Em processo de análise e processamento das contribuições recebidas por diversos representantes da sociedade brasileira, o Marco Civil da Internet é uma iniciativa de construção coletiva que reúne propostas de regras para garantir direitos, apontar responsabilidades e orientar a atuação do Estado na web.
Paulo Rená da Silva Santarém é o gestor desse projeto que abriu um amplo diálogo entre o Direito e a internet. Para Rená, que trabalha na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, o documento não é a panaceia do mundo da internet no Brasil, mas oferece um grande avanço. ‘Não conseguiremos resolver todos os problemas da internet, mas vamos certamente estabelecer os parâmetros em que o debate possa se desenvolver de forma a viabilizar esse diálogo’, acredita.
Até o final dessa semana será apresentado o relatório final da 2ª fase do debate aberto, e até o final de junho, a minuta será encaminhada ao Congresso Nacional. A expectativa é que o texto seja votado ainda esse ano.
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Em que fase da discussão está hoje o Marco Civil da Internet e quais são os próximos passos?
Paulo Rená – Estamos em processo de análise detalhada e estruturada das contribuições e mantemos o compromisso de, até o final do semestre, encaminhar um dos projetos de lei ao Congresso Nacional. Nós, da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL), temos duas atribuições: acompanhamento dos projetos que são de interesse do Executivo no Congresso e elaboração de normas a serem encaminhadas ao Executivo. No Ministério da Justiça, coordenamos o processo de captação e elaboração, mas ele ainda vai circular no âmbito do Governo. Somos uma espécie de antena para a sociedade e agora vamos decodificar essas informações para a proposta do Governo, conversar internamente e apresentar ao Congresso.
De que forma a sociedade brasileira participou da elaboração do marco civil? Quais canais foram utilizados?
P.R. – O número mais expressivo é o em relação às novas contribuições na parte de comentários: foram 1.168 sugestões nessa parte aberta da minuta, registradas entre 8 de abril e 30 de maio. Além dessas contribuições que chegaram via site do Marco Civil da Internet, monitoramos mensagens no Twitter e na rede Identica e tudo que saiu na web como artigos, posts e reportagens. Até o final da semana vamos apresentar o Relatório Final da 2ª fase do debate aberto e, até o final de junho, fecharemos internamente a minuta que vai para o Congresso. Nossa expectativa é que possa ser votado ainda esse ano.
Dois dos temas mais polêmicos dizem respeito à remoção de conteúdo e identificação de internautas. Qual a sua visão sobre esses pontos do texto?
P.R. – Além desses dois pontos, teve muita importância também a questão que diz respeito à responsabilidade dos provedores. Esses três temas tiveram mais destaque, apesar de nossa dedicação em fazer que outros temas, igualmente importantes, fossem mais debatidos. Um exemplo é a questão da educação para o uso na internet e da internet como ferramenta na educação. Considero que não houve debate suficiente nem bastantes contribuições vindas de pessoas e entidades envolvidas com educação a distância, por exemplo.
A proposta do Ministério era encontrar uma redação, não consensual, porque há interesses diversos, mas que possa agradar a todos os interesses, que permita a confluência das pretensões. Não adianta tomarmos uma decisão 100% contra qualquer registro, com total proibição, porque nem recebemos informações a respeito de como isso funcionaria. A ausência total de registro é inviável. A internet precisa de algum registro nem que seja para que site ao qual eu faça um questionamento me encaminhe uma resposta. Na comunicação entre meu computador e o site do Marco Civil, por exemplo, tem o registro do IP que está pedindo a informação para que a página seja aberta em minha tela. Isso, portanto, exige algum registro, mesmo que apenas durante a comunicação.
Na outra mão, o registro total, permanente, como uma obrigação que gere pena de prisão, também é irreal. Essa hiper-responsabilização com atribuições pesadíssimas em cima de quem está prestando um serviço inviabilizaria a internet. Entre uma coisa e outra há diversos tons de cinza. Estamos agora analisando as contribuições da sociedade, vendo as realidades que nos foram colocadas e vamos tomar decisão de governo. O momento de bater o martelo ainda não chegou e nosso maior interesse é divulgar o quanto antes essa decisão final, para que ela possa tramitar institucionalmente pelo Poder Legislativo.
Como o Ministério da Justiça recebeu as críticas feitas pelo Ministério Público e por delegados da polícia em relação aos prazos de guarda de logs de acesso pelos provedores e a obrigatoriedade de mandado judicial para obtenção dos dados do internauta?
P.R. – A ideia é não prejudicar uma investigação nem tratar todo mundo como culpado. A intenção é chegar a um texto que permita uma coisa e não incorra no abuso da outra. A participação da polícia federal traz exemplos práticos de dificuldades. O desafio sempre foi buscar um ponto comum que sirva a ambos os interesses, sem tentar resolver todos os problemas, porque o Marco Civil não é a panaceia do mundo da internet no Brasil, mas permite um diálogo.
Na imprevisibilidade que não podemos afastar vão acontecer casos que nem nós, o Secretário, a Fundação Getulio Vargas, delegados ou advogados da OAB pensamos. Esse tipo de situação vai aparecer diante de um juiz ou expressa em um contrato. A ideia é firmar um pacto social, um compromisso prevendo como vamos tratar essas situações no futuro.
Como não é possível, com esse marco regulatório, sanar todas as incertezas jurídicas, podemos dizer que o documento representa apenas uma das facetas no diálogo entre Direito e internet?
P.R. – Não vamos resolver todos os problemas desses temas, mas vamos certamente estabelecer os parâmetros em que o debate possa se desenvolver de forma a viabilizar esse diálogo entre Direito e internet. Queremos nos afastar, porém, da ideia de marco regulatório, um termo que surgiu com a preocupação sobre a questão da responsabilidade dos provedores, os intermediários na conexão à internet. Nesse sentido há mesmo uma visão regulatória, mas o marco civil foi além. Temos antes dessa perspectiva, uma visão de direitos fundamentais. Além disso, há as atribuições do Estado. Ou seja, qual o papel do Estado no desenvolvimento da internet como ferramenta social? Em que o marco civil pode colaborar?
Hoje, há uma pluralidade de decisões possíveis no contexto da Constituição que não foi pensada para a internet e não tem previsões minimamente concretas nesse mérito. A internet é viva e muito dinâmica, e tem um diferencial na forma como a informação circula. O Marco Civil pode atuar para fazer com que o Direito compreenda a internet e que a web possa se desenvolver em conformidade com as premissas do Direito, que, por sua vez, não diz respeito só à repressão. Pelo contrário, o Direito vem para garantir a liberdade. A ideia é que a internet possa contar com o apoio jurídico para garantir essas liberdades fundamentais.
O que o Marco Civil pode fazer, na prática, no caso de um contrato, por exemplo? Se for abusivo, na visão de um consumidor, o documento estabelecerá os parâmetros para o consumidor argumentar que um conteúdo é abusivo. Ou no caso de uma legislação futura, que venha a extrapolar limites das responsabilidades, possa ser readequada para uma forma que a sociedade considere justa. Ou ainda em uma decisão judicial, na qual um juiz, que não tem a obrigação de conhecer toda a amplitude da internet, possa tomar uma decisão com alguma tranquilidade, pois poderá se amparar no marco civil – que deverá ser usado também para cobrar, caso alguma decisão seja equivocada. Resumindo, o marco civil servirá como uma camada de interpretação, comum a todos, entre o Direito e a internet.