Infiel, observai o teu nariz melecoso, olhai para tua pele coberta de escarras, teu bolso cheio de larvas pútridas e te curva ao poder do clero. Liga o rádio e escuta a mensagem de Deus, falando do poder da igreja, das glórias da igreja; falando do supremo, onisciente e absoluto poder da igreja. E aí então, quem sabe?, te convenças de que a igreja fala em nome de Deus.
Em nome de Deus, as igrejas estão ocupando as rádios comunitárias. O poder é terreno, a riqueza é terrena, o dinheiro é terreno, a cobiça é terrena, mas os argumentos são baseados numa pretensa designação divina. O catolicismo e diversas denominações evangélicas estão usurpando o que pertence ao povo, em especial as emissoras comunitárias. A lei das rádios comunitárias nº 9.612/98 diz claramente, nos artigos 4º e 11º, que é proibido o proselitismo, isto é a pregação, a catequese, a difusão de cultos. Diz também que a emissora não pode ser dominada ou ter relação subalterna com instituição religiosa. Não é o que se vê neste mundo.
Ah, mas Deus é grande. Tão grande que consegue cegar as autoridades responsáveis pela concessão de autorização e os agentes da Anatel (geralmente tão eficientes) que atuam na fiscalização de conteúdo. Só uma explicação milagrosa e debochada como esta para justificar a existência de tantas rádios comunitárias nas mãos de credos, religiões e seitas religiosas, com autorizações carimbadas pelo Ministério das Comunicações (Minicom).
O Estado tem uma religião
Os casos são escancarados. No Distrito Federal, por exemplo, na cidade-satélite de Taguatinga, a primeira rádio comunitária a receber concessão está instalada numa igreja, a Catedral da Casa da Benção. A entidade é presidida pela mãe de um deputado distrital, Júnior Brunelli, o qual, por acaso, dá nome ao estúdio principal e tem lá sua foto com seu imenso sorriso pregado na porta. Tudo errado, portanto. O Minicom, porém, cego por um milagre de Deus – desse Deus, pelo menos – não conseguiu ver que a entidade que conseguiu a rádio, a Associação Casa da Bênção, é uma instituição religiosa e, por isso, dar a concessão para ela seria um ato ilegal. Mas deu.
São segredos que habitam o ‘mistério’ das Comunicações há pelo menos 500 anos. O Minicom não percebeu, por exemplo, que a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, que conseguiu e obteve uma concessão de rádio comunitária, é uma igreja. Todo mundo sabe que aquilo (grande e rico) ali é uma igreja católica, os fungos que freqüentam o lugar percebem que aquilo é uma igreja, o cheiro de vela, os velhos adornos e os santos são de igreja católica, mas o Minicom não viu.
Como ocorreu isto do Minicom não ver que uma igreja é uma igreja, mesmo quando ela é imensa, rica, e está instalada num dos bairros mais nobres e famosos da cidade do Rio de Janeiro? Mistérios do poder.
Ainda no Rio de Janeiro, no município de São Gonçalo, tem outro caso. Uma ‘rádio comunitária’ da igreja católica – autorizada e funcionando, integra a católica Rede Aliança de rádio. Um papel pregado na parede, carimbado pelo Minicom, porém, diz que ela é comunitária e, portanto, não derruba avião. A programação, naturalmente, é proselitista, católica, catequista… Isso é ilegal? Claro. Duas entidades disputavam a concessão para o lugar: esta rádio transgênica (comunitária-católica) e uma outra, comunitária de verdade, construída pela comunidade. Como o Estado brasileiro tem uma religião oficial (o catolicismo), o Minicom decidiu naturalmente ceder a concessão à igreja católica.
O crucifixo na Câmara
Talvez estas emissoras, falsas comunitárias, de tanto falarem em Deus tenham adquirido o dom da invisibilidade para o Estado brasileiro. Só assim se explicaria o fato da Anatel também não conseguir vê-las. A Anatel, que tem visitado rádios comunitárias e multado algumas boas por inserirem publicidade (conforme avaliação subjetiva e pessoal do agente), não consegue ouvir estas rádios que só falam de Jesus e Bento 16 (se é que há alguma relação entre os dois personagens).
O fato é que isso não tem nada a ver com divindade. A questão é política. O que há é uma batalha pelo poder. E a igreja usa seu poder e sua pretensa representação de Deus na terra para se dar bem, ampliando seu prestígio e seu patrimônio. Como faz há 2 mil anos. Não tem nada de novo nisso.
Ocorre que, como se nota, o Estado brasileiro não é laico (Montesquieu ainda não chegou ao Planalto). Deveria ser, mas não é. A Igreja católica ataca pelos dois lados. Sustenta uma banda dita progressista, com seus ícones de boa fé, e vai até o povo, impondo seus dogmas e seu poder, o que é aceito pela esquerda brasileira. A direita, porém, sabe que a Igreja sempre foi e será sua aliada; antes e depois de Ratzinger. E assim, as duas bandas da Igreja estão sempre no poder.
(Sugestão de pauta para uma mídia corajosa: o poder da Igreja católica nos tempos atuais. Em Brasília, uma catedral estabelece que ela é a única religião presente na Esplanada dos Ministérios; a igreja ocupa os melhores espaços das principais avenidas, W3 Norte e Sul, L2 Norte e Sul, onde montou templos e seus negócios de educação – as escolas; ela tem poder suficiente no Minicom para conseguir concessões de emissoras educativas e comunitárias, mesmo contra a lei. O plenário da Câmara dos Deputados tem, ao fundo, um crucifixo, símbolo maior da Igreja católica, lembrando aos parlamentares quem manda ali).
Quem ousaria dizer ‘não’?
Hoje, a Igreja católica é dona do maior latifúndio de rádios do país. Quase 600, no total. Possui rádios educativas, comerciais e até comunitárias. Só de rádios comunitárias, tem algo em torno de 300 concessões. Uma entidade especial foi criada dentro da CNBB (ícone intocável da esquerda brasileira) para usurpar o que pertence ao povo, a Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc). Isso de tomar as rádios comunitárias que pertencem ao povo é ilegal, é imoral, indecente, mas é fato.
A mesma CNBB se apresenta no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional como ‘representante da sociedade civil’. E é aplaudida por parte da esquerda por criticar o modelo de comunicação, o latifúndio da comunicação; exatamente o que ela tem de mais sagrado.
As intenções da Igreja são claras. E não são de hoje. Por exemplo, de 9 a 11 de junho de 2003, a ANCARC e a CNBB realizaram, no Santuário Maria de Schoenstatt, em Atibaia, São Paulo, o ‘1º Congresso Brasileiro de Radiodifusão Comunitária e Educativa’ e o ‘7º Encontro Nacional de Rádios Comunitárias’. O objetivo: ‘priorizar o rádio como instrumento de evangelização, entendendo que a notícia que fala da vida e de esperança é também evangelizadora’. Isto é, fazer nas rádios comunitárias aquilo que a lei proíbe.
Como a Igreja conseguiu as concessões, mesmo indo contra a lei? Graças ao seu imenso poder. Questionar isso? Como? Quem – esquerda ou direita – ousaria dizer ‘não’ à Igreja? Entende-se o medo. Afinal, dizer não à Igreja significa ser criticado nas paróquias, nas igrejas, por todo país. E assim – com estas ameaças aos governantes – ela vai aumentando seu patrimônio terreno e eletromagnético.
Omissão e inação
Ainda recentemente, dois pesquisadores – Venício Lima e Cristiano Lopes – apresentaram estudo comprovando uma verdade conhecida de quem atua na área: o Ministério das Comunicações e o Palácio do Planalto atuam sob influências políticas e religiosas. E fica por isso mesmo.
Por conta dessas e outras, o movimento das rádios comunitárias tem bem claro que o papel pregado na parede, a autorização oficial, não credencia a emissora como comunitária. É somente um papel concedido pelo Estado. Serve para segurar a repressão, mas não vale como comprovante de que a rádio seja decente. Algumas boas rádios, claro, têm esse papel na parede, outras boas rádios lutam por isso, mas elas, as boas rádios, sabem que isso não prova nada. Ou, pelo menos não prova o que deveria ser seu objetivo, que ela é comunitária.
Será que um dia – quem sabe, antes do Apocalipse – as poucas pessoas de boa vontade neste governo (uma dúzia?) conseguirão fazer com que o Estado reconheça o direito à comunicação de todo ser humano, e não apenas dos ricos? Ninguém crê nisso. Pelo andar bovino da carruagem em meio ao brejo, é ilusão esperar algo do governo Lula para as rádios comunitárias. Afinal, desde a posse ele tem feito tudo que é possível para tornar pior a situação. É paquidérmica a omissão e inação do governo diante do que ocorre no mundo cá fora, onde os viscondes e barões instalados no Palácio jamais ousariam pôr seus delicados pezinhos.
Ambição sem limites
É preciso reconhecer, porém, que o movimento nacional errou ao não investir na base, capacitando as rádios comunitárias, cristalizando junto ao povo o conceito de rádio comunitária, identificando as mobilizações mais honestas e denunciando as desonestas, as picaretárias. Infelizmente, alguns líderes não quiseram dar o saber e o poder ao povo. O movimento errou ao não denunciar e desqualificar, logo no início, a pretensão da Igreja católica de se apossar das rádios comunitárias; optando pelo silêncio, ou, o que é pior, em nome da jogatina política, em alguns momentos fazer parceria com entidades como a Ancarc, uma aberração na área. Errou, como muitos de boa intenção, ao acreditar que o governo Lula, mesmo com suas enrolações, fraquezas, burrices, grosserias, repressões, um dia iria fazer algo pelas rádios comunitárias. Por conta desses erros, proliferaram as picaretárias, nas mãos de empresários, espertalhões, igrejas, políticos – coisas que o que o movimento não aceita.
Felizmente, em contraponto a estas aberrações, aqui e ali pontuam rádios comunitárias de qualidade, construídas pelo povo, pela comunidade organizada, ensinando o que é comunicação popular, democracia, direito humano.
Errar, porém, é humano. Desumano, anti-cristão, é uma instituição fazer uso do seu poder e, apelando para argumentos cristãos, tomar para si o que pertence a todos. Se existe cristianismo, ele está bem longe destas instituições que se tornaram ricas e poderosas às custas do povo e ainda insistem na ampliação deste poder. Uma ambição sem limites. Em alguns lugares, liga-se o rádio ou a TV e só há pregações, missas, sermões, cultos. Ocupar a rádio comunitária é um crime que a história não esquecerá.
Zaratustra, filho alucinado de Nietzsche, se perguntaria: é Deus ou o Diabo quem ocupa as ondas do rádio e da TV?
Ó meu Deus, quem te fala é um ateu. /Responde por carta ou manda um email, /Telefona, manda um recado. /Vai, me diz, seja justo: /Da igreja e sua cobiça quem nos salva?
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Jornalista, escritor, autor de ‘Trilha apaixonada das rádios comunitárias’, diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF