São exatas 403 páginas com depoimentos, relatórios e acusações, o resultado de seis meses de investigação da CPI do Ecad – o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. A entidade responsável por arrecadar e distribuir direitos autorais no país é acusada de crimes de falsidade ideológica, apropriação indébita, agiotagem e cartel. Os senadores ainda recomendam uma reformulação profunda na Lei de Direitos Autorais. Segundo os senadores, os documentos e depoimentos “revelam, à exaustão, que a Assembleia-Geral do Ecad transformou-se em uma confraria de lesa cultura, cujas decisões, tomadas sem critérios e sem transparência, eliminam o elemento negocial na fixação de preços pela utilização dos direitos autorais”.
Serão indiciados Glória Braga, superintendente do Ecad, e outros 14 diretores de associações de direitos autorais. O Ecad fala em perseguição política. “O que difere o Ecad de qualquer outra organização é a exploração política que se faz”, disse a assessoria do órgão sobre o relatório. O Ecad, formado por nove associações de músicos, é o único órgão responsável por cobrar pela reprodução de músicas em qualquer ambiente – do YouTube a casamentos. É o Ecad que determina os preços cobrados e também quem recebe o dinheiro. Os senadores constataram irregularidades neste processo. Há dois meses, o Ecad chegou a cobrar blogs que incorporavam vídeos do YouTube. Depois, ficou provado que a cobrança era ilegal.
Outro ponto turvo é em relação à distribuição. O órgão arrecadou em 2011 R$ 411 milhões. Para quem foi este dinheiro? O Ecad distribui o valor baseado na amostragem: quem tocou mais recebe mais. Neste modelo, quem toca menos acaba não recebendo nada. O valor é dividido pelo órgão, que só paga a partir de um valor mínimo.
“Confraria do Ecad”
Em depoimento na CPI, o advogado especialista em direitos autorais Danillo Campello Queiroz disse que o acordo firmado com o Google Brasil por causa do YouTube rendeu ao Ecad “mais ou menos” R$ 850 mil. Desse valor, segundo ele, “o Ecad distribuiu 67 mil reais, alegando que o repertório que foi executado no YouTube não estaria identificado”. Em entrevista ao Link no ano passado, Mario Sergio Campos, gerente de arrecadação do Ecad, disse que os artistas que mais receberiam do Google Brasil seriam Justin Bieber, Lady Gaga e Rihanna.
O Ecad afirma que a distribuição de recursos cresceu 18% de 2010 para 2011. Nos últimos cinco anos, o aumento foi de 64%. “Foi esse resultado que despertou muitos interesses e por isso virou foco de atenção”, diz o comunicado da entidade. “É preciso atentar que o que está em jogo neste cenário é a luta pelo direito de receber o que os criadores entendem ser justo pelo uso de suas músicas. O pano de fundo dessa questão não é moral. É meramente econômico.”
Para a CPI, há necessidade de uma “profunda reforma no sistema de gestão coletiva de direitos autorais”. Os deputados também querem que o Ecad fique subordinado ao Ministério da Justiça. O relatório fala em “confraria do Ecad”, que “seria elogiável se não prejudicasse os titulares de direitos autorais e os usuários de músicas”. “A gestão coletiva no Brasil negligencia o fato de que os direitos autorais são bens imateriais, negociáveis no mercado. Ainda que guardem especificidades, os direitos autorais submetem-se às leis de defesa da concorrência e de proteção ao consumidor”, diz o texto.
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“Um Frankenstein, o Ecad”
Abaixo, a entrevista com o senador Randolfe Rodrigues (PSOL/AP).
A mudança defendida pela CPI é a mesma da reforma da Lei de Direitos Autorais?
Randolfe Rodrigues – Sim, nosso modelo coincide. Queremos primeiro a instituição de uma instância reguladora ligada ao executivo. Será a Secretaria do Direito Autoral, que deve estar vinculada ao Ministério da Justiça, e terá em seu âmbito a restauração do antigo Conselho Nacional de Direito Autoral. Ele terá representação tripartite, com governo, sociedade, autores e compositores. Pode ser que, nesses aspectos, nossa proposta coincida com a do governo. Se for, será ótimo.
Por que a atualização da lei é necessária?
R.R. – A atual (9.610/1998) é anacrônica. É uma lei dos anos 70, quando não havia internet e novas tecnologias. Hoje (quinta-feira, 26/4), eu estava com os músicos Leoni e Gustavo Anitelli, e ambos têm uma parceria para um projeto online em que o cidadão possa acessar letra de música, cifras para o violão. E isso é algo que não existiria com a atual lei. Ela não dialoga com essas realidades. É um arremedo de um tempo que o direito autoral hoje não reconhece mais com um momento da história nacional, os anos 90, em que um Frankenstein, o Ecad, passou a existir sem nenhuma fiscalização.
“Eles deviam responder aos argumentos”
O modelo de um órgão central para arrecadar e distribuir condiz com a internet?
R.R. – Não e é por isso que a lei tem de mudar. Por isso a nossa lei é a quinta pior do mundo, segundo a (federação) Consumers International. Não cabe a uma entidade o monopólio de arrecadação e distribuição. Podemos até manter o Ecad, mas ele precisa se limitar a arrecadar e distribuir. Não pode ser o único detentor de direitos.
Sem o Ecad, quem estabelecerá as regras sobre quem paga, quem recebe e os valores?
R.R. – A Secretaria de Direito Autoral, no Ministério da Justiça, e isso será submetido ao Conselho. É uma mudança profunda. O trabalho na secretaria será fiscalizado, tudo o que for arrecadado e distribuído será divulgado. Nós também propusemos o fim da arrecadação por amostragem. Isso, se de fato conseguirmos, vai dar fim ao jabá que é dado para as rádios.
O Ecad fala em exploração política. Vocês responderam?
R.R. – Nem eu nem o relator da CPI (senador Lindberg Farias, PT-RJ) somos candidatos nestas eleições. Não tem porque fazermos utilização eleitoral. Em vez de atacarem os argumentadores, eles deviam responder aos argumentos. O que nós constatamos é que, devido ao Ecad, o modelo de direito autoral existe no País hoje é antinacional, anacrônico e corrupto.
“Senti um comprometimento [da ministra]”
Os senadores acreditam que as recomendações do relatório serão seguidas?
R.R. – Existe um posicionamento para isso, tanto do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal, quanto da Procuradoria Geral da República. Parece que, pelo menos para o crime de cartel, está provado que o Ecad tem praticado.
É possível estabelecer datas para as mudanças?
R.R. – Espero que seja em breve. Por exemplo, apresentamos um projeto para modificação da Lei de Direitos Autorais, que é resultado da CPI. Estamos protocolando o projeto no Senado, e ele segue direto para apreciação como projeto de lei. Então espero que algumas mudanças aconteçam neste ano.
O projeto apresentado contraria a proposta de reforma do Ministério da Cultura? Houve alguma conversa?
R.R. – Vou emitir a minha opinião, que não é a da CPI. Fico pasmo com a omissão do Ministério da Cultura neste processo. O MinC deveria ter sido o primeiro a apoiar a CPI e acatar as recomendações. Mas, ao contrário disso, a ministra não manifesta uma posição clara de oposição a esse sistema do Ecad.
Isso atrapalha o andamento do projeto?
R.R. – Não acredito. Hoje fomos recebidos pela Ideli Salvatti (ministra das Relações Institucionais) e eu fiquei muito satisfeito com a manifestação dela. Senti um comprometimento. Ela chegou a dizer para nós que seria uma militante da ideia e da causa do relatório final.
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[Tatiana de Mello Dias, do suplemento “Link” do Estado de S.Paulo]