Na edição de quarta-feira [27/6], o Estado de S.Paulotrouxe uma notícia desalentadora sobre um assunto igualmente desalentador: “PT barra mudança na ‘Voz do Brasil’”. Um resumo: o Partido dos Trabalhadores jogou por terra a possibilidade de tornar um pouco flexível, só um pouco, o horário em que as emissoras de rádio são obrigadas a retransmitir o velho programa de propaganda dos Poderes da República. Como se diz, foi um banho de água fria, sem prejuízo do desalento, que normalmente é morno.
Recapitulemos. Na semana passada, o presidente da Câmara, Marco Maia, ele mesmo do Partido dos Trabalhadores, prometera que colocaria em votação o projeto que estende em três horas o horário de início da transmissão da Voz do Brasil, hoje fixado por lei na marca das 19 horas, pontualmente. Se aprovado o projeto, as emissoras poderiam iniciar a retransmissão entre 19 horas e 22 horas. A mudança seria bem pequena, é verdade, mas, ainda assim, seria um progresso. Seria – no futuro do pretérito. Apenas seria. Na terça-feira, o PT bloqueou a votação e esfriou as esperanças dos que acreditavam numa modestíssima flexibilização.
Haja paciência. Além de chato, o tema é velho, carcomido e decadente. Aliás, desde que foi instaurado, ainda na época do Estado Novo de Getúlio Vargas, na década de 30 do século passado, o programa só fez decair. Decaiu tanto que acabou virando o que é hoje, um sinônimo de desinteresse, de enfado, de fala inócua, monocórdia, vazia, ainda que pareça um ronco sonolento.
Novo regime
Há 70 anos, vamos admitir, o programa cumpriu uma função: a função de impor a voz, não do Brasil, mas do poder ditatorial que pretendia amarrar o imaginário nacional a partir da força bruta do Estado. Teria morrido com o rádio de válvulas, não fossem as regurgitações de arbítrio que culminaram no golpe de 1964 e na subsequente ditadura militar, investindo o governo federal, uma vez mais, da ilusão de que a sociedade deveria lhe prestar continência. Entre 1964 e 1985, a Voz viveu noites de relativo gozo autoritário. Depois disso, veio o abismo de descrédito de onde ainda hoje emite seus sinais cambaleantes. Nunca mais a Voz do Brasil inspirou medo. Nunca mais foi ouvida como portadora de alguma forma de verdade, nem mesmo oficial, ou de ameaça, por mínima que fosse.
O que temos agora é apenas essa modorra. A Voz – que não é do Brasil, mas do passado – figura na programação como um cadáver. Já não intimida, já não informa. Ela simplesmente jaz. Só não saiu de cena porque as autoridades se esqueceram de sepultá-la. Ou, para sermos precisos, porque as autoridades legislativas se recusam, com um apego obsessivo, a extinguir a obrigatoriedade que humilha diariamente as emissoras de rádio do País, forçando-as a repassar aos seus ouvintes um blá-blá-blá chapa-branca que ninguém mais leva a sério. Nem na brincadeira. A Voz do Brasil é uma piada velha que perdeu a graça, uma piada que a gente aprendeu a fazer de conta que não existe.
Mas ela existe. A despeito da indiferença de todos nós, ela está aí, como a querer provar que os genes forjados em ditaduras ainda interferem na comunicação pública da democracia brasileira. Por exigência básica da normalidade democrática, teríamos de suprimir a obrigatoriedade de transmissão desse programa. Seria o mínimo. Se quisesse, o governo federal, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, que rateiam entre si os 60 minutos diários da Voz, poderiam até mantê-lo no ar. Ele não é caro, não onera significativamente os cofres públicos – e prestar informação é dever do Estado. Mas, aí, o programa, que já não seria mais obrigatório, teria de deixar de ser propagandístico para ser informativo.
O caminho é possível. Lembremos que governos (o federal e vários dos estaduais), bem como as casas legislativas e até mesmo o Poder Judiciário dispõem de estações de rádio e televisão suficientes, sem falar dos seus sites na internet. Veículos para transmissão não faltariam. Quanto às emissoras comerciais, elas teriam o direito de transmitir o programa, na íntegra ou não, como bem entendessem, na hora que bem quisessem. Esse novo regime, sem nenhuma obrigatoriedade, seria um estímulo para a qualidade da velha Voz do Brasil e limparia o Estado brasileiro dessa chaga patética.
Atrás de votos
O fim da obrigatoriedade também nos ajudaria a sanar a inacreditável bagunça de fato e de direito que soterrou o sistema de rádio no Brasil. Como se sabe, hoje, por força de lei, todas as rádios devem veicular a Voz do Brasil às 19 horas. No entanto, algumas foram bafejadas por decisões judiciais discutíveis e precaríssimas que as dispensaram dessa pontualidade. A rádio Cultura FM de São Paulo – uma rádio pública, é bom lembrar – é uma das que obtiveram essa bênção na forma de liminar. Atualmente, ela só põe o programa obrigatório no ar quando já vai alta a madrugada. Não é difícil constatar que essa situação de incerteza jurídica gera desequilíbrios na competição comercial entre as emissoras, piorando ainda mais um ambiente que já era suficientemente ruim. A lei que impõe a obrigatoriedade não é respeitada nem mesmo pelo Judiciário.
Só quem leva a sério essa ideia truculenta e sem sentido – comunicacional, jurídico ou político – são certos (ou errados) deputados federais. Eles gostam de ouvir seus próprios nomes nas locuções embotadas da Voz do Brasil, onde aparecem como gostariam de aparecer. Autoritariamente, é verdade, mas… e daí? Esses parlamentares acreditam que a Voz existe para lhes dar votos. Pensam que ela presta serviços a eles, como se fosse uma extensão do horário eleitoral. E, claro, pensam que isso é legítimo.
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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM. Quando presidiu a Radiobrás, entre 2003 e 2007, tentou melhorar a qualidade do programa, que tinha de produzir por dever legal. Ao mesmo tempo, defendeu, publicamente (mas inutilmente), a flexibilização do horário em que A Voz do Brasil deve ser transmitida.]