Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

É preciso lei nova que a assegure

Há certa apreensão ante decisões judiciais que vêm sendo tomadas cerceando a liberdade de imprensa, impondo censura velada, após a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em julgamento de Ação de Cumprimento de Preceito Fundamental, julgou não acolhida pelo ordenamento constitucional vigente a Lei Federal 5.250/67, que dispunha sobre a liberdade de manifestação do pensamento e da informação. Alguns juristas afirmam, dentre eles a professora Leila Maria Bittencourt, que:

‘Conflitos entre liberdade de imprensa e vida privada são resolvidos em concreto, sob critérios objetivos, e não subjetivos de quem julga. Decisões judiciais são vinculadas à lei e à Constituição. Ordem jurídica brasileira é suficiente na solução de conflitos entre liberdade de Imprensa e direito à vida privada. Aplicação correta do art. 21 do Código Civil não constitui censura prévia.’

Sem sombra de dúvida, subsistia, como um penduricalho do período ditatorial, a Lei 5.250, de 09/02/67. Sua incompatibilidade com a nova ordem constitucional, vigente a partir de 1988, era patente. Destarte, foi de muita felicidade a propositura da Ação de Cumprimento de Preceito Fundamental pelo PDT, sob o patrocínio do deputado Miro Teixeira, advogado e jornalista, de insuspeitadas formação e convicção democráticas. Outras iniciativas são esperadas no sentido de total remoção do entulho autoritário, epíteto que se emprestou à legislação incompatível com a Carta de 1988, de que serve de exemplo a ainda vigente Lei de Segurança Nacional.

Elogiável, também, seu acolhimento pelo Supremo Tribunal Federal, quando julgou totalmente procedente o pedido abrigado na ação referida. Vale destacar os seguintes excertos da conclusão do julgado:

‘Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma essa, `de eficácia plena e de aplicabilidade imediata´, conforme classificação de José Afonso da Silva. `Norma de pronta aplicação´, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta. Procedência da ação. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967′ (grifos nossos).

Anote-se, desde logo, que entendeu o STF serem aplicáveis para a solução das questões oriundas da atividade de imprensa, as normas do direito comum, exemplificando com os Códigos Civil, Penal, Processual Civil e Processual Penal. Não declarou, em momento algum, que fossem os aludidos códigos as únicas regras das quais deverão se valer os operadores do direito, referindo-se, em primeiro lugar, à legislação comum. Quais seriam, no entanto, tais comandos legais? Já existem eles em nosso acervo legislativo? São necessários para a solução dos conflitos? Que natureza devem ter?

As normas hoje contidas nos Códigos Civil e Penal e em suas correspondentes disposições codificadas de natureza adjetiva não dizem respeito a regras assecuratórias do exercício da liberdade de imprensa; cuidam dos eventuais abusos dessa liberdade, dando instrumentos aos prejudicados para cobrar suas consequências, seja na ordem civil, seja na esfera penal. É o de que tratam os artigos 21 do Código Civil e aqueloutros do Código Penal, quando tipifica os crimes contra a honra, contra a violação da intimidade ou da privacidade. Destarte, no que tange à repressão aos abusos eventualmente cometidos sobre o pálio da liberdade de imprensa, aí, sim, não há mais necessidade de qualquer legislação. Até mesmo o direito de resposta foi erigido pelo STF em condição autônoma para a propositura de ação reivindicando-o dos ofensores.

Mas, o que dizer da proteção ao exercício da atividade jornalística, de suas prerrogativas, do resguardo da integridade física e intelectual de seus agentes, dos atentados à circulação de livros e periódicos, da censura velada ou expressa, da preservação do sigilo das fontes? Há normas que de tais percalços protejam a imprensa? É forçoso concluir que não!

Quem e como decidir o conflito?

Essa é a legislação de que carecemos e cuja necessidade foi declarada pela própria decisão do STF. O ministro Ayres de Brito, em seu relatório e voto, não deixou de alertar:

‘Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte; … … independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica, composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição).

Não necessita a sistemática jurídica nacional de novas regras cerceadoras da atividade de imprensa. Precisa de normas protetoras. Assim, afastem-se, desde logo, os sucessivos intentos do Poder Executivo de por freio à mídia em geral, através da criação de ‘Conselhos’ ou de ‘Agências Reguladoras’, ainda que utilizando a previsão de regulamentação do chamado Conselho de Comunicação Social, prevista no art. 224 da Carta Maior. Tais órgãos, criados e dirigidos de cima para baixo, reforçariam o cerceio à liberdade, submetendo-a a obstáculos repelidos pelo art. 5º, incisos IV, IX e XIV da Constituição da República.

Constate-se que a Carta Magna, quando enunciou o direito de resposta, a proteção à honra, à privacidade e à intimidade, criou, em seu próprio texto, os mecanismos para coibir os abusos, instituindo o direito de formulação da réplica e de obtenção de indenizações pelos danos morais ou materiais produzidos. É o que se lê da íntegra dos incisos V e X do mencionado art. 5º.

Não se declarou porém, quando ofendidos os incisos IV, IX e XIV, que meios ou recompensas teriam os prejudicados para por cobro aos ataques sofridos. Tais dispositivos, portanto, carecem de regulamentação em lei, pois, embora autoaplicáveis por princípio, podem se tornar inócuos ou sujeitos a interpretações subjetivas dos aplicadores do direito.

E não é esdrúxula tal regulamentação. O sistema jurídico nacional já a contempla. Analise-se o princípio contido no art. 133 da Constituição: ‘O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.’

Que seria dessa indispensabilidade e dessa inviolabilidade não houvesse a completá-la a Lei Federal instituidora do Estatuto dos Advogados? As prerrogativas seriam ditadas pela jurisprudência? Em cada caso concreto, o juiz seria chamado a dizer se o ato ofendeu ou não a indispensabilidade ou a inviolabilidade do causídico? E se o ofensor for o próprio juiz, como amiúde sói acontecer? Quem decidiria o conflito?

Um exemplo clássico de autorregulação

O princípio da liberdade de imprensa não conta com a proteção legislativa que merece. Apenas foi declarado na Constituição, mas não se criaram mecanismos de defesa em face das ofensas granjeadas, nem se instituíram punições adequadas aos agressores. A faina jornalística se desdobra em várias atividades. Há o colunista, o comentarista, o repórter, o editor, o redator-chefe, dentre outros. Os campos de atuação também se espraiam: do jornalismo de diversão, social, de lazer, das reportagens de rua até o jornalismo investigativo, que exige de seu ator coragem pessoal, desprendimento, discernimento e, sobretudo, proteção e garantia, não só para sua integridade física, como para seus arquivos e fontes. Não há lei que tal assegure. O suprimento jurisprudencial é insuficiente e perigoso e não foi sequer recomendado pelo STF para a solução dos conflitos advindos das relações decorrentes da imprensa. Ao contrário, o eminente ministro relator da ACPF 130, em recentíssima entrevista, alerta:

‘O Poder Judiciário está se comportando de forma saudosista. Não como um todo. Há nichos que parecem laborar no passado, quando a Lei 5.204 estava em vigor, a mal-afamada Lei de Imprensa. A Lei de Imprensa, autoritária, consagradora de um projeto de poder e inimiga da liberdade de imprensa. Ela foi sepultada de ponta a ponta, não sobrou nada, pedra sobre pedra. E uma parte do Judiciário parece não entender isso’ (O Globo, 27/11/2010, pág. 12).

Não é demais aduzir que é inóspita a tendência que se manifesta em alguns setores, sobretudo judiciais, de dar à jurisprudência e aos precedentes força tão grande, equivalente ou até superior à lei. Tal procedimento teria legitimidade onde vigora o sistema da common law, sendo imprópria onde se adota o statute law.

O voto do ministro relator, no julgamento da ACPF 130, ressaltou a importância da autorregulação da imprensa. Diz o texto pretoriano:

‘Autorregulação e regulação social da atividade de imprensa. É da lógica encampada pela nossa Constituição de 1988 a autorregulação da imprensa como mecanismo de permanente ajuste de limites de sua liberdade ao sentir-pensar da sociedade civil.’

Ora, a autorregulação, em nosso sistema jurídico, passa, necessariamente, pela edição de lei. É preciso, porém, que o projeto de regulação exsurja da própria categoria, construído em debates de seus órgãos de representação, como a ABI – Associação Brasileira de Imprensa, sindicatos patronais e de empregados e outros, sem interferência do Poder Constituído. Tome-se como exemplo a história da Ordem dos Advogados do Brasil. Imaginada pelo Instituto dos Advogados, veio a se converter em realidade no governo Vargas, quando o chefe do Poder Executivo encomendou a um grupo de juristas, capitaneados por Levy Carneiro, a elaboração de seu estatuto, convertido no Decreto 22.478, de 20.02.1933. Confira-se que o mandatário nacional da época não impingiu à categoria dos advogados, de cima para baixo, um projeto regulatório; nem o fez através de seus juristas prediletos. Posteriormente, já por iniciativa da própria Ordem, o antigo regulamento foi substituído pela Lei 4.215, de 27.04.63, cujo projeto também foi elaborado pela entidade e levado ao Congresso Nacional. Sobrevindo a ditadura militar de 1964, resistiu a Ordem, bravamente, a qualquer tentativa de modificação de seu estatuto basilar, temendo a desqualificação do Congresso existente, acuado e desfalcado por força das cassações de mandatos. Restaurada a democracia, preparou a Ordem um novo projeto estatutário, contido na atual Lei 8.906/94, que rege nossa categoria profissional. É um exemplo clássico de autorregulação que deve ser adotado em prol da permanente garantia da liberdade de imprensa.

A prática da liberdade de informação

Por todos os motivos que foram expostos, não podemos concordar com aqueles que proclamam a desnecessidade de legislação nova, baseando-nos nas seguintes conclusões:

1. O artigo 21 do Código Civil não é suficiente para assegurar a liberdade de imprensa, pois serve apenas a coibir seus eventuais abusos; de igual forma, as disposições do Código Penal, que tipificam as condutas do eventual abuso dessa liberdade, não cuidando dos ataques que a própria imprensa pode sofrer;

2. Os princípios constitucionais previstos no art. 5º, incisos IV, IX e XIV, apenas enunciam o primado da liberdade de imprensa, de produção intelectual e de livre exercício da profissão e acesso à informação, não anunciando, desde logo, sanções em caso de violação, como o faz a Carta Magna em relação aos incisos V e X, que tratam do direito de resposta e da ofensa à honra e intimidade;

3. Medidas permanentes assecuratórias do livre exercício da liberdade de imprensa e das prerrogativas profissionais, intelectuais e físicas dos jornalistas são indispensáveis, já que os comandos constitucionais não trazem instrumentos que coíbam os ataques em seu desfavor;

4. Tais medidas devem ser imaginadas em projeto de autoria dos próprios exercentes da atividade jornalística, no exercício da autorregulação, nunca em projetos de cunho autoritário, que culminam por trazer novas restrições à prática da liberdade de informação.

******

Advogado, Petrópolis, RJ