Comunicação e cultura são elementos fundamentais para o desenvolvimento da cidadania e da subjetividade. Por meio da educação (cultura) e da informação (comunicação) o indivíduo obtém ferramentas que possibilitam uma visão crítica da sociedade em que se insere. Com isso ele pode estabelecer um posicionamento político no enfrentamento de questões relativas aos seus direitos, que vão muito além do voto.
No entanto, é necessário garantir que todos possam ter iguais diretos de acesso a esses elementos essenciais para a construção de uma sociedade saudável. Para tal, deve-se criar políticas públicas que permitam a democratização da comunicação e da cultura. Foi para debater essas questões que pensadores da comunicação de diversas partes do mundo estiveram reunidos em um encontro no início deste mês. Os debates fizeram parte de um evento maior chamado Tangolomango, que se dedica a democratizar ações culturais locais e debater a sustentabilidade dessas ações. Participaram do debate Sean O Shiochru, porta-voz da campanha CRIS; Taí Ladeira, representante brasileira da Associação Mundial de Rádios Comunitárias – AMARC; Eduardo Homem, fundador da TV Viva de vídeos populares; João Brant, do Coletivo Intervozes; Arturo Bregaglio, diretor da Rádio Comunitária FM Trinidad no Paraguai; e Gustavo Gindre, coordenador executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura – INDECS.
Direito à liberdade de expressão
Uma questão levantada pelo porta-voz da campanha CRIS, Sean O Shiochru, foi o direito universal à comunicação. Por isto entende-se que não só é preciso garantir a liberdade de expressão e manifestação de idéias, mas também permitir acesso à informação e meios para que as pessoas possam se fazer ouvir. A Campanha CRIS (a sigla em inglês significa Direitos da Comunicação na Sociedade da Comunicação) é um órgão internacional que trabalha para desenvolver e promover as idéias de direitos de comunicação. A CRIS acha que o direito à comunicação é essencial para a área dos três Cs – comunicação, cultura e cidadania.
No mundo de hoje, vivemos uma realidade em que a convergência de mídias – é possível assistir TV e ouvir rádio pela internet, ou assistir TV, ouvir rádio e acessar a internet via celular – poderia ser um agente facilitador para a democratização do acesso à informação, não fosse o fato desses meios estarem todos nas mãos de poucos conglomerados de mídia.
Para Gustavo Gindre, existe uma grande concentração empresarial onde um só grupo de comunicação abrange e concentra inúmeras marcas de em diferentes meios de comunicação como, segundo ele, "é o caso da América Online/Time Warner, que concentra no seu interior a Warner, HBO, TNT, Hanna Barbera, TV Comics, ICQ, Netscape, CNN, tudo isso dentro de um mesmo conglomerado de mídia".
No Brasil, a situação não é diferente. João Brant afirma que em nosso país existe "uma mídia concentrada, em que seis grupos controlam o sistema de televisão brasileiro, nove família detém 86% dos meios de comunicação no Brasil". Hoje, a mesma empresa controla, em boa parte das cidades do país, o jornal, o rádio e a televisão.
Além disso, existe a questão da formação de redes, que permite as afiliadas de TV reproduzirem para o Brasil inteiro uma programação quase integral de conteúdo produzido no eixo Rio-São Paulo. Pouco se produz localmente.
Regulamentação do setor privado e das redes
No Brasil existem leis que limitam a propriedade de concessões de emissoras VHF – um mesmo grupo não pode possuir mais de cinco emissoras. Porém, na prática não é assim que acontece. A rede Globo, por exemplo, tem o controle apenas nas praças Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Recife, mas a sua programação, especialmente aquela de horário nobre atinge toda a extensão do país.
Há ainda outras leis que cerceiam as ações das empresas de TV comercial e que, no entanto, causam polêmica. Uma delas é a de que uma emissora pode usar até 25% da programação com publicidade comercial. Paralelo a isso, as mesmas emissoras têm a obrigação de usar até 5% da programação com conteúdo jornalístico, o que significa cinco vezes menos que publicidade.
A nova censura
Ainda segundo Brant, esse quadro pode ser interpretado como um caso de censura, não daquele jeito que conhecíamos anos atrás, da censura vinda do Estado. Para ele, "no momento que você tem uma mídia concentrada, você tem uma censura que se dá no filtro das informações, o que vai ao ar e como essas coisas se materializam, quais as versões que estão sendo trabalhadas". É preciso proteger o cidadão desse tipo de censura.
A hegemonia do conteúdo controlado por apenas um grupo e interesse está abafando o surgimento de novos atores sociais que estão pipocando pelo país e que se expressão no campo da economia, da educação, da cultura, das artes, organização social, da saúde, ecologia. Esses novos agentes não têm espaço para disseminar suas idéias e conceitos e desta forma criar um debate ou até derrubar a forma de sociabilidade hegemônica e instituir um novo conceito para as interações sociais no país. Essa questão é defendia pelo diretor da TV Viva, Eduardo Homem, que vê na produção e exibição de vídeos populares uma saída para mostrar uma realidade social livre da espetacularização das TVs comerciais. Segundo o diretor da TV Viva, a mais forte expressão desses agentes "tem sido a negação das características da ideologia dominante que são a solidariedade, o respeito à diversidade, a participação individual e coletiva como marca da existência dessas comunidades".
Pluralidade de mídias e diversidade de conteúdos
A sugestão dada por Brant para a democratização da comunicação no Brasil é que se crie um "fundo de apoio à pluralidade e à diversidade, que poderia ser baseado no princípio de que cabe ao estado, não governo, trabalhar pela pluralidade de mídia e pela diversidade de conteúdos".
Tal fundo poderia ser financiado parte pela verba pública para publicidade e parte pela taxação da publicidade das empresas privadas de TV que vendem publicidade e espaços de programação sem pagar um tostão ao público, que é dono daquela concessão que está sendo explorada.
Com incentivo à pluralidade de mídia entende-se permitir que todas as rádios, TVs, jornais e grupos de internet que sejam organizações sem fins lucrativos possam se candidatar para participar deste fundo e receber verbas tanto para manutenção do veículo, estruturação e gerenciamento, como para trabalhar produção jornalística ou de entretenimento.
Com incentivo à diversidade de conteúdos entende-se permitir acesso ao fundo às grandes, médias ou pequenas mídias que forem tratar de temas-chave, que atinjam diversos agentes sociais e que contribuam para a evolução da cidadania. Alguns exemplos de temas: trabalho escravo no Brasil, gravidez na adolescência, ecologia etc.
As rádios comunitárias
Taís Ladeira, que faz parte da Associação Mundial de Rádios Comunitárias, diz que as pessoas envolvidas com os movimentos de democratização da comunicação costumam pensar as rádios comunitárias como suas manifestações mais pulsantes.
A situação das rádios, hoje, no Brasil não é diferente da situação das TVs. O quadro que temos é de um setor dominado por interesses políticos, religiosos e comerciais, com pouca preocupação com conteúdo e informação, tendendo em sua maioria para o entretenimento.
Este quadro de concentração e de exclusão forma um ambiente ideal para o surgimento de rádios comunitárias, que buscam o seu direito de produzir informação. Com isso, Taís acredita que as rádios comunitárias têm a "total capacidade de ser um contraponto à mídia comercial e privada, talvez menos pela qualidade da sua programação e mais pela não qualidade da programação dessas rádios comercias, da desqualificação crescente das emissoras privadas".
No entanto, os desafios são tantos que Arturo Bregaglio, diretor da Rádio Comunitária FM Trinidad, do Paraguai, se surpreende e diz que "num país como o Brasil ter se avançado pouco na democratização da radiodifusão, com tudo que foi acumulado social e politicamente, é um fato que chama atenção".
Se por um lado, a banalização da tecnologia facilitou a democratização da técnica de forma que até os mais desprovidos de formação podem operar uma rádio sem muita dificuldade. Por outro lado, as dificuldades e barreiras postas pela legislação precária do meio dificultam o trabalho, proliferação e debate de idéias.
Nesse ponto, Taís coloca que houve uma luta por uma legislação até que, em 1998, o governo Fernando Henrique Cardoso aprovou projeto regulamentando o serviço de rádios comunitárias. "Só que entramos no ano 2000 com um embate muito grande em relação a essa legislação que, de 98 até 2004 não mostrou a que veio", diz Taís. Segundo ela, com o agravante de que houve um grande retrocesso depois que o governo passou para a Anatel a responsabilidade de fiscalizar os meios de comunicação eletrônicos, em um viés estritamente técnico e não político. Isso esvaziou e desarticulou todo o movimento de auto-organização das rádios comunitárias, que estão sofrendo com a repressão por não terem recursos para uma melhoria técnica.