Dois de fevereiro é dia de Iemanjá. Salvador para para reverenciar a rainha do mar. Mas neste 2 de fevereiro foi diferente. A cidade literalmente parou para fugir de uma suposta onda de violência manifestada por arrastões em diversos pontos da cidade, o comércio de rua dispensou seus funcionários mais cedo e fechou as portas em plena tarde, shopping centers encerraram seu funcionamento antes do anoitecer, escolas e faculdades suspenderam suas atividades.
Encastelados, usuários das redes sociais anunciavam: “Arrastão na Lapa!”, “Evitem passar pela Avenida Paralela!” e, para comprovar, fotos e vídeos postados a cada minuto mostravam as ruas da cidade vazias ou pequenos grupos de pessoas correndo. Volta e meia surgia um depoimento de alguém que pouco antes conseguira escapar ileso de um arrastão ou tentativa de assalto. A hastag #grevepmba chegou a ocupar o primeiro lugar no Trending Topics nacional do Twitter. A soterópolis vivia, sem dúvida, em estado caótico.
Apesar de parte da corporação da Polícia Militar estar em estado de greve desde a noite de 31 de janeiro, uma sensação de esquizofrenia midiática tomou o leitor, que procurou nas páginas dos principais jornais e sites noticiosos informações mais precisas sobre o que estava ocorrendo. Poucas ou nenhuma palavra a respeito. Durante a madrugada anterior, quatro agências bancárias haviam sido atacadas, nenhum ferido, nenhum furto. Ao final da tarde, alguns veículos começaram a noticiar a “onda de boataria” que apavorou a população e fez com que o governador do estado pedisse reforço da Força de Segurança Nacional e do Exército.
Ainda assim, os registros policiais do dia demonstram a disparidade das informações: o número de homicídios, quatro, foi menor do que em outras quintas-feiras do mês anterior (só no dia 12 de janeiro haviam sido registrados 11 casos), assim como o número de veículos roubados, sete (em 19 de janeiro foram 21 registros e, na quinta-feira seguinte, 18). E, diferente das semanas anteriores, no dois de fevereiro não houve tentativas de homicídio ou furtos a coletivos registrados. A soterópolis vivia um dia comum.
Tratamento diferenciado dos fatos
Fez-se a dúvida. A greve existe, é real e ocorre desde a última terça-feira, apesar de ter sido declarada ilegal pela Justiça e de abarcar apenas parte da corporação. A estratégia da PM baiana de declarar greve às vésperas de eventos que reúnem milhares de pessoas e movimentam financeiramente a cidade não é nova e tem sido recorrente. Embora nos movimentos anteriores os policiais preferissem ficar aquartelados e deixar a cidade sem policiamento, enquanto este ano as notícias demonstraram que a estratégia foi gerar o pânico, através de ações como trancar as principais vias da cidade com ônibus “tomados por homens armados” e espalhar boatos. O que chama a atenção aqui, contudo, é a ação da mídia, tanto dos veículos jornalísticos, quanto, principalmente, das redes sociais.
É preciso cuidado ao observar a situação pelos olhos da mídia, qualquer que seja ela, porque além de existirem diversos interesses político-partidários por trás desta agitação em pleno ano eleitoral, que não são o ponto principal da questão aqui, existe também um histórico da imprensa baiana em tentar gerar tumultos. Em 1919, quando os oposicionistas do governo seabrista perceberam que perderiam a eleição, qual foi a estratégia adotada e idealizada pelos jornais? Insuflar os coronéis do interior e dar início a uma “guerra sertaneja”, sobre a qual até hoje não se sabe quanto havia de realidade e quanto de criação. A população da capital ficou em pânico com as manchetes dos impressos de que tropas de sertanejos invadiriam a capital, o comércio fechou as portas e o governo pediu uma intervenção federal. A situação só se acalmou com a chegada de tropas do Exército. Ao ler os jornais de oposição e situação nos dois meses em que o movimento perdurou, mais uma vez a sensação de duas cidades distintas.
Mais recentemente, em janeiro de 2002, parte da corporação da PM entrou em greve durante dois dias e permaneceu aquartelada, sob ameaça de parar durante o carnaval. Seis meses antes, em julho de 2001, uma greve havia paralisado a cidade durante vários dias, provocando ondas de saques e arrastões por falta de policiamento, o que deixou a população apreensiva. A mídia televisiva deu tratamentos completamente diferenciados aos fatos: na Rede Bahia, aliada do então governador, a paralisação só foi noticiada após o desfecho das negociações e apenas como uma “ameaça de greve contornada pelo estado”; já na Band, emissora fortemente vinculada às transmissões do carnaval e diretamente interessada no assunto, a notícia foi divulgada desde o primeiro momento, com diversas matérias informativas e até um editorial. Novamente, duas capitais eram apresentadas aos telespectadores.
A tragédia de 1971
Sem a pretensão de minimizar os transtornos causados por uma greve da Polícia Militar em qualquer situação ou local, em tempo de redes sociais – usadas como veículo de informação – é preciso saber ponderar sobre o que se lê e avaliar a subjetividade da informação recebida porque a maioria publica informações que vivenciou ou que ouviu de pessoas próximas. A maioria das informações que circula nesses canais não é filtrada de modo algum, não passa por verificação ou qualquer técnica de apuração jornalística (até porque, se hoje, no Brasil, não se exige diploma nem para trabalhar em jornal, o que se pode exigir dos usuários de redes sociais?). Entretanto, são consumidas como notícias e replicadas pelos usuários indiscriminadamente. Quando o fato é grave, como a paralisação da PM em Salvador, a distribuição é quase viral.
As redes sociais atingem, em questão de segundos, milhares de pessoas, provocam mobilizações, orientam (ou desorientam) multidões. Há décadas, o boca-a-boca fazia movimentos surgirem do nada, mas logo se observava o que era real e o que não passava de boataria. Em 1971, na inauguração do anel superior do Estádio da Fonte Nova, em Salvador, o boato é tido por muitos como um dos motivos possíveis da tragédia que, segundo números oficiais, deixou dois mortos e dois mil feridos. A edificação havia sido projetada para “balançar” ou seja, para se adequar ao movimento do público de modo natural absorvendo os impactos. Sem saber disso, com o estádio superlotado, alguém gritou “Está balançando, vai cair!” e o pânico se espalhou entre a multidão. Algumas pessoas se jogaram lá de cima e outras foram pisoteadas pela multidão que tentava sair do local rapidamente.
Agora, com Twitter, Facebook e outras mídias instantâneas, por via das dúvidas, não custa lembrar que caldo de galinha e uma pulguinha atrás da orelha não fazem mal a ninguém (com a colaboração do jornalista baiano Gabriel Guimarães).
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[Ana Spannenberg é jornalista, mestre em Comunicação e Culturas Contemporâneas (UFBA), doutora em Sociologia (UFBA) e professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia]