Até que ponto você é livre para usar a internet? Essa questão está em jogo no projeto do Marco Civil da Internet, que teve sua votação adiada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados mês passado. O texto define direitos e deveres dos usuários, e tem como ponto central o conceito de “neutralidade de rede”.
Por esse conceito, as operadoras de telecomunicações devem tratar do mesmo jeito todo o tipo de informação que trafega por suas redes. Não podem, por exemplo, beneficiar um provedor de conteúdo em detrimento de outro. Ou limitar o uso do serviço por alguns de seus clientes.
A questão, à primeira vista, é simples. Se a operadora vende conexão, não pode interferir em conteúdo. Pelo momento em que vive o mercado, porém, não é simples assim. A internet surgiu fora do mundo das telecomunicações. O conceito de rede de pacotes, essencial para o funcionamento da rede, e o protocolo de internet (IP, na sigla em inglês) nasceram de pesquisas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, e se desenvolveram nas redes acadêmicas de comunicação. A própria World Wide Web foi criada pelo físico britânico Tim Berners-Lee na Centro Europeu para Pesquisa Nucler (Cern), em Genebra.
A internet nasceu e se desenvolveu como uma rede distribuída, resistente ao erro e ao largo do mundo das telecomunicações. Mas acontece que, nas últimas duas décadas, a internet engoliu o mundo das telecomunicações. A tecnologia que nasceu para o tráfego de dados hoje é responsável por transportar telefonemas, vídeo, dados e serviços.
Com a mudança rápida do mercado, o tráfego tem crescido exponencialmente, muito mais do que o faturamento das empresas ou sua capacidade de investir. E as saídas que as operadoras vislumbram, como limitar os clientes que gastam a maior parte da capacidade da rede ou cobrar dos provedores de conteúdo que geram mais tráfego, não seriam permitidas se o texto passar como está.
“A resistência das operadoras já atrasou a votação do Marco Civil”, afirmou o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do projeto. “Esperamos retomar a votação no começo de novembro, depois do segundo turno das eleições.” Ele defendeu a manutenção do texto como está, acrescentando que a Câmara terá de decidir se está do lado dos consumidores ou das empresas.
Contraste
Um estudo da consultoria A.T. Kearney mostrou que o tráfego da internet brasileira deve crescer, em média, 53% ao ano entre 2012 e 2015. O principal motivo é o avanço do vídeo via internet, com crescimento médio anual de 70%. Em três anos, o vídeo deve responder por dois terços do tráfego da rede. Esses números contrastam com o crescimento anual médio de 8% da receita e de 3% do investimento das operadoras brasileiras nos últimos sete anos.
“Um dos problemas está na própria palavra neutralidade”, disse Eduardo Levy, diretor executivo do SindiTelebrasil, sindicato das operadoras de telecomunicações. “Não há quem seja contra, mas a rede precisa ser gerenciada.” As empresas argumentam que não é possível tratar da mesma forma os pacotes de dados. Um vídeo por streaming, por exemplo, assistido em tempo real, deveria ter prioridade sobre um download, em que alguns segundos de atraso não fariam tanta diferença.
Uma aplicação de telemedicina não pode ser interrompida, pois isso colocaria vidas em jogo. O mesmo não pode ser dito sobre mensagens eletrônicas, que podem atrasar alguns segundos sem grandes consequências.
O problema é que, ao se permitir tratamento diferenciado das aplicações, seria possível que as operadoras criassem uma via rápida na internet, com tratamento privilegiado. “Apoiamos o texto do deputado Alessandro Molon”, afirmou Daniel Slaviero, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). “Achamos que o Marco Civil é um avanço, que nos coloca no patamar de países mais desenvolvidos. Não deve haver discriminação de conteúdo, porque isso privilegia o poder econômico.”
Slaviero disse que, sem a neutralidade de rede, um grupo nacional de comunicação teria vantagem sobre os regionais. E os conglomerados internacionais teriam vantagem sobre nacionais. Essa discussão não se restringe ao Brasil. Em fóruns mundiais, as operadoras propuseram a “taxa Google” – a ideia é que empresas que geram muito tráfego, como Google e Facebook, façam pagamentos extras às operadoras para financiar a rede.
“O que parece haver é um problema de balanceamento de custo nas operadoras”, afirmou Demi Getschko, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). “Os usuários pagam pelas conexões, e as empresas de internet também. Essa questão não tem a ver com a neutralidade da rede, mas com o modelo econômico das operadoras.”
Divergências
Apesar de o conceito de neutralidade ser o principal ponto de discórdia no projeto, existem outros. As operadoras reclamam da proibição de armazenar informações sobre o que seus clientes fazem na rede, enquanto empresas de internet podem fazê-lo.
“Não existe motivo para essa assimetria”, disse Levy, do SindiTelebrasil. Levy defende que o Brasil espere um evento da União Internacional de Telecomunicações (UIT), que acontecerá em Dubai em dois meses e que tratará do assunto, antes que tome uma decisão sobre o Marco Civil. O deputado Alessandro Molon discorda: “Se aprovarmos o Marco Civil, podemos influenciar decisões.”
O texto atual define que a regulamentação da neutralidade será feita por decreto presidencial, depois de ouvido o CGI, órgão não-governamental. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, defende que essa responsabilidade fique com a Agência Nacional de Telecomunicações.
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[Renato Cruz, para o Estado de S.Paulo]