A morte da jornalista Marcela Coutinho é notícia velha. Velha de três semanas. Na noite de 28 de novembro, uma segunda-feira, ela foi covardemente asfixiada. Deixou a vida sem dar o último suspiro. Puseram-lhe um travesseiro na cara.
Marcela estava numa cama de hospital. Tinha sido baleada, mas sobrevivera. Foi então que sua arqui-inimiga, Tereza Cristina Velmont, uma burguesa empetecada e ociosa, conseguiu entrar no quarto da repórter e consumou seu vil propósito. Disfarçada com uma peruca loura, a criminosa se fez passar por “uma amiga de São Paulo”, ficou sozinha com a vítima e, então, entregou-se fogosamente à prática do homicídio.
Nos salões
Foi um espetáculo inesquecível e brega, um dos mais brutais e mais novelescos atentados contra a imprensa já perpetrados por uma grã-fina ao longo de toda a história da televisão brasileira. Isso mesmo: Marcela Coutinho era uma personagem da novela das 9, Fina estampa. Interpretada – e bem – pela atriz Susana Pires, tinha os olhos oblíquos, ainda que oceânicos, com os quais mentia, chantageava, semeava intrigas e invadia privacidades. Abria um sorriso curto, lambuzado de cinismo, e descarregava seu fel na primeira página. Verme a devorar a carne imaterial das celebridades, era a síntese da escória mais desclassificada, a mais baixa das subespécies humanas.
O castigo que a matou, porém, foi desproporcionalmente cruel. Agora, talvez para vingar-se de seu fim torturante, o espectro maligno da personagem nos espreita a cada capítulo, dentro e fora da tela. Dentro de Fina estampa, seu fantasma ameaça incriminar a assassina. Fora da novela, enxovalha a reputação da imprensa. Parece piada – e é piada, posto que a trama de Aguinaldo Silva sacoleja como um dramalhão cômico –, mas também é um problema. Um problema tão incômodo que, mesmo velha de três semanas, a notícia dessa morte por asfixia, por falta de ar, merece nossa atenção e nosso luto. Antes de qualquer outra providência, Marcela merece um desagravo, no mesmo tom e no mesmo vocabulário com que foi ofendida pelo crime que a despachou da trama:
“Adeus, Marcela. Que as incompreensões das elites fúteis e parasitárias, encarnadas e escarradas na figura hirta, ímpia e sádica de Tereza Cristina, não a alcancem em seu passeio aos infernos. Você foi uma vigarista inominável, isso não se discute, mas quem a matou é mais vigarista ainda. Receba, então, o reconhecimento deste seu colega de ofício, que, modestamente, não aprovaria seus métodos imundos, mas não se conforma com a pena que lhe deram”.
Pronto. Fim da homenagem. Fim das novelices. Sigamos adiante. Prestadas as honras póstumas à infeliz que morreu no exercício (imoral) da profissão, esta coluna agora assume um tom menos irônico, se é que ainda dá tempo, e lança uma interrogação mais séria: será que a Marcela de Fina estampa corresponde à visão que a sociedade, na média, tem dos profissionais de imprensa? Eis o núcleo de nosso problema. Claro, não é a primeira vez que um jornalista faz as vezes de cafajeste numa obra de ficção. Lembremos Renato Mendes (Fábio Assunção), editor da fictícia revista Fama, de Celebridade.
No teatro, não tem sido diferente. Amado Ribeiro, o repórter policial da peça O beijo no asfalto, de Nélson Rodrigues, dedica todo o seu talento à invencionice mais caluniosa – e ainda se diverte. Não é só. No início do século passado, em 1919, ninguém menos que o alemão Max Weber, inventor da sociologia, fez uma palestra famosa, “A política como vocação”, em que afirmou que “os poderosos da Terra” recebem os jornalistas em seus salões para, em seguida, chamá-los de “esses lixeiros da imprensa”.
Mortes impunes
Até hoje, bem a propósito, os políticos se comprazem em bajular pela frente e difamar pelas costas os editores de jornal. Marcela Coutinho não é, pois, uma exceção na literatura. Ela é a regra. Não é sempre, porém, que um autor faz com que outra personagem, esta cheia de poder e de dinheiro, mate uma repórter com tanto gosto e tanto requinte. Esse gesto é crucial para a compreensão de nosso problema. Ele revela com total nitidez um desejo profundo dos “poderosos da Terra”, sejam eles traficantes, mafiosos, generais, políticos ou líderes religiosos corruptos: o desejo de dar cabo daqueles que investigam seus negócios mal explicados.
Por isso, enfim, esta homenagem. Não pela vileza da biografia de Marcela, mas pela torpeza do gesto que a sufocou e que nos lembra, na linguagem histriônica e sentimental das novelas de TV, os assassinatos impunes de jornalistas pelas vielas da nossa dita vida real.
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[Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM]