Nas horas anteriores à votação (que não houve) do Marco Civil da Internet no Brasil (Projeto de Lei 2126 de 2011) no dia 11 de julho de 2012, uma nova redação foi introduzida para o artigo 15, caput, do projeto. O artigo 15 cuida da responsabilidade dos provedores de aplicações, como o YouTube e o Facebook, por conteúdo que hospedam. É de grande importância conhecermos as consequências dessa alteração, que teriam grande impacto social.
Começo por explicar as consequências. Na sequência discuto suas causas. Por fim, sugiro uma alternativa.
Privacidade e homofobia
Com a nova redação, o provedor não responde por não retirar do ar conteúdo que consista em séria violação de privacidade ou em prática de homofobia. Só está obrigado a fazê-lo após uma ordem judicial. Por exemplo, situações como a do jovem Tyler Clementi, nos EUA, estariam descobertas, tanto em relação à violação da privacidade, quanto à prática de homofobia. O provedor, aliás, não responde por essas situações mesmo que saiba, assumidamente, que hospeda tal conteúdo. Não responde mesmo que hospede o conteúdo por pura crueldade.
Direitos autorais e difamação
Por outro lado, o provedor pode responder caso não retire do ar, com celeridade, conteúdo que viole direitos autorais ou o direito à honra ou reputação. Em casos recentes envolvendo difamação, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o provedor deve retirar o conteúdo do ar em 24 horas. Deve fazê-lo sem sequer perquirir a natureza do conteúdo.
Em ambos os casos, a possibilidade ou mesmo a obrigação de que o provedor retire o conteúdo do ar em 24 horas sem perquirir-lhe a natureza produzirá os chamados chilling effects – a inibição do discurso público. Em outras palavras, tal obrigação empobrecerá o espaço público. Direitos autorais e assuntos relativos à reputação estão em permanente conflito com a liberdade de expressão.
Se o provedor simplesmente retirar o conteúdo do ar em 24 horas sem questionar-lhe a natureza, estará dando prioridade automática para os direitos autorais ou para a reputação em detrimento da liberdade de expressão.
Por que isto está acontecendo?
Durante o curso do processo, ficou evidente que o Marco Civil poderia servir para encobrir e permitir a difusão de práticas até mesmo de crimes como racismo. Isto porque simplesmente isentaria o provedor de aplicações de responsabilidade pela hospedagem de conteúdo em quaisquer casos, mesmo os mais atrozes. O relator, então, modificou o projeto para preservar as vítimas desses crimes. Não é que tenha aumentado a responsabilidade dos provedores de aplicações. Simplesmente deixou de diminuí-las.
De toda forma, a intenção do relator e dos autores do Marco Civil de preservar as vítimas de crime de racismo e pedofilia é absolutamente correta e uma grande evolução. Merece ser aplaudida e apoiada integralmente. Porém, ao mesmo tempo em que devemos aplaudir essa modificação, devemos também notar as incongruências da forma como foi feita. Tal forma gera os problemas, certamente não intencionais, que discutimos acima – de proteger os direitos autorais mesmo contra a liberdade de expressão e de não proteger a vida privada ou a liberdade sexual de sua violação.
As raízes do problema
Quais são as raízes do problema que discutimos acima? Vejamos a redação do artigo 15, caput:
“Art. 15. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e evitar a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
O artigo 15 isenta o provedor de responsabilidade civil, mas não mais o faz em relação à responsabilidade criminal. Isto gera consequências, não intencionais, tenho certeza, para a proteção dos direitos da personalidade. O que o artigo 15, no final das contas, está fazendo é dividir a proteção dos direitos da personalidade em dois grupos: de um lado, aqueles para os quais há crime; de outro, aqueles para os quais não há.
O projeto, em outras palavras, está dizendo:
“Proposição 1. ‘O provedor não responde pela violação da vida privada, da imagem, liberdade sexual e de outros direitos da personalidade para os quais não há crime, mesmo que saiba que armazena o conteúdo e mesmo que o faça por crueldade.’
Proposição 2. ‘Esta lei não regula difamação e racismo (ambos crimes envolvendo direitos da personalidade), bem como a violação de direitos autorais, ou outros crimes. Para todos estes valerá o direito em vigor’.”
Por exemplo, para difamação, como dissemos, vale o entendimento do STJ de que o provedor deve retirar do ar em 24horas, sem nem checar a natureza do conteúdo reclamado.
Os paradoxos do Marco Civil
O projeto, assim como fazia antes, continua a priorizar a liberdade de expressão sobre outros direitos da personalidade (Proposição 1) – agora com exceção da reputação, que o projeto priorizará em detrimento da liberdade de expressão. A priorização da liberdade de expressão sobre outros direitos da personalidade parece ser um ponto inflexível para o relator, apesar de, com todo o respeito, carecer de constitucionalidade. Ao mesmo tempo, porém, o projeto agora, involuntariamente, sujeita a liberdade de expressão a situações de abuso de direitos autorais (Proposição 2). O provedor, por temer ser responsabilizado, simplesmente retirará o conteúdo do ar, exatamente como hoje ocorre por razões econômicas. O mesmo vale para difamação. O que o Marco Civil está fazendo é simplesmente deixar de regular essas situações.
Interessantemente, por outro lado, ao afirmar que a intenção é “aumentar“ a responsabilidade do provedor em relação à prática de crimes, os autores do projeto transformam o Marco Civil em Marco Criminal. Vale dizer, o provedor não mais responde por ilícitos civis, mas deverá responder por ilícitos penais. Não é verdade, contudo, como vimos, que o Marco Civil aumente a responsabilidade dos provedores. Como dissemos, ele meramente sujeita essa responsabilidade ao direito já existente.
Mas a incongruência de pretender proteger somente os direitos da personalidade protegidos pelo direito criminal é bastante verdadeira. No processo civil, quando um juiz vai decidir se retira ou não do ar certo conteúdo que viola os direitos da personalidade, ele não necessariamente dá tratamento diferenciado para os direitos que não estão protegidos pelo direito criminal. O juiz não diz que não irá proteger esses direitos que tem tão somente natureza civil. Não diz que não existe fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação para direitos que têm meramente aspectos civis. Não diz que não há perigo na demora em relação a esses direitos.
Mas é isto o que faz o Marco Civil. É um profundo paradoxo, mas o Marco Civil não protege os direitos da personalidade de natureza civil!
Sugestão de um caminho alternativo
Caminho mais adequado (sugestão concreta de texto, enviada ao relator) seria não uma divisão entre direitos que estão ligados a provisões penais e aqueles que não estão, mas sim uma divisão entre, de um lado, Direitos da Personalidade e, de outro lado, Direitos Patrimoniais (como os Direitos Autorais).
a. Direitos da Personalidade. Para com os Direitos da Personalidade, sejam eles protegidos por dispositivos penais ou não, o provedor deve ter um dever de atuar com responsabilidade, examinando a natureza da violação alegada e agindo a partir de suas conclusões. Não deve priorizar seja a liberdade de expressão, seja a reputação ou a vida privada. Deve ponderá-las em igualdade de condições, pois todas são, igualmente, direitos da personalidade.
a.1. Obrigação de meios não de resultados. Não deve o provedor, contudo, responder simplesmente pelo erro em relação à natureza do conteúdo. O STJ hoje entende que o provedor que não remove o conteúdo em 24 horas se filia ao conteúdo — qualquer tenha sido o empenho do provedor em aferir a natureza do conteúdo. Não deve ser assim. Algumas situações são notoriamente difíceis. Por exemplo, alguns casos envolvendo difamação são hard cases. Se fosse o caso de responder simplesmente pelo erro, o provedor culminaria por meramente suprimir o conteúdo do ar, violando a liberdade de expressão. Toda decisão automática viola direitos de um lado ou de outro. O que o direito deve promover é a atuação reflexiva do provedor.
a.2. Dever de comunicação responsável. O provedor, em outras palavras, deve adotar uma atitude de ‘comunicação responsável’, que a jurisprudência internacional já reconhece como um dever em casos de difamação e caminha por reconhecer em casos de privacidade.
A responsabilidade do provedor deve ser pela ausência de atuação responsável a partir de critérios previstos em lei. Deve responder pelo descaso, pela negligência, pelo dar de ombros. Isto porque, dada a grande possibilidade de danos irreversíveis pela permanência do conteúdo na Internet nesses casos, não se pode esperar uma ordem judicial para atuação do provedor. O procedimento recomendado, então, nada tem a ver com o fato de o direito respectivo ser protegido por um dispositivo penal ou não. Tem a ver com o fato de que tal direito é um direito da personalidade.
b. Direitos Patrimoniais. Para os Direitos Patrimoniais, como os Direitos Autorais, porém, pode-se esperar uma ordem judicial — ou uma decisão de autoridade competente. Por exemplo, de Tribunais de Direitos Autorais, os países que os tem. Podemos incluir uma autoridade semelhante na reforma de nossa Lei de Direitos Autorais. Até que venha essa decisão, porém, deve prevalecer a liberdade de expressão.
Em outras palavras, a liberdade de expressão não deve prevalecer automaticamente em conflito com outros direitos da personalidade. Mas toda a dinâmica do direito processual civil denota que o perigo na demora atinge muito particularmente os direitos da personalidade – e em escala muito menor os direitos de natureza pecuniária, que podem esperar o que se chama de cognição diferida. Vale dizer, os direitos de natureza pecuniária podem esperar uma decisão judicial, pois podem esperar um procedimento mais delongado que o destinado aos direitos da personalidade.
Não se deve exigir dos provedores que ajam preliminarmente sobre os mesmos, sob pena de se sacrificar os direitos da personalidade em proveito de interesses econômicos. Estudos internacionais demonstram que, por medo de responder em relação à violação de direitos da propriedade intelectual, os provedores culminam por remover o conteúdo do ar na maioria dos casos, mesmo quando o uso do material pelo usuário é justo. Devemos combater esse problema, mas a redação atual do Marco Civil, como vimos, o promove.
Uma nota pessoal
Para concluir, devo dizer que estas têm sido, consistentemente, as sugestões deste professor desde o início dos debates. Lutei e continuarei lutando o bom combate, em favor do bom direito. Pressionei e continuarei pressionando os envolvidos nessa direção, pois entendo ser a causa dos Direitos da Personalidade a causa mais justa que se pode defender. Busquei e buscarei envolver outras organizações que defendem os interesses da sociedade.
O que não quer dizer que não apoio o projeto em um plano mais amplo. Muito pelo contrário. Fico sinceramente triste que o Marco Civil tenha sido temporariamente paralisado e desejo muito sucesso a toda a equipe em encontrar caminhos viáveis e balanceados na interpretação do que é o conteúdo constitucional do direito à liberdade de expressão.
Caso isto seja feito, serei o mais árduo defensor deste projeto, de imensa relevância para a sociedade brasileira. É precisamente porque o Marco Civil é tão relevante e pioneiro que precisamos encontrar caminhos ponderados na interpretação dos princípios que guiarão nossas vidas neste século que já se adentra a passos largos.
Esclarecimento
Quando me refiro a direitos de autor como direitos patrimoniais, obviamente estou me referindo aos direitos patrimoniais de autor — não aos direitos morais de autor. Pirataria, por exemplo, envolve direitos patrimoniais. O mero upload de um vídeo musical para o Youtube sem autorização, por exemplo, envolve direitos patrimoniais. Claro, há situações fronteiriças envolvendo a interseção entre direitos morais de autor e a liberdade de expressão. É, por exemplo, o caso da modificação da obra, ou de sua utilização em paródias, em situações de ‘user generated content’. Para estas, a solução acima quanto à divisão entre direitos morais e direitos patrimoniais pode gerar discussões e demandar alterações no texto por mim sugerido. Ou talvez não. Talvez se possa entender que, em casos envolvendo direitos morais de autor, o provedor deve apreciar o conteúdo com responsabilidade e agir antes de uma ordem judicial. Ambos são caminhos possíveis e em nada invalidam o argumento desta nota.
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[Marcelo Thompson é professor pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong]