O compositor Raul Seixas morreu no dia 21 de agosto de 1989, aos 44 anos. Deixou canções que acabaram se tornando clássicas, pois hoje nos acostumamos a chamar de “clássicos” os produtos da indústria cultural, assim como se dizem “clássicos” aqueles jogos de futebol em que se enfrentam times famosos. Raul Seixas, de todo modo, não é mercadoria barata. Merece ser ouvido até hoje. Principalmente hoje. Seus refrões ressoam como fundo musical irônico da cena política nacional.
Um desses refrões a gente escuta em “Aluga-se”, em que ele propunha, como num discurso de candidato, sua bandeira mais que satírica: “A solução é alugar o Brasil”. Naqueles tempos, o roqueiro baiano criticava o que se chamava de “entreguismo”, dizendo que era hora de “dar lugar pros gringo entrar”. Agora, o termo “entreguismo” saiu de moda. A conversa é outra. Nos dias atuais, a letra de Raul é evocada por uma prática que virou febre: o aluguel de horários em emissoras de televisão. Por brasileiros mesmo, ao menos por enquanto.
Antes de descortinarmos os mistérios da locação das ondas eletromagnéticas, porém, seria recomendável, para benefício da clareza, uma breve recapitulação das regras jurídicas desconexas que transformaram o setor numa mistura de rock baiano, carnaval, privilégio e macumba. Depois cuidaremos do aluguel do Brasil.
Breve recapitulação
Como todos sabem (e quase todos fingem não saber), não há marco regulatório que discipline essa área no Brasil. O que existem são retalhos de leis engruvinhadas e decretos estrábicos, embaralhados num cipoal que, sem trocadilho, é a própria selva. Desde 1962 (data do Código Brasileiro de Telecomunicações), passando pelos rearranjos autoritários de 1967, até os improvisos e puxadinhos jurídicos que se amontoaram com o fim da ditadura, o espectro eletromagnético nacional é uma terra de ninguém. A Constituição de 1988 definiu as emissoras de rádio e de TV como serviço público que deveria estar a salvo de oligopólios e monopólios. Como nunca houve lei que regulamentasse as boas intenções constitucionais, até hoje a administração pública não tem uma medida numérica do que seja monopólio. Sem essa medida, não se consegue regular o setor. Além disso, a mistura de igrejas com emissoras é um festim pagão, sem regra alguma. Para complicar um pouco mais, autoridades públicas e parlamentares são acionistas ou donos ocultos de redes de rádio e televisão, nas quais eles mandam como coronéis eletrônicos.
Em resumo, o que ocorre no Brasil é incompatível com qualquer modelo democrático e seria considerado ilegal nos Estados Unidos, na Europa ou no Canadá. E aqui terminamos nossa breve recapitulação histórica – que só se faz necessária porque, embora todos a conheçam, quase todos fingem não saber. Sigamos adiante.
Um atalho que subverte
Há pouco mais de uma semana, o jornal Folha de S.Paulo, em reportagem de Julio Wiziack, noticiou que o governo federal prepara um decreto para tentar pôr ordem – um pouco, pelo menos – no caos. O ponto mais forte dos planos do Palácio estaria na limitação do aluguel de horários, de horas e horas seguidas, dentro da programação de várias emissoras e de várias redes de rádio e de televisão.
O leitor, que também é telespectador, sabe do que se trata. O mecanismo tem servido para pastores evangélicos comprarem faixas fixas da programação. De posse de seus horários, eles difundem suas religiões e angariam fiéis contribuintes. O negócio dá sinais de ser bem sustentável, e prospera. No mesmo filão estão essas telelojas de quinquilharias, que vendem panelas, tapetes, brincos, relógios e armários embutidos nos horários que também alugam na TV. Com grande sucesso.
Embora a plateia não proteste (quem nunca comprou pela TV um jogo de facas Ginsu ou uma cartela de meias Vivarina que atire a primeira pedra), é necessário que a prática seja interrompida, pois ela ofende o princípio legal (e ético) da concessão pública. É um atalho privado que subverte a concessão pública. Ao outorgar uma frequência de TV a uma empresa privada, credenciando-a a explorar comercialmente aquele canal (que é um bem público), o poder público a transforma em prestadora de serviço público. Para ser concessionária, a empresa deve atender a vários requisitos, que dão ao Estado a segurança de que ela saberá cumprir ao menos o que a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 221, exige das estações de rádio e televisão, de dar “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.
Raul Seixas se diverte
Ora, se essa empresa, após ganhar a concessão, aluga o seu horário, ela abre mão de exercer o controle sobre aquela faixa da programação e delega esse controle a um terceiro que nunca passou por uma avaliação do Estado para prestar esse serviço público. De seu lado, aquele que obtém o horário mediante o pagamento de um aluguel está usurpando uma concessão pública que jamais obteve pelas vias legais normais. Claro que há justificativas jurídicas para essa locação – há justificativas jurídicas para tudo –, mas que ela agride o princípio da concessão pública, por favor, isso é mais do que evidente.
Por isso, enfim, é necessário que o aluguel de TV acabe ou, pelo menos, seja muito mais limitado do que é. Por isso, também, por alguns dias, o projeto do governo até soou como boa notícia. Mas aí veio o ministro Paulo Bernardo (Comunicações), como este jornal noticiou na semana passada, e declarou que acabar com o aluguel de horário não está na agenda. Que pena. Que banho de água fria.
No Brasil, o espaço público é representado, mediado e muitas vezes contido pelo que se passa dentro das programações das redes de TV. Se elas podem ser alugadas assim, sem mais nem menos, estamos alugando o Brasil. Sem tirar nem pôr. O ministro não é maluco beleza, mas não acha ruim. E Raul Seixas se diverte.
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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM]