Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Contra a ética do varejo

A polêmica sobre a natureza e a intensidade das carícias sob um certo edredom, numa certa madrugada, ao longo da 12ª edição do Big Brother Brasil, da Rede Globo, perdeu força com o depoimento à polícia da participante supostamente vítima de estupro. Sem se lembrar bem do que ocorrera na noite anterior, num quarto escuro vigiado por câmeras, a moça disse que tudo fora consentido. Mas a discussão não saiu do ar – especialmente entre internautas mais exaltados, via redes sociais. Justificam-se manifestações tão apaixonadas? “Eu jamais defenderia o fim dos reality shows, mas esta é uma oportunidade de discutir os limites desse tipo de programa”, avalia o filósofo e professor da Universidade de São Paulo Renato Janine Ribeiro.

Mestre pela Universidade Paris 1 em 1973 e doutor pela USP em 1984 – ano-título do romance de George Orwell que imortalizou o termo “Grande Irmão”, que dá nome ao programa – Janine Ribeiro concebeu e apresentou uma série de televisão sobre Ética na TV Futura, depois exibida na Globo, e notabilizou-se, em diversos artigos, pela crítica de produtos dos meios de comunicação de massa.

Na entrevista a seguir ele questiona a exploração da intimidade como artifício para alavancar audiência, especula se o direito individual à privacidade é renunciável e repudia o recurso à embriaguez para elevar a temperatura entre participantes de uma competição – aspecto contra o qual se manifestara, na quarta-feira, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-guardião do “padrão Globo de qualidade” e pai de Boninho, diretor do BBB: “Não me atrai esse conceito que eles pegaram da Holanda, em que ficam dando bebida alcoólica e promovendo festinhas”.

Para Renato Janine Ribeiro, é preciso tirar o olho da fechadura dos pequenos escândalos para vislumbrar o que está por trás dessa controvertida fórmula de entretenimento televisivo. “Não adianta abrir mão da ética no atacado e depois exigir um preceito ético num detalhe.”

Por que o sr. diz que reality shows são “não éticos no atacado”?

Renato Janine Ribeiro – Boa parte explora um tipo de paixão humana que não é positiva. Eles estimulam a vontade de aparecer, de se exibir, com uma sexualidade carregada. As pessoas são incitadas por esse tipo de programa a ficar cada vez mais interesseiras e fazer uso da intimidade para subir na vida. A sexualidade, algo do mundo íntimo, ligada a um aprofundamento da relação com o outro, passa a ser vista como simples instrumento de conquista. Não é um programa que contribua de alguma forma para as pessoas serem melhores, mais felizes ou mais inteiras. Nesse sentido, entrar na discussão do que chamei de “varejo”, os escândalos e “injustiças” do programa, é acreditar que a regra geral é boa. Não adianta abrir mão da ética no atacado e depois exigir um preceito ético num detalhe.

Em que sentido?

R.J.R. – A expressão de (filósofo prussiano Immanuel) Kant de que o ser humano deve ser considerado fim e não meio é totalmente violada nesse tipo de programa. E, embora essa formulação valha muito mais como ideal do que como realidade, aqui o próprio ideal – mesmo que de difícil consecução – é abandonado. O outro passa a ser simplesmente um instrumento, a ser seduzido e conquistado. É por isso que existe todo um preparo dos candidatos para ir ao programa, que consiste em malhar, ficar sarado, aprender a manipular o sentimento dos outros, formar um casal para capturar a atenção do público. Os romances se repetem artificialmente.

Como determinar o que é ou não ético em um programa de televisão?

R.J.R. – A discussão parece aquela boneca russa que quando a gente abre tem outra dentro. No caso em questão, o rapaz é acusado de um estupro que segundo a própria moça ele não teria cometido. Nós poderíamos discutir, então, se foi correto ou não expulsá-lo do programa. Mas, a meu ver, isso é o varejo, um debate de pouco interesse, pois significa antes aceitar a regra geral do programa. E quando você vai para um programa desses, que exibe a sua intimidade e no qual vai usá-la como moeda para conquistar alguém ou alguma coisa, corre o risco de abrir mão da dignidade.

Entre as diversas críticas que surgiram na blogosfera, uma argumentava que, embora alguém que coloque uma webcam em sua casa e explore a própria intimidade não possa ser questionado legalmente, se a exploração é feita por terceiros então há um problema. O sr. concorda?

R.J.R. – O argumento de que o direito à privacidade seria irrenunciável é bom. Existem direitos dos quais não se pode abrir mão. Por exemplo, não posso entender que a liberdade que tenho sobre mim mesmo me autorize a me escravizar. Ou a autorizar outra pessoa a me matar – isso continua sendo um crime. Da mesma forma, existe um elemento da dignidade que não deveria ser violado. Um exemplo são os campeonatos de arremesso de anões (o da Flórida, nos EUA, foi proibido em 1989). Os anões estavam de acordo com o jogo. Mas por quê? Certamente por necessidade. Se você admitir que uma sociedade possa acuar as pessoas até a fome e, nessa situação, elas aceitem situações degradantes para divertir outras, está admitindo o sadismo e a crueldade como coisas normais.

Há aspectos positivos nos reality shows?

R.J.R. – Houve pelo menos um bom momento na história do BBB, quando o (atual deputado federal pelo PSOL) Jean Wyllys tomou conta dele. Ele é uma pessoa muito inteligente, tinha uma visão interessante do que fazer lá dentro e houve um enfrentamento entre o preconceito e o homossexualismo. Isso foi positivo.

E outros realityshows, como Mulheres Ricas, Casa dos Artistas, etc.?

R.J.R. – Não sei dizer, porque não os assisti. Em termos gerais, eu diria que um programa que coloca a intimidade como mercadoria é complicado e preocupante. Nos primeiros BBBs, aparentemente, você tinha outros critérios de seleção, uma diversidade maior de pessoas. Se pegar o reality da Globo que o precedeu, No Limite, quem ganhou foi uma cabeleireira gorda (Elaine Cristina Cosmo de Melo). Hoje, parece ter mudado o critério pelo qual as pessoas são selecionadas para participar. No formato atual, uma Elaine dificilmente ganharia. Ela nem entraria no jogo, provavelmente.

Antes de afastar o participante acusado de estupro, o diretor do programa, Boninho, saiu em defesa dele, afirmando que estaria sendo vítima de racismo. Há uma banalização da denúncia de preconceito racial no Brasil?

R.J.R. – O que acontece é o seguinte: toda sociedade tem uma linguagem. A linguagem, 50, 60 anos atrás, seria em grande parte religiosa. Os militares deram o golpe em nome da “civilização ocidental e cristã”. Eles às vezes falavam em democracia, mas muito mais em civilização ocidental e cristã. Ninguém hoje, apesar de sermos um país de maioria católica, teria coragem de mencionar o “cristão” porque isso significaria excluir judeus, cultos afro-brasileiros, budistas… Então, hoje nós temos uma linguagem que passa pela igualdade de gênero, das pessoas, pelo antirracismo. E qualquer discussão hoje vai incluir essa linguagem. Não sei se há banalização – ela é simplesmente a linguagem do nosso tempo. Se sobre o episódio em questão no BBB alguém evocasse “uma conduta ofensiva a Deus”, dificilmente o argumento teria repercussão. Ao passo que a questão do racismo ou do gênero acaba sendo mais eficaz. Isso tem um lado positivo pois significa a vitória de um discurso um pouco melhor. Outra coisa é verificar se ele se aplica ao caso.

O comportamento dos internautas que criticaram o programa nas redes sociais também teve desvios. Chegou a ser veiculado um texto sobre o assunto falsamente atribuído ao escritor Luís Fernando Verissimo…

R.J.R. – Você não pode entrar numa discussão ética e entender que o fim justifique os meios – que, para denunciar um erro, um texto com a grife do Veríssimo seja bom. Aliás, é algo que me intriga na internet. Há um texto atribuído a (escritor argentino Jorge Luis) Borges que é até interessante. Mas a maior parte deles é indigente. O (jornalista Arnaldo) Jabor também é vítima disso e os chama de textos de “sentimentos fáceis”. O que me intriga é o seguinte: por que certos textos precisam ser publicados com autoria alheia? E por que as pessoas têm tanta dificuldade em identificar as finger prints do autor que costumam ler e gostar? Elas nem notam! E é curioso que haja algo neles coincidente com os reality shows. Se nesses programas a questão é “aparecer, ser prestigiado, repercutir na mídia”, o mesmo ocorre nesses textos, em que a argumentação não é tão importante quanto a falsa autoria.

Os fatos da semana levantaram um debate sobre o consentimento nas relações sexuais. Como se define o que é ético ou não nesse terreno?

R.J.R. – É muito difícil. O que está presente na legislação hoje é o princípio liberal de que a vontade do indivíduo é soberana no que diz respeito a sua vida pessoal. O problema é que quando se lida com a sexualidade a questão da vontade é muito complexa. Tudo depende do contexto e é decidido a posteriori. A Suécia tem uma das legislações mais duras do mundo em relação ao estupro e o resultado disso é que os índices desse tipo de crime lá são relativamente altos. Uma pessoa lá, depois da relação sexual, pode voltar atrás da decisão. Foi o que ocorreu com (ativista e criador do Wikileaks Julian) Assange (acusado de estupro por uma mulher que inicialmente havia consentido em se relacionar com ele). A sexualidade lida com a dimensão do desejo, não da vontade. A vontade é consciente, quase racional, e tem a ver com a dimensão do ego. Já o desejo é algo que pode aparecer inclusive contrariando o que a vontade diz. A nossa legislação sobre o tema parece ter uma contradição e uma impossibilidade. A contradição é: por um lado, tudo foi remetido ao mundo do privado, se sou homossexual, se quero participar de uma orgia ou um encontro sadomasoquista, nada disso é ilícito. O que é correto. Por outro lado, como a questão passa a ser de vontade, fica muito difícil saber em que isso consiste. E os fatos tornam-se muito difíceis de se apurar: é palavra contra palavra.

A ambiguidade da situação de consentimento sexual não foi agravada pelo fato de que os integrantes do programa ingeriram álcool?

R.J.R. – Isso é um grande problema. Especialmente porque temos hoje toda uma sociedade – e a própria emissora – fazendo campanha contra a embriaguez. Mesmo nas novelas, se você for ver os princípios éticos que elas sustentam, que de alguma forma estão modulando a ética neste país, atacando crimes de ódio, etc. e tal, nota que há um conflito. Está claro que a bebedeira promovida no BBB tem o objetivo justamente de provocar atos sexuais como o que resultou nessa polêmica toda.

O culto ao hedonismo e ao exibicionismo, por parte dos integrantes, e o estímulo ao voyeurismo, por parte do público, são eticamente justificáveis?

R.J.R. – Não sou contra o hedonismo como busca de prazer e mesmo o exibicionismo e o voyeurismo têm seu lugar, na experiência humana. Um voyeurismo discreto entre pessoas que estão de acordo pode ser muito interessante e estimulante. O complicado é isso em rede nacional. Pois passa a ser uma espécie de recomendação. E, como eu disse antes, se abrirmos mão do ideal kantiano de ver o ser humano como fim e não como meio, acabou. O outro vira um mero objeto, um meio para se ganhar, aparecer, tornar-se alguém de sucesso. Eu jamais defenderia a proibição desses programas, mas o que ocorreu acaba sendo uma oportunidade de se discutir seus limites.