Clinicamente morto. Nosso paciente é a mídia (conjunto de meios de comunicação), a intermediária entre sociedade e realidade.
Enquanto a realidade muda com velocidade cada vez maior, a sociedade brasileira oferece claros indícios de entorpecimento. Não se surpreende, não enxerga o insólito, não se importa, não se indigna nem se deixa convocar para coisa alguma. Só se mexe movida por lances passionais, condicionada há décadas pela estrutura narrativa dos folhetins televisivos.
Nossa mídia não discute a mídia e, com isto, descumpre sua obrigação maior de servir à sociedade porque a discussão sobre a mídia é essencial para definir os seus padrões de discernimento.
Preço das mudanças
Nossa sociedade participa das eleições porque é obrigada a votar, de outra forma abdicaria completamente da faculdade de questionar ou intervir. Prefere ser conduzida por narradores medíocres e tramas banais do que experimentar enredos diferenciados. Entusiasmou-se com a vitória de Barack Obama porque esta não se deu aqui, não precisará bancar o preço das mudanças.
Desde os tempos da autocensura não se vê tamanha letargia, tamanho tartufismo: a sociedade finge que precisa da mídia e a mídia finge que serve a sociedade. O resultado é esta geléia cívica baseada em meias verdades, meias mentiras e uma colossal hipocrisia.
Nossa mídia não media, enrola e se enrola. Como não se sente cobrada nem exigida, como se considera livre de responsabilidades e compromissos, ajeita-se a uma pauta sabidamente neutra, composta de ‘ondas’ rigorosamente inofensivas para vender a imagem de arauto da transformação.
Há cerca de um mês, o influente semanário Economist (edição de 23/10) colocou o Brasil na berlinda ao denunciar a existência de duas falhas na nossa mídia. Errou: são três. A omitida é mais importante: considerar-se acima do bem e do mal, desobrigada de discutir-se e prestar contas.
Crítica de mídia é tabu
A Folha tem, em média, doze colunas assinadas nas edições dos dias úteis, o Estadão e o Globo têm dez – são mais de trinta profissionais, recrutados entre os melhores, altamente remunerados e que, não obstante, resignam-se às imposições empresariais sobre o que podem ou não podem escrever. E escrever sobre mídia na grande imprensa é tabu. Trata-se do único setor da vida brasileira proibido de buscar excelência porque só pode fazê-lo na clandestinidade. Ou no circo.
O Economist identificou duas grandes falhas na mídia e na sociedade brasileira: a obrigatoriedade do diploma para o exercício profissional do jornalismo e a farta distribuição aos congressistas de concessões de radiodifusão.
Ao tratar do diploma nomeia os sindicalistas como os maiores interessados na reserva do mercado profissional. Errou novamente: a maior interessada em manter a obrigatoriedade do diploma é a própria indústria do diploma – as universidades privadas, nelas compreendidos seus donos, hoje milionários, e os corpos docente e discente, ingenuamente a seu serviço.
Mas quem sustenta esta pretensão é a própria mídia, que jamais tentou policiar efetivamente a qualidade do ensino superior privado, temerosa de perder seus anúncios. Apenas com os rankings anuais dos melhores e piores cursos não se corrige uma aberração destas proporções.
As empresas jornalísticas, aferradas à balela de que são as únicas autorizadas a empunhar a bandeira da liberdade de expressão, consideram a obrigatoriedade do diploma como um impedimento ao acesso à informação, mas não querem arriscar o seu faturamento.
O redator da Economist elogia a qualidade do jornalismo brasileiro (se comparado com o mexicano e argentino), mas não consegue perceber as nuances e sutilezas dos problemas que apontou. A questão não é linear – ser a favor ou contra o licenciamento de jornalistas ou a obrigatoriedade do diploma –, o simplismo aqui será sempre pernicioso, qualquer que seja a posição assumida.
A sociedade brasileira precisa de uma mídia capaz de manter-se como assunto de um debate nacional. Isso requer humildade, decência, transparência e, principalmente, espírito público.
Os mini Berlusconis
O redator do Economist acertou ao constatar que o maior defeito (the biggest flaw) da mídia brasileira é a concessão de canais de radiodifusão a parlamentares. Tem razão: é o pecado original, nele embutem-se todas as distorções e desvios que comprometem a mídia brasileira.
Mas os culpados não são esses ‘mini Berlusconis’, como os designa a revista. A mídia os aceita e convive com eles, legitima-os ao resignar-se à flagrante ilegalidade. Com exceção da Folha de S.Paulo, que há anos acompanha o aumento destas concessões.
Então, por que se cala o resto da mídia impressa? Porque mídia impressa e mídia eletrônica no Brasil não são entidades separadas, com interesses divergentes, estão interligadas, reforçam-se, fazem parte do mesmo sistema.
O senador José Sarney (PMDB-AP) é um desses ‘mini Berlusconis’: tem emissoras de rádio, TV e tem jornal. Em cada estado e região do território brasileiro há sub-Sarneys, mini-mini Berlusconis que nenhum governo teria a coragem de enfrentar.
O Economist está teoricamente certo, Na prática, seu diagnóstico é deletério porque ignora os desdobramentos do problema. Basta lembrar que em 25 de outubro de 2005, o Instituto Projor (mantenedor do projeto Observatório da Imprensa) entregou à Procuradoria Geral da República (PGR) um minucioso cruzamento de dados comprovando que mesmo integrantes da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI), encarregada de verificar as concessões, são concessionários de radiodifusão. A Procuradoria recebeu a contribuição, agradeceu, examinou o estudo ao longo de dois anos e… arquivou. Promete usá-lo oportunamente.
Quando? O Economist não sabe.
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Jornalista