Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Desta vez, Alencar não pediu demissão

José Roberto de Alencar andava sempre com seu indefectível borsalino na cabeça e um papel no bolso de trás da calça jeans. A boina completava a figura do personagem, arrematando seus 196 centímetros de altura, muito esguios, com uma cobertura que o fazia assemelhar-se ainda mais ao Dom Quixote de Miguel de Cervantes. O papel era o modelo de um sumário pedido de demissão. Sempre que lhe davam algum motivo, ou mesmo sem motivo algum (pelo menos aparente), Zé Grandão sacava o papel, preenchia os espaços em branco do modelo e ia embora, sem lenço nem documento.

Jura a lenda que assim passou por 50 redações de jornais e revistas de todo país (não recordo se tirava o borsalino da alta cabeça para o cumprimento final). Do seu currículo constavam os títulos mais lustrosos da imprensa nacional, cargos de prestígio, façanhas notáveis, histórias mais do que inacreditáveis: simplesmente inconcebíveis.

Alencar nunca reivindicou para si o título (pelo contrário, o conferia generosamente aos outros), mas foi um dos maiores jornalistas brasileiros de todos os tempos. Mais exatamente: o repórter número um, ao menos para mim, privilegiado por sua conivência, amizade e ensino. Ele se foi no dia 12/6, aos 63 anos, em conseqüência de complicações que se seguiram a uma cirurgia para a retirada de um aneurisma na aorta abdominal. Tinha mais de 30 anos de carreira, iniciada na revista Exame, e prosseguida num vai-e-vem incessante por todas as redações que contam no topo do jornalismo, mas também brilhando em veículos obscuros e interioranos, como o incrível Cinco de Março, de Goiânia.

Insufocável inquietação

Onde estivesse, Zé Alencar não descurava a aplicação de doses abundantes dos seus múltiplos recursos: um texto claro e direto, mas cheio de humor e ironia; uma capacidade de trabalho digna de um Hércules com 12 mitológicas tarefas na pauta, incapaz de se submeter a qualquer dificuldade ou barreira, fosse uma montanha que despencava ameaçadoramente ou um furibundo assessor de empresa. Algumas das melhores reportagens do jornalismo brasileiro nestas três décadas foram dele.

Para os praticantes do ofício, contudo, tão bom era ficar sabendo como o Zé dera conta dos encargos, o que ele, com humildade e bonomia, narrou em dois pequenos livros (Sorte e Arte e Muita Sorte & Pouco Juízo), que deviam ser adotados como leituras obrigatórias nos cursos de comunicação social. Neles, aprende-se a fazer jornalismo nas ruas, encarando os fatos diretamente, diante de acontecimentos vívidos e de pessoas de carne e osso, com mais adequação do que na academia – e com um prazer que ela jamais proporciona. Nem geralmente o exercício da profissão, acrescente-se, a bem da verdade.

Apesar das tantas qualidades marcantes de Alencar, seu nome é cada vez menos conhecido, sobretudo pelos mais jovens. Seus últimos anos foram passados em Santa Rita de Caldas, no interior de Minas Gerais, e suas matérias já não apareciam nos grandes veículos. Decadência do personagem? Não: empobrecimento do jornalismo brasileiro. Profissionais do tamanho de Alencar, como Raimundo Rodrigues Pereira, não têm mais lugar na grande imprensa. São considerados independentes demais, pretensiosos, individualistas, refratários às novas regras. Zé era mesmo um Quixote, com a característica especial de haver criado seu Sacho Pança (o boné) e seu Roncinante (algum carro mequetrefe que descolava para se locomover por todo país atrás de novidades e relevâncias).

Mesmo obrigado a confinar-se no interior mineiro, Zé não perdeu um átimo da sua energia criadora e de sua insufocável inquietação. Depois de longo tempo sem contato com ele, fui surpreendido por uma mensagem via internet. Por sua significação para definir o jornalismo up-to-date dos dias que correm, permito-me transcrever parte do diálogo que vínhamos travando quando a morte foi mais rápida do que ele, não lhe dando tempo para sacar o contumaz pedido de demissão.

Fora do alcance

Nós devíamos ter nos encontrado em São Paulo, mas não pude ir, como em outras vezes. No retorno, ele mandou uma mensagem que o retrata, cristalino e impávido diante de circunstâncias que se agravavam no rumo do fim. Com a saúde precária, precisava cuidar de processos judiciais que se acumulavam, principalmente por inércia alheia. Mas não perdia a graça, como sempre, nem a sinceridade (da qual dou testemunho, sem poder causar-lhe qualquer risco de ser novamente molestado):

‘Oi, Lúcio.

Demorei mais do que esperava pra voltar de Sampa. Fiz lá a palestra e paguei um puta mico: depois de duas horas e quarenta sentado, levantei – e a pressão desabou, o que me levou a desfilar de cadeira de rodas empurrada por bombeiro sob comando de enfermeira, pelo meio daquela multidão toda.

Meu processo, perdi por decurso de tudo quanto é prazo, por obra e graça da Gazeta [Mercantil]. E o pior é que o advogado que arrumei ainda nem conseguiu vê-lo, pois foi pro Arquivo do Ipiranga que, pelo que entendi, é um arquivo meio morto. A merda é que o arquivo pode estar morto mas a sentença que cassa meus direitos políticos está vivinha no TRE. E eu, morando em Poços de Caldas (MG), tô meio longe demais da Paulicéia para fazer as coisas andarem.

Quem me processou foi uma juíza que quase provocou uma guerra ao mandar a Policia Federal prender o diretor da Imprensa Oficial do Capi [Alberto Capiberibe, então governador do Amapá], que se recusou a publicar atos do presidente da Assembléia Legislativa, que para poder roubar mais tinha criado seu próprio Diário Oficial. As provas de que esse deputado era traficante e ladrão foram publicadas e não contestadas na mesma matéria. Mas de fato pisei na bola por não ter ouvido a juíza. E a Gazeta písou um pouco mais fundo ao cortar um trechinho da matéria, concentrando na juíza uma acusação genérica que fiz a todo o judiciário amapaense.

De todo modo, batalha perdida’.

Seguiu-se o diálogo com minha resposta, que resumo:

‘Se você não foi citado pessoalmente, pode tentar anular o processo. Provavelmente eles o intimaram por edital. Mas é preciso ver se foi assim mesmo. A citação inicial tem que ser pessoal ou, provada a dificuldade desse tipo de intimação, por edital. Portanto, é preciso ver se a citação foi regular. Do contrário, trata-se de nulidade absoluta. Vá logo atrás. A justiça tarda, mas não falha, quando se trata de injustiçar alguém. Boa sorte’.

Ele voltou:

‘Pedi a uma jovem coleguinha, dessas que já nasceram sabendo tudo de internet, para tentar descobrir se minha sentença havia sido publicada no DJ.

Ela não conseguiu descobrir. Em compensação, achou mais dois processos correndo contra mim na segunda instância paulistana. O gozado é que eu nunca ouvi falar nem de quem me processa nem dos advogados que me defendem nos dois casos.

Então, repassei tudo pro Márcio Chaer, meu amigo e dono do site Consultor Jurídico, que vai ver pra mim do que se trata e, depois, me dizer que advogado devo contratar – antes de acabar em cana, né?

Muito obrigado pelo empurrão inicial. Se você não me sacode, eu acabava com mais duas condenações na cabeça sem saber nem de onde vieram’.

José Roberto de Alencar não pôde descascar mais esse abacaxi na sua vida. Foi uma injustiça muito grande levá-lo de perto de nós tão cedo. Mais uma vez, porém, se engana quem apostar contra ele. Zé foi vítima daquelas mortes que não matam aquele que atingem. Ele já estava fora do alcance da mortalidade.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)