Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lições de um processo em andamento

A aprovação pela Assembleia Legislativa do Ceará, em outubro de 2010, de um “Projeto de Indicação” recomendando ao governador a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS), apesar de não acolhida detonou uma onda de reações em torno das políticas de comunicação no país. A primeira, foi a homogênea repulsa que a recomendação recebeu por parte da grande mídia regional e nacional. Por outro lado, a iniciativa recolocou na pauta pública um tema fundamental, isto é, a criação dos CECS.

A criação de conselhos de comunicação, no âmbito nacional, estadual, distrital e municipal “como instâncias de formulação, deliberação e monitoramento de políticas de comunicações no país”, haviasido uma das propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009. Todavia, 21 anos antes, a Constituição de 1988 (CF-88) já determinava em seu artigo 224:

Artigo 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo [Capítulo V, Da Comunicação Social; do Título VIII, Da Ordem Social], o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.

A iniciativa cearense fez com que fossem lembradas as 10 (dez) constituições estaduais e a Lei Orgânica do Distrito Federal (LODF) que, ao se adaptarem à CF-88 no final dos anos 1980 e início dos 90, determinam a criação de conselhos estaduais de comunicação. Sem mencionar outros 5 (cinco) estados – inclusive o próprio Ceará – onde, apesar de não previstos nas respectivas constituições, já existiam (ou existiram) iniciativas para criação dos CECS (ver, neste Observatório, “Conselhos Estaduais de Comunicação: Onde estamos e para onde vamos”).

O caso do Distrito Federal

Nesse contexto, um grupo de antigos militantes pela democratização da comunicação do Distrito Federal, ainda antes do resultado das eleições de 2010, avaliou que, no caso de vitória do candidato apoiado pela aliança democrático-popular, finalmente deveria haver condições políticas de se retomar o processo de regulamentação do artigo 261 da LODF que prevê a criação do CECS-DF.

Esse processo havia sido iniciado, por óbvio, na própria inclusão da norma na LODF. Logo após sua aprovação, em junho de 1993, por iniciativa do deputado distrital Wasny de Roure (PT-DF), foi apresentado à Câmara Legislativa um projeto regulamentando o artigo 261. Paralelamente, o então candidato a governador Cristóvam Buarque (PT-DF, hoje PDT-DF) se comprometeu publicamente, em debate promovido pelo Sindicato dos Jornalistas, a apoiar a criação do CECS-DF. No seu governo, uma comissão foi criada pelo GDF para propor um projeto que tramitou na CLDF, mas nunca chegou à votação no plenário e acabou arquivado em 2003. Decorridos, então, mais de 17 anos, o CECS-DF não havia sido criado (ver, no OI, “Conselhos de Comunicação: Sopro de ar puro no DF”).

Confirmada a vitória de Agnelo Queiróz, o grupo de antigos militantes decidiu organizar um movimento com o objetivo específicode retomar a velha luta pela regulamentação do artigo 261 da LODF. Como o próprio nome estava a indicar, o movimento deixaria de existir no momento mesmo em que o CECS-DF se tornasse realidade. Constitui-se, então, o MPC – Movimento Pró-Criação do CECS-DF, em evento na CLDF, realizado em 3 de fevereiro de 2011.

O manifesto de criação do MPC foi originalmente subscrito por mais de oitenta entidades e personalidades e o evento de seu lançamento contou com a participação do secretário de Cultura, representantes da secretaria de Publicidade e das Mulheres, além de entidades e movimentos sociais do DF (ver aqui).

Em todosos contatos que conseguiu fazer com diferentes instancias do GDF – inclusive a secretaria de Comunicação – e com deputados distritais, o MPC encontrou simpatia pela ideia de regulamentação do artigo 261.

Logo surgiu, no entanto, uma novidade: ao contrário do que se acreditava até então, prevaleceu o parecer de juristas vinculados ao GDF e externos a ele, de que a iniciativa para criação do CECS-DF era exclusiva do Poder Executivo e deveria, portanto, partir de um projeto encaminhado pelo governador à CLDF. Um eventual projeto de iniciativa parlamentar, além de inócuo, seria fatalmente vetado por conter vício de origem.

De fato, desde a Emenda n. 44 de 2005, o inciso IV, do § 1º, do Artigo 71 da LODF reza:

Art. 71. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara Legislativa, ao Governador do Distrito Federal e, nos termos do art. 84, IV, ao Tribunal de Contas do Distrito Federal, assim como aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica.

§ 1º Compete privativamente ao Governador do Distrito Federal a iniciativa das leis que disponham sobre:

(…)

IV – criação, estruturação, reestruturação, desmembramento, extinção, incorporação, fusão e atribuições das Secretarias de Estado do Distrito Federal, Órgãos e entidades da administração pública (Redação dada pela Emenda nº 44 de 2005 à LODF)

Confiando na correção dessa interpretação, o MPC optou por concentrar seus esforços na elaboração de uma minuta de projetoque fosse aceita pelo GDF e por ele encaminhada a CLDF.

O indispensável debate público – aberto, plural e democrático – em torno do eventual projetoaconteceria na CLDF, não só entre os(as) deputados(as) mas, sobretudo, por meio de audiências para as quais seriam convidadas todas as entidades e movimentos que historicamente envolvidos na luta pela democratização da comunicação no Distrito Federal.

Uma minuta de projetofoi de fato elaborada em colaboração com entidades e setores do GDF (ver aqui). No entanto, para nossa surpresa, o MPC não conseguiu entregá-la formalmente ao governador nem ao seu secretário de Governo. Depois de alguns meses de tentativas frustradas, optou-se por protocolar formalmente um ofício dirigido ao governador no Palácio do Buriti (o que foi feito no dia 13 de julho de 2011) encaminhando a minuta de projeto. A expectativa é que o ofício e a minuta fossem distribuídos, como de praxe, para os setores diretamente envolvidos, a começar, por óbvio, pela secretaria de Comunicação.

Oito meses depois do protocolo, o MPC não recebeu qualquer retorno do ofício dirigido ao governador. Ademais, as informações que obteve indicam que o ofício e a minuta do projetonão foram sequer distribuídos internamente no GDF, como deveriam ser. Ao contrário, estão parados em alguma gaveta da Secretaria de Governo, desde julho de 2011.

Quais lições podem ser extraídas desse processo?

O pressuposto do MPC era de que o novo governo do campo popular-democrático necessariamente teria vontade e condições políticas para promover – duas décadas depois – a regulamentação do artigo 261 da LODF de 1993.

Estava enganado.

Como já acontecera quase 20 anos antes, ao tempo do governo de Cristóvam Buarque, poderosos interesses impedem os governos do Distrito Federal de cumprir a LODF e instituir um Conselho que, como dezenas de outros em áreas de direitos fundamentais, seria apenas mais um órgão de “assessoramento do Poder Executivo na formulação da política regional de comunicação social”.

Na verdade, esses poderosos interesses não paralisam apenas o GDF. De todos os estados brasileiros, quase 24 anos após a promulgação da CF88, apenas a Bahia criou um CECS (ver “Conselhos Estaduais de Comunicação: a Bahia inaugura uma nova etapa”). E o Conselho de Comunicação Social, instituído pelo artigo 224 da CF88, como se sabe, funcionou durante apenas quatro anos e desde dezembro de 2006 está desativado (ver, neste Observatório, “Conselho de Comunicação Social: Cinco anos de ilegalidade”).

No GDF, tudo o que se acena hoje para os movimentos e entidades envolvidos na democratização da comunicação é a realização de um seminário sobre políticas públicas de comunicação. Adiado pela terceira vez, promete-se agora sua realização no final de junho de 2012. Vale dizer: quando estiver decorrido mais de um terço do tempo de seu mandato (18 meses de um total de 48), o governo democrático-popular do DF realizaria um seminário para iniciar o debate sobre suas políticas de comunicação, incluindo eventualmente a elaboração de um projeto para regulamentar o artigo 261 da LODF.

As mudanças virão das ruas

Em julho passado, analisando a forma como os principais grupos de mídia brasileiros reagiram ao escândalo envolvendo o grupo News Corporation, na Inglaterra, escrevi em artigo, publicado originalmente na Agência Carta Maior (“Mídia: as mudanças virão das ruas”):

“A resposta a essas questões [rejeição sistemática à democratização do setor e recusa ao diálogo] talvez esteja no poder de factoque a grande mídia consegue articular em torno de si mesma. Seus interesses estão de tal forma imbricados com aqueles das oligarquias políticas e de setores empresariais, que permanecem intocáveis.”

No mesmo artigo, todavia, chamei atenção para outro aspecto do que vem acontecendo no nosso país.

“O que a grande mídia não consegue mais controlar é o aumento da consciência sobre a importância do direito à comunicação nas sociedades contemporâneas. A exemplo das explosões populares que tem ocorrido em outras partes do planeta, sintomas do fenômeno começam a ocorrer aqui mesmo na Terra de Santa Cruz, com a fundamental mediação tecnológica das TICs.

“Para além do entretenimento culturalmente arraigado – simbolizado pelas novelas e pelo futebol – cada dia que passa, aumenta o número de brasileiros que se dão conta do imenso poder que ainda está na mão daqueles que controlam a grande mídia e que, historicamente, sonega e esconde as vozes e os interesses de milhões de outros brasileiros.

“É o aumento dessa consciência que vem das ruas que explica as pequenas e importantes vitórias que a sociedade civil organizada começa finalmente a construir.”

O comportamento do GDF em relação às políticas públicas de comunicação obrigou o grupo de antigos militantes que criou o MPC a reavaliar sua estratégia de atuação. Apesar de continuar acreditando que o CECS-DF se constituiria num espaço fundamental para o processo de democratizar as comunicações, o MPC, em respeito ao apoio que recebeu de tantas entidades e personalidades, decidiu ir para as ruas.

Queremos somar nosso esforço àquele de sindicatos, entidades e movimentos sociais que trabalham tentando traduzir para o maior número possível de pessoas o que de fato significa o direito à comunicação e o quanto lutar por ele através de políticas públicas democráticas do setor pode mudar a vida das pessoas.

Inclusive, um dia, no Distrito Federal.

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[Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos (Editora Paulus, 2011)]