vez que um governo quer legislar a radiodifusão, dar aos serviços de comunicação um sentido democrático, os donos dos meios midiáticos imediatamente começam a dizer que se trata de um ataque à liberdade de expressão. Na verdade, trata-se de um ataque a ‘sua’ liberdade de expressão, porque a liberdade das empresas pretende ser absoluta. Eles acham que são os únicos com direitos para transmitir, dominam todos os meios e não querem nenhuma restrição. Quando se criam novos direitos para outros cidadãos, obviamente, se entra em choque com esses interesses. Isso precisa ser entendido.


A Argentina tem até hoje uma legislação com clara concepção autoritária, que provém da ditadura [entre 1976 e 1983], e nesse sentido é muito importante que se possa sancionar essa nova lei.


De que forma essa Lei contribui para uma comunicação mais democrática na Argentina?


G.M. – Bom, para começar, há um grande avanço ao que se reserva em torno de 33%, um terço do espectro radioelétrico, às organizações sem fins lucrativos. Quero dizer, a Lei concebe que essas organizações não só podem ser licenciadas, como devem ter um espaço reservado, porque, senão, se torna um direito falho. Para nós, esse é um ponto muito, mas muito importante na ideia de avançar para uma democratização da comunicação.


Além disso, avança também na ‘desmonopolização’, ou seja, impõe limitações importantes aos grandes grupos econômicos para serem proprietários dos meios de comunicação. Isso também implica a necessidade de retrair investimentos aos grupos multimídia surgidos na década de 1990.


Eu diria que os principais elementos que a Lei possui, em matéria de democratização da comunicação, são as ações de caráter antimonopólio e o aumento da participação da sociedade civil nos meios de comunicação.


A presidente Cristina Kirchner determinou a retirada das empresas telefônicas do controle da TV a cabo no novo projeto. Como o senhor vê isso?


G.M. – Eu acho, e essa é uma posição muito pessoal, que as telefônicas vão acabar entrando de toda forma no setor de serviços audiovisuais. Nesse sentido, penso que seria melhor regular a maneira como vão entrar, e não esperar que entrem para depois regular.


Agora, é certo que não haveria consenso político para aprovar o projeto, se não fosse feita essa retirada. Então, podemos observar de duas maneiras essa modificação. Se observarmos do ponto de vista de qual lei seria a melhor, creio, a que permitia o ingresso, mas que o regulava de forma claramente antimonopólica. Mas, acho que na política, nem sempre o melhor é o mais adequado – se essa melhor redação levaria a uma rejeição da lei, de nada adiantaria. Com a modificação, muitos deputados votaram a favor do projeto, e é isso que importa. Me parece, então, que é um saldo positivo ter feito a mudança. Em termos estritamente técnicos, porém, não estou de acordo.


Qual o papel do Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer)? Por que ele não consegue evitar a existência dos monopólios/oligopólios?


G.M. – A atual legislação permitiu a conformação de oligopólios. O objetivo da nova lei é gerar um marco normativo que os impeça.


O Comfer não regula, só aplica a lei. É aquele que tem o poder de polícia em relação à radiodifusão. Tem participação também na publicação das licenças, mas não é concretamente um regulador, é uma agência de controle e de aplicação. Regular fica nas mãos exclusivamente do Congresso da nação.


Em sua pergunta, está implícita a dúvida em relação à capacidade que a futura autoridade terá para aplicar e fazer cumprir a nova legislação [no projeto aprovado pela Câmara, está prevista a criação de um órgão específico para os Serviços de Comunicação Audiovisual]. Também temos dúvida quanto a isso, porque o poder dos meios de comunicação é muito grande.


É preciso destacar que a nova lei da radiodifusão vem precedida de uma enorme pressão social, algo parecido – mas com menos tradição e fortaleza – ao FNDC. O que nós chamamos de Coalizão por uma Radiodifusão Democrática elaborou a base do projeto, não escreveu a Lei, mas ajudou a construí-la baseando-se na filosofia de um projeto de origem arraigada na mobilização popular por uma radiodifusão democrática.


Políticas públicas


Em países como Venezuela, Chile, mais recentemente o Equador, começam a discutir a reformulação das leis de comunicação. Como o senhor avalia esse novo cenário na América Latina?


G.M. – Temos que entendê-lo num contexto histórico. Na América Latina, os donos dos grandes meios historicamente dizem que a melhor lei é aquela que não existe, e o que eles fizeram foi pressionar para que não houvesse regulação dos meios.


Neste momento, a dinâmica do mercado comunicacional, com a erupção das novas tecnologias, de novos setores como as empresas telefônicas, fazem com que seja muito importante ter que regular. Porque há novos atores, há novas políticas para desenvolver, e nesse sentido é necessário que se estabeleçam regras de jogo claras.


O que mudou, em relação à história, é a situação política. Estamos num contexto diferente do que tradicionalmente ocorreu. Hoje, há uma maioria de governos na região moderadamente de esquerda ou de centro-esquerda. Nessa conjuntura, evidenciou-se que os acordos feitos pelos governos que não eram desses campos, com os proprietários dos meios, não eram tão nítidos. Assim, se abriu a discussão de como regular a comunicação. O que deveria ter sido feito desde as origens da radiodifusão. É curioso que não se tenha feito antes, e, portanto, resulta tão conflitante fazê-lo nesse momento.


Em relação às políticas públicas de comunicação, qual é o panorama na América Latina?


G.M. – O interessante nesse ponto é que se voltou a falar das políticas de comunicação no continente latino-americano. Esse tema teve muito fervor e incidência na década de 1970 e depois entramos em um túnel escuro nos anos de 1980 e 1990, onde era praticamente um palavrão mencionar a expressão ‘políticas de comunicação’. Por sorte, hoje está se abordando o tema.


Eu digo sempre que há três atores principais nas políticas de comunicação: o Estado, as empresas e a sociedade civil. Creio que pela primeira vez a sociedade civil está participando. Em geral, se revisamos a história das políticas de comunicação, dos três atores só participavam dois, as empresas e o Estado.


Há uma redefinição das políticas de comunicação, em alguns casos se avançou mais em termos de democratização, em outros nem tanto. E nesse processo se destaca a consciência da sociedade civil de que precisa intervir; é claro que essa intervenção nem sempre tem a força necessária, mas esse é um processo de organização que leva tempo.


Que medidas precisam ser preconizadas para expandir as políticas de comunicação na América Latina?


G.M. – O primeiro passo que temos a dar na América Latina são leis de radiodifusão elaboradas de maneira democrática e com participação social. Agora, esse é um ponto de partida – a aplicação dessas leis requer um trabalho contínuo. A lei não é o ponto de chegada da política de comunicação, é a base. Para a realização dessa política, há uma tarefa social importante que é o acompanhamento diário para construir uma comunicação melhor e mais democrática.


Qual sua avaliação sobre a adoção do modelo da TV digital brasileiro em outros países latino-americanos?


G.M. – Acho que teria sido melhor que todos os países tivessem negociado juntos. O fato de o Brasil ter negociado sozinho, primeiro, e depois ter conseguido que o resto dos países assumisse o modelo, marca claramente a importância do país, neste momento, como líder regional.


Se pensarmos nas diretrizes estratégicas regionais, creio que teria sido melhor ter negociado. Porque assim, quem conseguiu as melhores condições foi o Brasil. De toda a forma, teria sido melhor para o conjunto da sociedade negociar integralmente com os países condições boas para todos, levando em consideração o mercado. Está claro, porém, que o fato de vários países escolherem a norma japonesa permitirá alguma integração regional em matéria de políticas industriais. Depois teremos problemas derivados do fato de não ter-se negociado conjuntamente e ainda bastante disputa em termos dos direitos e tutelas de cada um dos países.


Concentração dos meios


No livro Los dueños de la palabra, que está lançando agora, o senhor trata da concentração dos meios de comunicação. Fale um pouco desse livro.


G.M. – Nossos trabalhos nos revelam médias, logicamente tudo é variável, mas em termos gerais, no sistema de comunicações, as quatro primeiras empresas de cada mercado concentram 80% da propriedade, não só dela, mas das audiências – e esses são números muito altos. São níveis realmente significativos para qualquer indústria, principalmente para uma indústria onde estão em jogo os valores simbólicos, a difusão de ideias.


Precisamos dizer que, de todos os mercados que nós estudamos – imprensa gráfica, rádio, televisão, televisão a cabo ou por assinatura, telefonia móvel e fixa –, os mais concentrados são os mercados telefônicos. Também vimos que há uma tendência das grandes empresas telefônicas em expandir-se para o setor audiovisual, especialmente primeiro via cabo. E há uma tendência de que duas grandes empresas telefônicas da região cada vez tenham mais penetração em todos os mercados – a Telefónica da Espanha e a Telmex do México estão praticamente presentes em todos os países da América Latina e cada vez ganhando mercados.


Quais são as características e problemas semelhantes nos países nessa questão da concentração?


G.M. – Em geral, os níveis de concentração são muito similares. Como nós havíamos estudado, os países maiores, com maior população, têm maiores mercados, e por isso um pouco mais de diversidade que os países pequenos. Pela simples questão de que o tamanho do mercado permite a existência de mais meios. De toda forma, os níveis de concentração são muito altos em todos os países.


Onde é mais amena a concentração dos meios de comunicação?


G.M. – Podemos dizer que no Brasil o nível é menos alto, mas é muito alto também. Brasil e México, em alguns pontos, têm menos concentração. Pela simples razão de que como são mercados maiores, possuem mais meios. Mas ainda com níveis altíssimos. Verificamos os países maiores têm níveis mais baixos de concentração . Mas se pensamos de outra maneira, por exemplo no Brasil, a média pode estar em 75%, e dominar 75% num mercado tão grande e poderoso como o brasileiro, isso é ter uma potência econômica que nenhum grupo tem no resto do continente.


Como fica a comunicação comunitária em relação à concentração dos meios?


G.M. – Em geral, há muito pouca regulação que favoreça a comunicação comunitária. Temos um exemplo recente muito bom, surgido no ano passado, que é o caso do Uruguai. Lá, pela primeira vez, tem uma legislação importante em matéria de radiodifusão comunitária, mas em termos gerais, há muito atraso. A legislação chilena é muito, muito ruim, porque quase condena a existência da comunicação comunitária em vez de incentivá-la. A mexicana também é bem ruim. E por aqui, na Argentina, estamos no começo.


A nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual argentina permitirá, sem ser uma lei específica de radiodifusão comunitária, estimular o setor a partir do forte incentivo que dará às organizações não governamentais. Mas há muito a ser feito em matéria de radiodifusão comunitária.


Quais são as carências e méritos encontrados quando se trata dos marcos regulatórios?


G.M. – Os meios de comunicação estavam acostumados a uma regulação que os protegesse e nunca enfrentasse seus interesses. Isto tem sido tradicional na América Latina. Sempre a regulação dos meios favoreceu a expansão dos grupos multimídias. E é por isso que, se fizermos um processo de revisão e visualizarmos uma nova tendência na qual se possa compreender que não só os meios de comunicação devem ser os favorecidos, mas sim todo o conjunto, estaremos numa etapa mais democrática na comunicação.


O que mudou desde a publicação de Periodistas y Magnates [livro anterior, também publicado em conjunto com Martín Becerra] até Los dueños de la palabra? ~


G.M. – Não mudou muita coisa. O que se confirma é uma tendência de alta concentração. Nós destacamos como diferença principal o fato de as telefônicas, sobretudo as empresas Telefónica e Telmex, como eu já apontei, estarem cada vez mais presentes em todos os mercados da América Latina e como as maiores do setor. Nesse sentido, parece uma questão chamativa, para se dizer o mínimo, que está se formando no nível telefônico uma espécie de duopólio, um monopólio de dois. E que vai ter, sem dúvida, uma incidência no setor audiovisual.


Democratização da comunicação


Quais são os desafios para a democratização da comunicação?


G.M. – O fundamental é que se possa estabelecer em todos os países uma regulação que limite claramente o desenvolvimento dos monopólios e dos oligopólios. Que, ademais, estimule uma política pública. Não basta limitar os monopólios, creio que uma política pública de comunicação tem que, além disso, promover a diversidade. O mercado por si mesmo não está em condições de promover a diversidade, portanto, resulta fundamental que haja uma intervenção do Estado para garantir meios diversos.


Como fazer para a sociedade se envolver mais?


G.M. – Eu acho que é um trabalho que a própria sociedade deve fazer. Não há uma receita. Acho, claro, que o fato de existirem organizações como o FNDC, ou organizações democráticas que tenham presença social e cotidianamente se vinculem a sindicatos, a movimentos de base é importante. Não é uma tarefa fácil. Então, tudo que se faz serve para avançar. Logicamente, sempre se falta recurso, boas articulações, sobretudo termos capacidade de articulação com outras instâncias. Acho que é mais ou menos isso, seguir trabalhando, participando, estando presente.


Confecom


Em relação ao Brasil, como o senhor vê a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação?


G.M. – Nós vemos com muita expectativa, porque neste momento, o Brasil, em ternos políticos gerais – não específico da radiodifusão –, está se transformando numa referência inquestionável para toda a América Latina. Nesse sentido, o que acontece no Brasil vai ser importante. Nós, por exemplo, esperamos que finalmente o governo de Lula possa sancionar uma lei de radiodifusão democrática.


Mas eu vejo isso com certo ceticismo. Parece-me que o governo Lula tem mantido uma relação de equilíbrio. Com muitas virtudes em muitas áreas, em matéria de políticas de comunicação, mas ainda não enfrentou os grandes grupos de multimídia. Não digo que esteja a favor, mas tem tido uma relação de equilíbrio, especialmente com o grupo Globo. Se considerarmos a norma de televisão digital, vemos que não há confrontação. Não que ela deveria acontecer, mas me parece que seria melhor se privilegiassem mais os interesses da sociedade civil, editando uma lei de radiodifusão emanando a vontade popular e não só levando em consideração os interesses dos grandes grupos corporativos.


Espero que a Conferência Nacional de Comunicação, que se levará a cabo agora em dezembro, seja um passo a mais nesse sentido. Eu vi, por exemplo, que revogaram uma lei de radiodifusão da ditadura [Lei de Imprensa], mas ainda não sancionaram uma nova. Isso ficou um tanto complexo, é como se vocês estivessem na metade do caminho, e creio que seria muito importante para o Brasil percorrer a outra metade para finalizar essa questão.


[Com a colaboração de Fabiana Reinholz]