Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Discurso nacionalista, negócios nem tanto

No auge da sua crise de endividamento, as Organizações Globo começaram uma série de iniciativas visando transformar sua imagem. Foram debates, seminários, anúncios comerciais e muitas declarações a imprensa para provar que, especialmente a sua TV, é a quintessência da cultura nacional e guardiã da língua portuguesa.


A estratégia ofensiva-defensiva visava neutralizar as críticas que poderiam surgir a um eventual empréstimo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) feito em condições bastante vantajosas.


A operação bancária não foi realizada (por motivos que não cabem aqui detalhar), mas o discurso se manteve, incluindo, agora, a mitificação da imagem de Roberto Marinho e a reconstrução da história do jornalismo televisivo da Rede Globo.


Tudo isso visava preparar o ambiente para que a Globo pudesse abandonar sua estratégia malfadada de dominar as estruturas de produção e transmissão de informações, para se concentrar na produção de conteúdo.


Em outras palavras, o discurso nacionalista surgia justamente no momento em que a Globo vendia boa parte do seu capital para grandes grupos estrangeiros.


E a lei?


A Lei da TV a Cabo (nº 8977/95) determina um limite de 49% para a participação do capital estrangeiro nas operadoras de cabo (aquelas que detêm a rede física de transmissão). Ocorre que Globo negociou a venda da Net Serviços (a operadora do grupo) à Telmex, de propriedade do homem mais rico da América Latina, o mexicano Carlos Slim Helu.


Helu é dono, no Brasil, da empresa de telefonia celular Claro, da Embratel e da antiga AT&T Latin America. Faltava, contudo, uma rede de cabos que pudesse chegar à casa dos potenciais clientes a fim de oferecer telefonia fixa e internet banda larga. Sem isso, a Embratel ficava por demais vulnerável ao ataque das outras teles fixas (Telemar, Telefônica e Brasil Telecom).


A Net Serviços se encaixava como uma luva na estratégia do grupo mexicano, mas a proposta do senador Ney Suassuna (PMDB-PB) de retirar qualquer limite ao capital estrangeiro nas empresas de TV a cabo (igualando-as às teles fixas e celulares e às empresas de TV por assinatura via microondas e satélite) ainda tramita no Congresso e não há prazo para a sua aprovação.


Sendo assim, era necessário buscar algum ‘contorno’ para permitir que a Telmex pudesse assumir o controle da Net Serviços, a despeito do que diz a Lei da TV a Cabo.


Para superar os ‘limites’ da legislação foram contratados os mesmos advogados (Barbosa Müssnich e Sérgio Bermudes) que assessoraram o Banco Opportunity na compra da Brasil Telecom, que terminou retirando da direção da empresa os sócios Itália Telecom e fundos de pensão das estatais. O processo se transformou na maior batalha jurídica dos últimos anos.


Foi, então, criada uma empresa, denominada GB Empreendimentos e Participações (CNPJ 04.527.900/0001-42), que passou a deter 51% das ações ordinárias (com direito a voto) da Net Serviços.


A Telmex terá 37,5% das ações ordinárias da Net Serviços. Portanto, menos que os 49% determinados pela lei. Os restantes 11,5% estarão pulverizados no mercado acionário. Pelo menos por enquanto. Assim, a GB será a nova sócia majoritária da Net Serviços. Mas, quem é a GB?


Dos 51% das ações da GB na Net Serviços, 51% estarão com a Globo e 49% com a Telmex. O que corresponde, no capital total da Net Serviços, a 26,01% das ações ordinárias com a Globo e 24,99% com a Telmex.


Como a GB é a sócia majoritária da Net Serviços e os 26,01% da Globo na Net Serviços correspondem a 51% da GB, em tese a Globo cumpre o disposto na Lei da TV a Cabo porque mantém consigo o controle da Net Serviços, por meio do controle da GB.


Mas a Telmex passa a controlar diretamente 37,5% das ações da Net Serviços e indiretamente, através da GB, mais 24,99%. Ou seja, ainda que não tenha formalmente o controle da Net Serviços, a Telmex fica com 62,49% das ações ordinárias (com direito a voto) da Net Serviços. E a Globo apenas com 24,99%.


Na prática, a Net Serviços passa a ser mexicana, sem precisar alterar a lei 8977. Basta, para isso, acrescentar um contrato particular entre Globo e Telmex que garanta a gestão mexicana do cotidiano da empresa. Quando a proibição de controle estrangeiro no cabo for suprimida no Congresso Nacional, basta a Globo vender 2% do capital da GB à Telmex e o controle de fato vira de direito.


Em tempo, 100% das ações preferenciais (sem direito a voto) da GB também pertencem à Telmex.


Como este processo de reestruturação da Net Serviços é legal, ainda que questionável, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) acabou aprovando-o através do Ato 48245, de 6 de dezembro de 2004.


Mais capital estrangeiro


Mas não foi apenas a Net Serviços que foi vendida.


A Globo decidiu, também, diminuir sua participação na empresa de TV via satélite Sky Brasil. A Globo ficou com 28% das ações ordinárias. E Rupert Murdoch com o restante. Murdoch é o proprietário da Fox, da Sky e acaba de adquirir a DirecTV para fundi-la com sua plataforma de TV via satélite. Assim, Murdoch passa a deter (Sky + DirecTV) cerca de 95% do mercado brasileiro de TV por assinatura via satélite.


Neste mesmo processo de concentração na produção de conteúdo, a Globo vendeu sua participação na antiga empresa de telefonia celular Maxitel à Italia Telecom, que a fundiu a outras empresas e criou a TIM.


Ainda para o capital estrangeiro a Globo vendeu suas participações na operadora de pager e call center Teletrim, na operadora de telecom corporativo Vicom (à Comsat) e na NEC do Brasil (tomada das mãos de Mário Garnero na gestão de Antonio Carlos Magalhães como ministro das Comunicações e agora vendida de volta aos japoneses da matriz).


A Globo também parece ter desistido da criação de parques temáticos (depois de ter comprado um imenso terreno na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro para esta finalidade), assim como transformou sua antiga gravadora Som Livre em uma loja virtual e mera empacotadora de sucessos alheios (no formato ‘pau de sebo’) e encerrou o setor de distribuição da Globo Filmes (entregando esta tarefa para majors como a Columbia Pictures, de propriedade do grupo Sony).


Recentemente, a Globo vendeu sua parte da loja virtual (canal de televisão, website e revista) Shoptime às Lojas Americanas. Agora, Shoptime, Americanas e Submarino pertencem ao mesmo controlador, a GP Participações (de propriedade de três dos raros brasileiros que possuem patrimônio superior a US$ 1 bilhão: Jorge Paulo Lehman, Carlos Alberto Sicupira, Marcel Telles).


Cultura nacional?


A Globo mudou e hoje é menor, mais concentrada naquele que é o seu grande potencial: a produção de conteúdo. Isso é legítimo.O que não parece correto é a forma como este processo se deu.


Ao mesmo tempo em que alienava boa parte de seu patrimônio para o capital estrangeiro (inclusive permitindo concentrações prejudiciais ao mercado e à própria circulação de informações, como no caso Sky + DirecTV), a Globo alardeava ser a guardiã da cultura nacional.


Se é a favor da cultura nacional, por que a Globo é contra um sistema de TV digital que multiplique o número de canais existentes, permitindo o surgimento de várias outras emissoras (e não apenas comerciais)?


Se é a favor da cultura nacional, por que na Net Brasil não é transmitida a programação do canal Rá-Tim-Bum (Cultura), enquanto por lá circulam Cartoon Network e Boomerang (Time Warner), Disney e Jetix (Disney), Nickelodeon (Viacom) e Discovery Kids (Discovery)?


Por que os assinantes de outras TVs a cabo (que não a NET Brasil) não podem desfrutar das modalidades esportivas transmitidas pelo canal SportTV (GloboSat)? Afinal, NET Brasil e GloboSat são empresas diferentes e a venda exclusiva da programação de uma à outra fere o direito econômico.


Se existe uma preocupação genuína com o desenvolvimento nacional, por que tantas empresas estratégicas para as telecomunicações brasileiras foram vendidas ao capital estrangeiro?


Essas e muitas outras respostas ainda pairam no ar sem que a imprensa brasileira tenha dado a devida divulgação ao debate.

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Jornalista (UFF), mestre em Comunicação (UFRJ), coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) e integrante do Coletivo Intervozes