Muito antes de Demóstenes Torres vir ao mundo a prudência já recomendava que não podemos confiar em ninguém, que todos são suspeitos até prova em contrário. Se até o Demóstenes original, o grande orador grego, vendeu-se a um ministro da Macedônia de Alexandre, por que um orador goiano, amigo de bicheiro, haveria de ser diferente?
Certo, nem todo herói de hoje é o vilão de amanhã, mas a história está cheia de revertérios similares ao do nosso encachoeirado senador. O exemplo mais recente é William Mark Felt, o misterioso informante do Escândalo Watergate, que morreu herói em 2008 e acaba de ressuscitar vilão num livro do jornalista Max Holland.
Felt, o segundo na hierarquia do FBI em 1972, ganhou fama com o codinome Deep Throat (Garganta Profunda), ao qual, diga-se, jamais se acostumou. Leak: Why Mark Felt Became Deep Throat intitula-se o livro. Na língua do Demóstenes Torres, “Vazamento: Por que Mark Felt virou Garganta Profunda”. Lançado há três semanas pela University Press of Kansas (304 págs., US$ 19,77 na Amazon.com), não arranha só a reputação do informante, mas também de outros coadjuvantes do mais célebre caso de espionagem política ocorrido na América.
Trono vago
O escândalo está fazendo 40 anos. Entre maio e junho de 1972, durante a campanha presidencial que culminaria com a reeleição de Richard Nixon, em novembro, um grupo de cinco pessoas tentou fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta na sede do Comitê Nacional do Partido Democrata, no Complexo Watergate, em Washington. Na noite de 17 de junho, a quadrilha foi presa com a mão na botija. No Washington Post do dia seguinte o assalto ganhou a primeira página como um fait divers policial, logo transformado numa intrincada trama política envolvendo diretamente a Casa Branca.
Pelo menos quatro dos cinco espiões trabalhavam para a CIA, de resto proibida por lei de atuar dentro do país, jurisdição do FBI. Um acúmulo de abusos e desacertos, que, investigado à exaustão pela dupla de repórteres do Post Bob Woodward-Carl Bernstein, culminou com a renúncia de Nixon, em agosto de 1974. Deep Throat foi o fio de ariadne até o presidente, mas não o único informante secreto de Woodward, que conhecia Felt desde 1969 e só revelou sua verdadeira identidade depois que o próprio Felt o fizera, num artigo para a revista Vanity Fair, em 2005, na verdade escrito por John O’Connor, pois àquela altura Felt, com Alzheimer, não se lembrava de nada.
O filme Todos os Homens do Presidente mitificou além da conta a figura do informante que marcava encontros com Woodward numa garagem. Até lhe atribuiu um conselho, “Follow the money” (Siga o dinheiro), que virou mantra em investigações de casos de corrupção mundo afora e nunca saiu da boca de Deep Throat, foi invenção do roteirista William Goldman. Ao tirar a máscara, Felt afirmou que não se considerava um herói, mas um patriota que apenas tentara “ajudar” o país, proteger o FBI e evitar que abusos de poder ainda maiores pudessem afetar a reputação da presidência.
Bonito, nobre, mas pura bazófia, segundo Holland. Como na língua do Demóstenes Torres, garganta também é sinônimo de gabola e fanfarrão, o cognome dado a Felt ganhou, aos meus olhos, uma nova dimensão. Também o considerava um servidor público corajoso, desapegado ao cargo, mais fiel à sua consciência do que ao patrão que de forma decisiva ajudou a derrubar.
O patrão na mira de Felt, porém, não era, segundo Holland, o presidente Nixon, mas seu superior na hierarquia do FBI, L. Patrick Gray, interino no trono vagado por Hoover em maio de 1972. Felt cobiçava a direção do Bureau e teria agido o tempo todo com a intenção de detonar o chefe, demonstrando ao presidente que Gray não conseguia controlar seus subordinados. A queda de Nixon teria sido, portanto, um simples dano colateral.
Erro e acerto
No livro Secret Agenda, Jim Hougan acusou Felt de desviar o Post das pegadas da CIA, fornecendo a Woodward pistas e informações falsas. Com as atenções voltadas para o FBI, a participação da CIA no arrombamento do Comitê Democrata ficou em segundo plano. Pouco importa. Sobrou castigo para todos. Gray rodou da chefia, Felt não pegou seu lugar, os arrombadores foram presos, Nixon teve de entregar a rapadura e os democratas venceram as eleições presidenciais de 1976.
Não foi, para Felt, uma vitória de pirro. Afinal de contas, ele morreu como herói, ainda que de mentira ou por acidente como os personagens de Eddie Bracken e Dustin Hoffman nas comédias Hail a Conquering Hero e Hero. Seu maior feito voluntário foi manter secreta a identidade de Deep Throat durante três décadas e meia, driblando o assédio e a vigilância de agentes do FBI e jornalistas.
Edward Jay Epstein quase o entregou em julho de 1974, nas páginas da conservadora Commentary. Foi o primeiro a intuir que os vazamentos não visavam a Nixon e sim à direção do FBI, mas perdeu o rumo ao acreditar que Deep Throat era um compósito de informantes, não uma pessoa. Por isso desprezou a informação de que alguns procuradores acreditavam que a misteriosa fonte do Post fosse, “provavelmente, Mark W. Felt, Jr.”. Errou na grafia, mas acertou na pessoa; faltou correr atrás do suspeito. Ninguém correu.
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[Sérgio Augusto é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo]